(Capítulo 24 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
Na crítica de Blade Runner 2049 (2017) que fiz no meu blog, eu o comparei a filmes como A Chegada (2016), Interestelar (2014) e Mad Max: Estrada da Fúria (2015), e uma coisa que notei em comum entre esses filmes é que são todos filmes comerciais, de gênero, que fizeram um grande sucesso de público e crítica. Outra coisa em comum é que eu não gostei de nenhum deles (pelo menos não gostei tanto quanto a maioria).
Sempre me sinto meio mal de criticar filmes como esses, pois, julgando de forma superficial, esses deveriam ser os filmes que eu mais deveria apoiar, pois eles tentam trazer certa sofisticação para o cinema comercial (se comparados a entretenimentos mais enlatados, como filmes da Marvel etc.). Eu sempre defendo a união entre arte e entretenimento — por que então essa minha “mania” de sempre dar notas baixas para esse tipo de filme?
A questão para mim é que o que esses cineastas estão trazendo para o cinema comercial não é de fato sofisticação. É outra coisa. Quando eu digo que gosto de entretenimento inteligente, eu quero dizer literalmente “inteligência” no sentido de racionalidade, capacidade mental, conhecimento e sabedoria. Eu quero ver que o autor é alguém que, além de querer me proporcionar uma experiência positiva, é alguém que realmente compreende o mundo de uma maneira especial, que entende da linguagem do cinema, tem domínio narrativo, bagagem, talento, um gosto apurado, se comunica com precisão com o espectador, respeita a racionalidade da plateia, é alguém que tem uma ampla cultura que vai além do cinema simplesmente (tem conhecimento sobre outras artes, sobre psicologia, filosofia, ciência, política, experiência de vida etc.).
Não é nada disso que eu percebo nos filmes citados no primeiro parágrafo. Esses filmes podem até soar mais inteligentes e sofisticados que o blockbuster rotineiro, mas isso não acontece por eles apresentarem essas qualidades, e sim por causa de alguns truques usados pelos cineastas, que acabam muitas vezes iludindo o espectador menos atento.
O que vou discutir aqui é uma espécie de Idealismo Corrompido, mas que surge com um propósito diferente (as duas coisas muitas vezes se sobrepõem e se tornam indistinguíveis, mas acho importante discuti-las separadamente). Os Idealistas Corrompidos, em geral, querem apenas entreter, agradar o público, e inserem elementos Anti-Idealistas na obra, pois eles refletem seus valores reais e os valores predominantes na cultura. Já nesse caso, o desejo do artista é parecer inteligente, “cerebral”, ganhar créditos com a crítica. São diretores que costumam admirar cineastas como Stanley Kubrick, que querem ser apreciados por suas “mentes brilhantes”, mas que em vez de conquistarem isso de fato sendo geniais, tentam cortar caminho, pegar atalhos — imitam certos elementos de estilo, certos trejeitos que dão apenas um ar de sofisticação intelectual para a obra.
Um desses truques, por exemplo, é o uso do Subjetivismo. É inserir dentro de um gênero “pipoca” coisas como finais abertos, tramas ambíguas e contraditórias, simbolismos incompreensíveis, reviravoltas inexplicáveis, borrando de propósito a linha entre sonho e realidade, sugerindo que nada é real, que a razão é ilusória, que não podemos entender direito o que acontece ao nosso redor, que não devemos buscar consistência, explicações fáceis, que o ser humano é caótico e complexo.
Outro truque é apelar para o pessimismo — enfatizar o trágico, o melancólico, exibir uma visão de mundo malevolente, trazer para gêneros tradicionalmente escapistas e divertidos temas deprimentes, um clima sombrio, cores frias e dessaturadas, mostrar personagens que sofrem do começo ao fim, relações conflituosas, apelar para a violência, para a feiura, apresentar heróis moralmente duvidosos, histórias com uma visão pessimista do ser humano e da vida.
Um outro truque é o de negar para o espectador as emoções de orgulho e autoestima. Em vez de apresentar heróis, figuras admiráveis, o filme se propõe a revelar o lado mais frágil e “humano” dos protagonistas, enfatizar seus problemas, as dificuldades e falhas que eles dividem com o resto da humanidade, mostrá-los de forma frágil, patética, cômica, ou simplesmente realista.
Ou então negar diversão e prazer para o espectador, tornando a narrativa intencionalmente lenta, monótona, sem ação, evitando sentimentos positivos, mostrando personagens antipáticos, entediados, situações pouco atraentes, discutir temas indigestos, ter um final propositalmente frustrante.
Nenhuma dessas atitudes de fato demonstra inteligência, no sentido que defini aqui. Se você parar para pensar, o que esses cineastas estão fazendo é apenas negar certos valores desejados e esperados pelo espectador — subverter de propósito algum dos 4 pilares Idealistas.
Ser capaz de “desconstruir” algo, de negar um valor só por negar, não é sofisticado ou inteligente, exceto talvez no sentido de que não é algo que crianças ou pessoas totalmente ignorantes saibam fazer. É preciso um certo nível de experiência (e pretensão) intelectual para começar a se comportar dessa forma. Mas isso não é uma demonstração de inteligência ainda. No máximo, isto prova que a pessoa já saiu do nível mais básico de intelecto, que ela não faz parte das massas mais ignorantes que só conseguem assimilar prazeres fáceis e imediatos — da mesma forma que começar a fumar pode fazer um garoto sentir que ele não é mais uma criança —, mas ainda não é o suficiente para provar que ele é um adulto.
