(Capítulo 19 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
Naturalismo e Experimentalismo não costumam ser uma grande ameaça para o Idealismo. São artes que não competem com a indústria do entretenimento e raramente atingem o grande público. O grande perigo, então, são os casos mistos — obras que se baseiam em alguns dos valores Idealistas, mas que os misturam com valores opostos, destrutivos, que vão contra o Idealismo autêntico.
Nem sempre isso é algo intencional, um desejo malicioso de destruir o Idealismo. Muitas vezes é apenas reflexo dos valores reais do artista, que está no meio do caminho entre um Senso de Vida benevolente e um Senso de Vida malevolente. A vasta maioria do entretenimento de hoje em dia cai nessa categoria, e como a maioria do público também não é puramente Idealista, esses filmes acabam sendo os maiores sucessos comerciais da atualidade.
Quando somos criança, todos gostamos do Idealismo e o aceitamos sem questionamento (geralmente nem temos consciência de que há uma polêmica a respeito disso, e não entendemos por que alguém iria querer consumir arte que não fosse Idealista). Na medida em que crescemos, algumas pessoas preservam esse gosto pelo Idealismo, mas outras o abandonam, passando a ter uma visão cínica e pessimista da vida e querendo ver essa visão reafirmada na arte.
O que ocorre é que na maioria dos casos as pessoas ficam no meio do caminho — nem cedendo totalmente ao pessimismo, e nem aceitando a visão Idealista por completo. É aí que vemos o Idealismo Corrompido: quando o artista em algum nível se identifica com princípios Idealistas — quer criar entretenimento, contar histórias de aventura, heroísmo, mas como ele não acredita plenamente nesses valores, ele insere uma série de elementos destrutivos na obra, buscando uma mistura que reflita melhor seu Senso de Vida conflitante. O resultado é um trabalho misto, que cria e destrói as próprias intenções, fica em cima do muro, nem inspira e nem deprime totalmente.
Vários motivos podem levar a essa atitude. Muitas pessoas acreditam subconscientemente que Idealismo é algo que reflete imaturidade, ingenuidade, falta de realismo — e que cinismo, pessimismo e moderação refletem maturidade, sabedoria, responsabilidade (talvez por ser algo exclusivo da vida adulta, o que não torna isso necessariamente desejável; artrose também é algo exclusivo da vida adulta e nem por isso é algo bom).
Outros tiveram uma criação que punia e reprimia qualquer tipo de prazer (como certos ensinamentos religiosos), e a partir daí o sentimento de prazer foi eternamente atrelado a um sentimento negativo de culpa. Portanto, agora eles só conseguem vivenciar qualquer forma de prazer quando junto dele existir uma boa dose de dor, sofrimento, sacrifício, que ajudará a compensar a culpa. É daí que vem um certo “culto à dor” presente em muitos filmes populares das últimas décadas. Quando pensamos na série Harry Potter, por exemplo, especialmente após os dois ou três primeiros filmes, lembramos muito mais de Harry sofrendo, fazendo caras de dor, do que dele se divertindo, passando por situações que crianças realmente gostariam de passar.
Outros, ainda, fogem do Idealismo por medo da ridicularização, medo de soarem “bregas”, afinal, o Idealismo por natureza é pretensioso — não no sentido negativo, mas no sentido de que ele expõe uma busca por excelência, por um ideal. Então quando você fracassa no Idealismo, o tombo é muito mais alto e doloroso. Quando olhamos para as coisas “trash” dos anos 80, elas parecem muito mais constrangedoras do que trabalhos ruins de artistas Naturalistas, que em nenhum momento prometeram qualquer coisa ou demonstraram grandes ambições. Se você fracassa tentando cantar como a Mariah Carey, você está muito mais exposto emocionalmente e sujeito à ridicularização do que alguém que fracassa tentando cantar como o Bob Dylan. O Idealismo exige coragem, e, uma cultura cínica em relação ao Idealismo, onde as pessoas estão sempre prontas para zombarem daqueles que falham em sua busca, é um ambiente tóxico onde poucos irão se arriscar.
