domingo, 24 de outubro de 2021

Duna

Passei boa parte da sessão encantado com o visual, com a escala da produção, com o som poderoso, e realmente querendo aproveitar o filme. No IMAX em particular, o espetáculo audiovisual foi quase o suficiente pra prender minha atenção e fazer o filme parecer bom — como costuma ocorrer com as produções do Christopher Nolan também — e diante dessa "opressão sensorial" (regida muitas vezes por Hans Zimmer), avaliar os méritos reais do filme exige uma atenção maior (imagine um general importante gritando na sua cara, e você querendo julgar o conteúdo de suas palavras primeiro pra decidir se irá respeitá-lo ou não).

Assim como Nolan, Denis Villeneuve é um dos diretores que me arrastam com mais facilidade pro cinema hoje — não por eu gostar sempre de seus filmes, mas por ele ser dos poucos cineastas autorais trabalhando em grandes produções, tentando trazer qualidade artística pro cinema comercial. E embora eu veja muito de Pseudo-Sofisticação na técnica de Villeneuve (o tom sombrio e os toques subjetivos são constantes) o cinema de hoje é tão carente desta combinação que acabo vendo seus filmes com boa vontade.

Mas como costuma ocorrer, lá pela 1 hora e pouco de projeção, a ausência de conteúdo dramático e de uma boa trama começou a diminuir um pouco meu entusiasmo. Eu nunca fui fã de sagas como O Senhor dos Anéis, onde muito da energia é gasta na construção do universo, em apresentar todos os detalhes e regras de um mundo fantasioso. Isto pra mim deveria ser apenas os entornos de uma história, detalhes que vão sendo apresentados em função da trama, pra fazer o universo parecer crível, mas que não deveriam substituir a trama. A trama pra mim precisa ser uma linha de ação simples, baseada em objetivos claros, conflitos envolventes, apresentados logo no início — algo que não temos em Duna, que parece ver a fantasia quase como um fim em si mesmo. O filme acaba parecendo uma grande introdução para a parte 2, uma série de discussões burocráticas que vão nos informando sobre aquele mundo, intercaladas por algumas sequências de ação grandiosas para o filme não ficar muito parado (lembrei um pouco do Snyder Cut, que mesmo com uma duração enorme, ainda precisou acabar com a promessa de que "agora sim as coisas vão começar").

O que falta em grande parte aqui é um protagonista menos passivo, mais motivado, com obstáculos sérios e objetivos atraentes para perseguir (nada na história parece partir de um desejo autêntico dele, e o pai deixa claro que se ele não estiver a fim de embarcar na jornada, que não há problema algum). Meu texto As 5 Histórias Idealistas dá uma boa ideia de qual o problema com esse tipo de narrativa, onde as missões não estão conectadas aos desejos da plateia e às paixões do herói (o filme poderia ter seguido as Histórias 2 ou 3 pra ser mais envolvente, mas não o faz). E embora Timothée Chalamet esteja muito bem como Paul Atreides, o personagem é um pouco distante e genérico. O arquétipo do "Escolhido" é muito popular nesse gênero de filme, mas se você não acrescentar alguns traços de caráter mais específicos e carismáticos, o arquétipo acaba não gerando identidade o bastante pra dar vida ao personagem (no final, quando Paul toma uma decisão importante que definirá a parte 2, sua atitude acaba parecendo forçada, vinda do nada, até porque nada nele parecia precisar de uma conexão com o mundo dos Fremen — ter "visões" não é o mesmo que ter uma necessidade psicológica/emocional).

Essa superficialidade/genericidade caracteriza muito do filme, incluindo a trama e os conteúdos políticos/filosóficos. Nessa esfera, o filme acaba lembrando um pouco Avatar tematicamente (ou Avatar lembrando Duna, levando em conta o livro de Frank Herbert), ao discutir a exploração humana de recursos naturais, o tratamento dado a povos indígenas, etc. Se o ambientalismo de Avatar já era meio maçante mesmo diante da exuberância de Pandora e da dependência dos Na'vi da floresta, os dilemas éticos da exploração de Arrakis já são menos compreensíveis, considerando que o planeta é um enorme deserto, hostil à vida (o que não deve impedir o público atual de aprovar a mensagem, afinal qualquer interferência do homem civilizado na natureza é considerada negativa hoje, mesmo quando a "vítima" é areia). Entre os valores questionáveis no filme, há a velha romantização de culturas primitivas (que aqui vem com ares islâmicos), e uma celebração de tudo o que é místico e esotérico. As forças do herói acabam não sendo muito bem dramatizadas no filme por conta dessa inclinação mística. Paul não é como Neo de Matrix, que começa como um homem comum e aos poucos vai evoluindo, adquirindo habilidades visíveis, até se provar o "Escolhido". Ele é mais como Harry Potter, um garoto que já nasceu com um talento especial, mas que nunca se torna palpável no filme — em geral Paul parece se livrar de enrascadas por sorte, por alguma força vaga, ou pela ajuda de alguém, o que deixa as cenas de ação menos poderosas do que poderiam ser (pense em como a sequência do vôo na tempestade de areia é resolvida sem grandes sacadas e sem realmente explorar as virtudes de Paul).