Vemos frequentemente essa atitude em alguns estilistas de moda, por exemplo, que apresentam roupas inquestionavelmente feias em seus desfiles: beleza é toda a essência dessa indústria, então, ao subverter justamente esse elemento, negar aquilo que agradaria os olhos do espectador, eles acham que se tornam mais sofisticados por algum motivo. É como se a capacidade de questionar, de rejeitar ou reprimir prazeres básicos já provasse que a pessoa é evoluída. Esse fenômeno pode ser observado facilmente em tudo aquilo que envolve experiências sensoriais: repare que comidas consideradas sofisticadas tendem a ter sabores estranhos, quase desagradáveis, que músicas consideradas sofisticadas (por intelectuais e críticos) tendem a ser dissonantes, pouco divertidas — e que as pessoas que aceitam essa dicotomia estão sempre prontas para menosprezar tudo aquilo que dá prazer, simplesmente pelo fato de dar prazer: zombam de música popular, de perfumes obviamente agradáveis, comidas que todo mundo gosta, se alienando de prazeres naturais e legítimos numa eterna tentativa de se distanciar das massas, de ganhar status, de pertencer a uma elite.
Observem que no meu conceito de “entretenimento inteligente”, a inteligência não exige a destruição do entretenimento. São duas coisas que se complementam e podem coexistir. Na minha visão, seria perfeitamente possível um filme da Xuxa ser altamente inteligente, uma verdadeira obra de arte, sem prejudicar em nada a diversão do público infantil. Da mesma forma, um filme do Bergman poderia se tornar altamente estimulante e prazeroso sem perder nada em sensibilidade e maturidade. Nunca há uma boa razão para fazer algo de maneira pobre, superficial, sem inteligência, sofisticação, assim como nunca há uma boa razão para deprimir o espectador, irritá-lo e matá-lo de tédio. Mas na medida em que você acrescenta elementos como subjetivismo e pessimismo num filme para torná-lo mais “inteligente”, necessariamente, você o torna menos divertido.
Esses artistas podem estar partindo do erro comum de achar que existe uma contradição fundamental entre inteligência e felicidade, entre prazer e sofisticação. Eles concordam com a noção de que a “ignorância é uma bênção”, que inteligência nos leva automaticamente ao pessimismo, a incertezas, à falta de confiança — e, consequentemente, que felicidade, otimismo, convicções, autoestima, tudo isto só pode ser sinal de burrice.
Ou então podem simplesmente ser do tipo elitista que descrevi antes, que estão tentando se diferenciar das massas “inferiores”. Seja qual for o motivo, essa é uma maneira tola de lidar com a questão, e o que acaba acontecendo com esses filmes é que, na tentativa de trazer inteligência para o entretenimento, eles acabam não sendo nem inteligentes, nem divertidos.
O que estou questionando neste momento não é nem tanto o pessimismo, o subjetivismo em si, e sim a atitude de usar desses artifícios como estratégia para tentar deixar uma obra mais sofisticada. É como o exemplo anterior do garoto que fuma para tentar te enganar que ele já é adulto. Se você é um homem bem-sucedido, responsável, culto, experiente, e você fuma, eu posso até não gostar desse hábito, mas não diria que você é uma fraude por isso. Mas se você é um moleque sem nada na cabeça, fumando para tentar parecer um adulto, como se isso em si já fosse prova, daí você é um tolo. É isso o que esses cineastas estão fazendo: eles estão inserindo elementos destrutivos em seus filmes (associados a filmes mais artísticos) para tentar parecer mais sofisticados, mas sem demonstrar as qualidades essenciais de filmes que são de fato sofisticados.
Para trazer racionalidade, inteligência, sofisticação e qualidade técnica para um filme popular, você não precisa diminuir em nada o prazer da experiência (pelo contrário, o fato dessas virtudes estarem presentes tornará o filme ainda mais prazeroso). Há uma história sobre Walt Disney que diz que ele fez questão de que, no carrossel da Disneyland, a tinta dourada que pintava os cavalos fosse realmente feita de pó de ouro de 23 quilates. Essa é a atitude certa para alguém que quer trazer mais qualidade para o entretenimento. Você não precisa tornar a experiência mais desagradável — tem apenas que inserir riquezas. Mas na cabeça desses cineastas atuais, para você tornar um carrossel como o de Walt Disney mais sofisticado, seria preciso pintá-lo de cinza, diminuir a velocidade do brinquedo até o ponto do tédio, colocar cavalos abatidos, mutilados na guerra, tocar uma música fúnebre etc.
2 comentários:
Eu cansei de esperar, sério. Acho que desse mato não sai cachorro.
Estou revisando as postagens técnicas e conceituais do blog e compilando elas no meu próprio livro pessoal.... rsrsrsrs
Eu não canso de falar, adoro essas postagens e adoro relê-las. Uma pena que tu não tenha a mesma visibilidade de alguém como Pablo Villaça. Vejo que o mundo da arte e do entretenimento precisa muito das idéias corretas, racionais, e eu as encontrei aqui. Abraços Caio.
Haha Marcus seu entusiasmo é sempre bem vindo... Eu gostaria sim de compilar tudo... Mas só quando eu achar que tenho textos o bastante... Abordando todos os temas que gostaria de abordar... Eu tenho uma lista de várias coisas ainda pra serem colocadas no "papel"... Que eu só tenho em forma de rascunhos, etc... E algumas postagens aqui ainda estão incompletas... Por exemplo, o texto sobre Universo Malevolente é apenas uma série de citações da Ayn Rand, do Nathaniel Branden, etc... eu ainda não sentei pra escrever a minha opinião / refutação pessoal... abs!
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