La La Land: Cantando Estações (2016) é um bom exemplo de um filme que flerta com o Idealismo, mas ao mesmo tempo o corrompe, talvez para parecer mais maduro, “pé no chão”. Não acho que a intenção de Damien Chazelle tenha sido atacar o gênero musical conscientemente. A impressão que fica é que em algum nível ele gosta de musicais, tentou fazer algo (meio que) para homenagear o gênero, mas, como ele não acredita de fato nesses valores, ele adota uma atitude cínica que subverte completamente o espírito do gênero. La La Land não é um musical de fato. Não é feito para quem gosta e entende de musicais. É feito para quem acha que há algo de superficial e tolo neles — não só em musicais como no entretenimento Idealista em geral (a maneira como o filme zomba do pop dos anos 80 na cena da festa na piscina é uma ilustração perfeita dessa atitude — a protagonista dançando ao som da banda, mas fazendo caras e bocas para deixar bem claro que ela é cínica e não admira de fato aquele tipo de música). A própria expressão “La La Land” já é carregada de pessimismo, da ideia de que felicidade é algo utópico e inatingível, o que é reforçado pela tagline no cartaz do filme: “Para os tolos que sonham”! Musicais de verdade inspiram sonhos — são sobre beleza, espetáculo, talento, diversão, otimismo — criam um mundo ideal na tela para o deleite do espectador. La La Land é um filme sobre “vida real”, sobre frustrações da vida adulta, que, em vez de homenagear os musicais, acaba usando-os mais como uma maneira de realçar a melancolia dos personagens.
Como há pouca originalidade no entretenimento e poucos artistas dispostos a criar novas histórias e heróis que possam inspirar o público, aqueles que querem criar entretenimento com algum elemento de Idealismo muitas vezes precisam se refugiar no passado. Quando você olha para os campeões de bilheteria dos últimos anos, é impressionante o quanto o entretenimento de hoje ainda é dependente do passado e continua surfando na onda do período Idealista dos anos 70–90. Só em 2019, entre as 15 maiores bilheterias do ano estavam remakes ou sequências de filmes como O Rei Leão (1994), Star Wars (1977), Aladdin (1992), Toy Story (1995), Jumanji (1995), It: Uma Obra Prima do Medo (1990). A franquia Jurassic Park continua a todo vapor com os novos Jurassic World. Um lado do público e da cultura parece estar gritando, sedento por Idealismo. Mas o outro lado não consegue abraçá-lo completamente, então, a maioria desses remakes e sequências traz essas histórias de volta, mas sem seus valores originais, sem o Idealismo, que é o que as tornaram um sucesso em primeiro lugar.
É muito comum filmes ou séries atuais se passarem nos anos 80 e tentarem criar um clima de nostalgia, como It: A Coisa (2017) ou Stranger Things (2016). Mas Stranger Things é uma “homenagem” aos filmes dos anos 80 na mesma medida em que La La Land é uma “homenagem” aos musicais clássicos. Nos dois casos, as produções soam inautênticas, pois elas não têm o mesmo espírito nem os mesmos valores dos filmes que dizem homenagear. Elas fingem que estão resgatando o espírito do passado (um período considerado mais feliz, divertido e inocente do que o atual), mas, na prática, fazem isso apenas num nível superficial e concreto: através do visual, da trilha sonora, da cenografia, fazendo referências explícitas a certos filmes. Mas naquilo que realmente importa, nos valores essenciais transmitidos através da história, dos personagens, são produções que estão em plena harmonia com o cinismo da atualidade e não refletem em nada o entretenimento da época.
Há muitas maneiras de contaminar o Idealismo com valores opostos. Filmes de super-heróis, por exemplo, foram se tornando cada vez mais sombrios e trágicos para se adequarem aos tempos atuais. Mas Hollywood não consegue abandonar heróis totalmente e passar a contar histórias sobre pessoas comuns apenas. As pessoas querem Idealismo por um lado, mas isso tem que vir disfarçado, distorcido, camuflado, corrompido. Quando vamos ao cinema ver um filme de super-herói, um aspecto do filme nos atrai com base no nosso desejo de admirar virtude, de se sentir inspirado, de buscar diversão. Mas quando o filme começa, vemos apenas heróis sofrendo, demonstrando suas fraquezas, apanhando, brigando uns com os outros, seus poderes são apresentados frequentemente como maldições — em vez de ficarmos inspirados, nós, na plateia, nos sentimos quase sortudos por não estarmos na pele deles.