O elenco é todo muito bem escalado. Jason Momoa traz um toque de leveza muito bem-vindo ao filme, que em geral é excessivamente sério. Charlotte Rampling está assustadora em suas breves aparições. E Rebecca Ferguson é a que mais se destaca na minha opinião, roubando a cena em diversos momentos. A cena na nave onde ela usa seus poderes pra tentar escapar é um dos pontos altos do filme — o que me conscientizou do quão pouco excitante é a narrativa de modo geral; esta cena nem é tão surpreendente ou intensa assim, mas perto da inibição emocional do resto do filme, acaba sendo um momento de destaque.

Apesar desses elementos que não me agradaram, o filme no fim conseguiu me transportar pra um lugar fascinante, com personagens atraentes, e isso me deixou com uma lembrança positiva da experiência. Além disso, a adaptação era um sonho de garoto de Villeneuve, e toda vez que alguém tem o privilégio de poder gastar uma fortuna pra realizar um sonho, de colaborar com os melhores profissionais da indústria, e tem habilidade o bastante pra realizar sua visão, é um filme que eu vou ver com interesse.

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ADENDO (26/10)

Eu nunca li o livro Duna, e esses dias revendo a versão de 1984 de David Lynch, me dei conta das similaridades da história com a de Lawrence da Arábia. Dando uma rápida uma pesquisada na internet, vi que de fato esta tinha sido uma das inspirações de Frank Herbert ao escrever o livro. E só pra reforçar minha impressão de que um dos pontos fracos do filme de Villeneuve tem a ver com ele não se enquadrar nas 5 Histórias Idealistas, reparem como Lawrence não só se enquadra, como se enquadra em 3 delas. A história de Lawrence já é satisfatória do ponto de vista de um homem que é visto como fraco/inadequado para certa missão, e evolui para se provar um líder mais impressionante do que todos esperavam (História 2). Ela também funciona como a história de um homem que sai de um ambiente familiar/comum, e vai pra um lugar fantástico viver uma enorme aventura no deserto (História 3). E ela também funciona como a história de um homem com uma "falha trágica" numa jornada autodestrutiva (História 5). Em Duna (2021), como o protagonista já parece o "escolhido" desde o início, como ele já parte de um mundo fantástico cheio de magias, e como apenas na parte 2 o personagem deverá revelar um lado obscuro de sua personalidade, o filme não tem tantos contrastes e não cumpre direito nenhum desses arcos narrativos que costumam ser necessários pra tornar uma história satisfatória.

Dune: Part One / 2021 / Denis Villeneuve

Nível de Satisfação: 7

Categoria B/C: Idealismo impuro (alguns problemas estéticos e valores negativos)

Filmes Parecidos: Mad Max: Estrada da Fúria (2015) / Interestelar (2014) / Star Wars: O Despertar da Força (2014)

8 comentários:

Anônimo disse...

Sobre o Harry Potter, minha mãe, quando assistiu o primeiro filme da série, fez essa mesma observação, dizendo que "todo mundo no filme passava o tempo todo falando do grande Harry Potter, mas no final quem resolvia tudo era aquela menina".
Harry Potter, com todos os defeitos, tem para o espectador leigo a vantagem de começar no mundo que conhecemos. Já Duna e O Senhor dos Anéis se tornam difíceis para quem não tem familiaridade nenhuma com aquele universo. Se eu tivesse lido antes os livros do Tolkien, certamente teria sido capaz de fez os filmes do Peter Jackson. Mas sem a leitura, a impressão que tinha era de uma longa festa de halloween filmada. Duna, o filme do David Lynch, parece pra mim um "Prisioneiro de Zenda" no espaço, com aqueles uniformes estilo Ruritânia.
Um dia vou ler o livro Duna.
Pedro.

Caio Amaral disse...