Existe uma glamourização da figura dos “losers” especialmente em filmes ou séries para jovens, como Glee, que prendem a atenção sugerindo narrativas de sucesso, busca pela fama, mas na prática só nos mostram personagens comuns, frágeis, que não inspiram um senso real de ambição.
Logan (2017) foi um enorme sucesso de público e crítica, e transformou X-Men praticamente num road movie rural, focando em relações familiares, no lado “humano” do herói, que em vez de estar engajado em situações grandiosas e excitantes, aparece deprimido, com tendências suicidas, e é visto ao longo da história consertando vazamentos, entrando em brigas com fazendeiros, ajudando um senhor cadeirante a sentar na privada.
Um herói dificilmente escapa de um filme hoje em dia sem ter que fazer um grande ato de autossacrifício no final, que será mostrado como prova definitiva de seu caráter. Um herói não deve mais refletir sucesso, autoconfiança, se divertir, conquistar a mocinha no fim. Ele tem que sofrer, se sacrificar, parecer decadente, e às vezes até morrer para ganhar o respeito do público. O filme Logan termina com o herói morto e uma imagem altamente representativa do entretenimento atual: um crucifixo sobre o túmulo de Wolverine formando o “X” dos X-Men, algo que consegue superar em mau gosto o “Supercaixão” com logotipo no qual Superman é enterrado em Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016).
Vou listar abaixo algumas das estratégias que esses artistas divididos costumam utilizar para corromper o Idealismo da obra:
— Expressando algo Idealista, mas de maneira caricata, exagerada, dando um tom cômico, fútil, infantil e não sério para estes valores;
— Não sendo Idealista, mas fazendo referências e flertando constantemente com o universo do Idealismo (a cultura dos anos 70–90, por exemplo), geralmente em tom cínico;
— Fazendo o herói agir, gesticular e se portar de maneira casual, vulgar, atrapalhada, impedindo qualquer projeção de glamour e superioridade;
— Usando humor contra o personagem. Tornando o herói ridículo e fazendo o espectador rir dele (não com ele);
— Sugerindo algo Idealista em um momento, mas logo em seguida fazendo algo Anti-Idealista para quebrar o clima;
— Expressando algo Idealista, mas pesando a mão no violento, no vulgar, no imoral, no trágico, no melancólico, no feio e no negativo para “equilibrar” o resultado (enfatizando tanto o contraste que você quase não percebe mais qualquer Idealismo). Essa é uma das táticas mais populares hoje. Mad Max: A Estrada da Fúria (2015) é um bom exemplo — o filme enche nossos olhos com sua fotografia deslumbrante, suas cenas de ação espetaculares, mas ao mesmo tempo fica nos bombardeando de minuto em minuto com imagens de caveiras, pessoas machucadas, membros amputados, pessoas comendo animais nojentos, grávidas sendo mutiladas etc.;
— Enfatizando o lado fraco e impotente do herói. Focando em seus problemas, limites, distúrbios psicológicos, questões emocionais, frustrações — não apenas como um contraste, mas como suas características mais marcantes;
— Ou pior: acrescentando falhas de caráter, toques de maldade e irracionalidade ao herói, reforçando a ideia que ninguém é 100% bom, nem mesmo um super-herói ou uma princesa de um desenho infantil;
— Expressando algo Idealista, mas de maneira atenuada, casual, despretensiosa, ponderada, sem vigor e intensidade, como se não fossem valores tão importantes, ou não devessem ser adotados em excesso (misturando Idealismo com Naturalismo, minimalismo);
— Mostrando ambição e qualidades positivas apenas no lado técnico/visual da produção, mas não nos aspectos mais relevantes da obra (a produção é espetacular, mas os protagonistas são comuns, a história não é inspiradora);
— Fazendo um filme de herói, mas escalando um ator de aparência comum e não atraente para o papel. Ou o contrário: escalando atores que transmitam algo de heroico e atraente visualmente (um ator consagrado, associado ao Idealismo, por exemplo), mas colocá-los em uma história deprimente e Naturalista;
— Tornando o herói parte de um grupo, de um time, onde o foco seja o trabalho em equipe, o coletivo, e o protagonista não ganhe crédito demais por suas conquistas.
Não estou dizendo que um herói não possa apresentar fragilidades ou desvantagens, como já indiquei antes. Mas há uma diferença grande entre ter limitações, fragilidades, e ser esse tipo de “herói envergonhado” que é reflexo do Idealismo Corrompido. A principal é que, no primeiro caso, o foco está na projeção das virtudes e não na projeção das falhas — as qualidades e as conquistas do herói são dramáticas, convincentes, empolgantes, memoráveis, criativas, e as fragilidades estão presentes apenas como um contraste, para dar um senso de realismo e tornar a superação ainda mais intensa. Já no caso do Idealismo Corrompido, toda atenção é dada às fragilidades, às inseguranças, ao lado “humano” e “realista” do herói, mas nunca vemos uma apresentação dramática de suas virtudes, daquilo que o tornaria digno de ser admirado. Nesses filmes, a vitória do herói no final geralmente é mal elaborada, esquecível, resolvida de maneira apressada, artificial — fica sempre meio vago como foi que ele venceu, como derrotou o vilão. Já em num filme sobre heróis de verdade, haverá um grande esforço criativo dedicado a esses momentos onde o herói vence, se supera, demonstra suas virtudes — as melhores ideias e os melhores set pieces dos filmes muitas vezes serão criados justamente com essa finalidade.
Heróis são feitos para provocar inspiração — as crianças saem do cinema motivadas, imitando seus gestos, com um senso de ambição renovado. Já esses heróis corrompidos tentam unir as intenções incompatíveis do Idealismo com as do Não Idealismo. Não sabem se querem inspirar o espectador ou amenizar sua baixa autoestima, gerar confiança focando em virtudes, ou dar um senso de conforto, dizendo que ninguém é grande demais, que todo mundo é inseguro, tem falhas, portanto, não há por que se sentir inferior.
5 comentários:
É aquilo que comentamos sobre o exemplo de como o Cazuza pensava!Em um modo geral como vc disse " cínicos convictos" eu conheço muitos que levam essa personalidade não só em relacionamento, mas em tudo na vida! Em simples comentário o cara é assim. Tem os que são sinceros demais que chegam a levar ao ápice da loucura aos olhos de alguns, e outros que considero insuportáveis quem nem para amizade conseguimos aturar. Adorei seu post! Bjs
Sim, muito a ver com o depoimento do Cazuza...!
Os que são "cínicos convictos", ou seja, aqueles que nem tentam expressar nada de romântico, que de fato têm uma visão negativa das coisas, esses eu nem critico tanto.. pq pelo menos eles são íntegros.. estão fazendo o que acreditam..
Me incomodam mais os românticos reprimidos, porque esses estão em conflito.. eles criam algo bonito, e depois o cobrem de manchas, de sujeira.. acaba sendo pior de ver..
Segundo texto que leio. Vou começar a seguir esse blog!
Sei bem o que é o cinismo. Publiquei uma HQ que mistura aventura e humor, com um final humorista e que dá uma piscadela para o leitor... e sabe como um "crítico" qualificou?
PIEGAS.
Esse aí passou do cínico realista. É um amargurado e derrotado pela vida
Ops! Final OTIMISTA e não humorista!
Legal Giorgio..! Infelizmente quando se tenta projetar algo positivo na arte, você acaba virando um alvo fácil né.. qualquer um se sente à vontade pra chamá-lo de piegas ou coisas do tipo.. já o que é trágico é quase sempre visto de maneira mais respeitável, simplesmente por ser trágico.. uma das minhas propostas aqui é inverter essa noção, hehe. Abs, e parabéns pelas publicações.
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