Oi Pedro.. Exato.. acho que a maioria das crianças se sente o "escolhido" até certa idade.. então entendo o apelo da ideia.. mas quando fica só nisso e não há provas de habilidades, fica sempre faltando algo.
Verdade.. no primeiro Harry Potter pelo menos há essa surpresa de descobrir o mundo dos bruxos, das magias, etc.. ele já tem um dom, mas a história não começa "começada" nesse aspecto, rs. Duna / Senhor dos Anéis já nos apresentam um universo alternativo pronto.. e a proposta seria mais a imersão do espectador neste universo, o que às vezes provoca esses problemas narrativos.. pois o filme passa mais tempo descrevendo o lugar do que dando início a uma trama de fato envolvente. Abs!

Anônimo disse...

A sensação de ver esse Duna foi como se eu fosse ver o Titanic e fossem duas horas e meia de jantares da aristocracia, engenheiros discutindo a arquitetura do navio, empresários ricos discutindo política. Daí no final do filme o Jack e a Rose se conhecem e o Jack olhasse pra tela, piscasse e dissesse “o romance e o naufrágio serão na parte dois se a parte um fizer bastante dinheiro. Se você quiser ver a parte dois, indique a parte um para seus amigos, aí o estúdio ‘desbloqueia’ o final pra vc”.

Infelizmente é exatamente isso que eu sinto com séries e filmes da Marvel. Sempre sensação de que estou perdendo meu tempo vendo conversa jogada fora e a parte boa é só provocada por uma isca, o gancho, no final do episódio. Os filmes da Marvel me lembram aquelas series que as pessoas iam ver no cinema nos anos 1940. Algo que não é cinema nem filme de verdade, ele só acontece no mesmo local geográfico onde os filmes de verdade acontecem.

Caio Amaral disse...

Perfeita a comparação com o Titanic, rs! É bem isso.. Eles evitam tudo aquilo que é o que torna um entretenimento realmente emocionante e memorável.. Acho que além das tendências anti-idealistas da cultura, existe também o fato de que Hollywood se tornou extremamente avessa a riscos.. ninguém mais arrisca perder dinheiro, perder o emprego, em nome do cinema.. só que arte envolve riscos — pois enquanto impressionar no nível de produção já é algo mais planejável, dar prazer e tentar satisfazer o espectador emocionalmente já envolve coisas mais subjetivas, que exigem apostar na visão individual do autor.. então tudo é feito de maneira safe, tentando apenas impressionar no nível mais material da produção. abs!

Rodrigo E. disse...

Eu recém li Duna e fui ver o filme hoje. Na minha visao o filme falhou em fazer uma boa adaptacao. É mesmo estilo acima de conteúdo. O universo de Duna é muito rico e o livro é marcado por diálogos longos e muito bem construídos (aquela cena em que o Paul está com sua mae e se da conta de que ele é o "escolhido", por exemplo, é arrepiante no livro, mas no filme parece até meio desconexa).

O filme termina na primeira metade do livro, mas a sensacao é que nem 5% foi coberto. Eu acho que isso vai prejudicar a sequencia. A história fica bem mais grandiosa daqui pra frente, mas tem muitas explicacoes que ficaram faltando para que o público entenda o pq dessa grandiosidade.

Caio Amaral disse...

Oi Rodrigo..! É comum que o filme seja bem mais resumido/simplificado em comparação com o livro.. mas há formas melhores e piores de fazer isso né. Há coisas que se você não explicar direito, prejudica toda a narrativa.. Eu não tenho o hábito de ler os livros antes de ver os filmes.. mas Duna é um que consideraria ler antes da parte 2 pra ter esse contexto.. até por ser um livro que influenciou outras obras, etc.

Anônimo disse...

Comecei a ler Duna recentemente. O livro é realmente muito bem elaborado e bem escrito. Mas confesso que a cena referida pelo Rodrigo me pareceu algo desconexa até no livro, toda aquela onisciência do Paul Atreides se manifestou de forma muito repentina, antes daquele momento ele parecia razoavelmente normal, ainda que sábio e talentoso acima da média.

Pedro.

Caio Amaral disse...

Uma das diferenças entre fantasia e ficção-científica é que na ficção costuma haver mais embasamento e explicações pra esses fenômenos, mesmo quando são coisas impossíveis.. já na fantasia, "forças" podem surgir do nada.. e quando fica vago demais, isso prejudica a narrativa pois deixa o espectador sem entender as regras do universo, o que ele pode esperar do herói etc.