quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Corpo e Alma

NOTAS DA SESSÃO:

- Não-Idealismo: a ideia de um romance entre uma mulher frígida e um homem com o braço paralisado que são funcionários de um matadouro não é particularmente inspiradora.

- Horrível o filme mostrar as vacas sendo abatidas, decapitadas, desmembradas. O que é isso, Okja versão "filme de arte"? Pra que servem as imagens lindas dos cervos na floresta? Pra constrastar com as vacas no matadouro e fazer a plateia se sentir culpada por comer carne?

- Curiosa a história do roubo do pó de acasalamento (mas será que isso servirá pra algo na história?). O filme é cheio de detalhes divertidos, como o elemento sobrenatural dos protagonistas compartilharem o mesmo sonho. Ele tem alguns elementos Idealistas, mas apresentados de maneira fria, dentro ainda de um estilo Realista (seria mais um caso de Minimalismo - o que é menos ruim).

- A caracterização da protagonista é interessante e muito perspicaz - ela indo naquele terapeuta infantil, as características meio autistas, a inteligência aguçada pra algumas coisas mas o lado social prejudicado, a sexualidade mal desenvolvida... Faz muito sentido uma mulher assim trabalhar com análise, controle de qualidade, pois é uma pessoa totalmente mental, que vive num mundo de ideias, desconectada do corpo, das outras pessoas, etc.

- Mas ainda não é clara qual a relação entre todos esses elementos. O sonho, os cervos, o matadouro, a personalidade da Mária, o pó de acasalamento... O filme é sobre sexualidade? Ainda não há uma ligação muito sólida entre tudo.

- Hilário a Mária tentando se tornar mais "normal": a cena dela ouvindo rock, assistindo filme pornô. O filme enfatiza a incongruência, então se torna cômico (a senhora da limpeza dando dicas de sedução é simplesmente genial). Nesse momento o filme começa a tomar uma direção mais clara, a ter um conflito central: Mária precisando superar sua natureza frígida pra poder ter uma experiência romântica com Endre.

- Endre também é um cara desconectado do corpo (o braço que não funciona) e de sua natureza sexual (a apatia quando vai pra cama com aquela outra mulher).

- SPOILER: Quando a conexão entre os elementos do filme finalmente te atinge, é uma experiência realmente fantástica. A cineasta não entrega suas ideias de bandeja pro espectador, vai simplesmente contando a história no seu ritmo, preocupada apenas com sua coerência interna, e confiando que a mensagem será eventualmente transmitida, mesmo que num nível emocional, subconsciente. Na minha visão, o filme é sobre o rompimento entre corpo e mente (ou "Corpo e Alma" como diz o título) e a maneira como isso torna as pessoas incompletas e infelizes. Os personagens trabalharem num matadouro não é uma crítica banal ao consumo de carne - é simplesmente pra mostrar de maneira simbólica que essas são pessoas que matam (reprimem) o lado "animal" delas (o corpo, o sexo), e lidam com ele de maneira platônica (lindos cervos numa floresta imaginária), mas não conseguem integrá-lo ao mundo real (na vida real, o "animal" é sujo e deve ser rejeitado, abatido cruelmente como as vacas / e o sexo não é natural, precisa de um pó de acasalamento pra acontecer, etc).

- SPOILER: Legal o momento de "crise" do roteiro onde o Endre decide parar de encontrar Mária nos sonhos. A tentativa de suicídio dela é uma das mais chocantes que já vi: a perfeição dos efeitos visuais, a maneira casual como tudo é filmado, sem drama, a câmera friamente mostrando o sangue jorrando, como as vacas do matadouro (Mária não pôde encontrar harmonia entre corpo e alma no mundo real, então resolveu rejeitar definitivamente o corpo).

- SPOILER: Sensacional o fim - Endre telefonar de última hora e interromper o suicídio de Mária - e o eventual "final feliz". A cena de sexo entre os 2 é filmada de maneira simples (alguém que veja a cena fora de contexto achará até banal ou feia), mas o filme construiu um contexto tão rico até chegar nesse momento, que acaba sendo uma das cenas de sexo mais "épicas" que eu já vi no cinema. E o detalhe no fim dos cervos terem desaparecido da floresta é brilhante: o "animal" não está mais num mundo paralelo, não é mais uma noção platônica. Através do outro, Mária e Endre finalmente conseguiram, no mundo real, unir corpo e alma.

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CONCLUSÃO: Um tipo de sensibilidade artística que raramente se vê no cinema.

On Body and Soul / Hungria / 2017 / Ildikó Enyedi

FILMES PARECIDOS: Grave (2016) / Ninfomaníaca (2013) / Anticristo (2009)

NOTA: 8.0

2 comentários:

Marcus Aurelius disse...

Olá Caio. Lendo suas anotações, fiquei com muita vontade de ver esse filme. Parece ser daqueles que "desafiam a percepção" como vc falou. Não vi o filme, mas lendo soa como se o filme usasse os simbolismos para representar idéias concretas e a subjetivismo como um meio para comunicar as idéias objetivas, sem estar aberta à interpretação arbitrária do público. Fiquei muito ansioso para ver.

O que seriam 'as características meio autistas' da protagonista?

Caio Amaral disse...

Oi Marcus.. Parece que já tem pra alugar no Google Play..! É bem interessante mesmo.. É o tipo de filme que depende de certa atenção e interpretação pra que a gente aprecie seu valor.. mas não acho que ele caia na categoria subjetivismo.. no começo dá essa impressão.. pois as imagens dos cervos parecem bem aleatórias, etc.. mas depois ele vai costurando tudo na história principal.. ele fica num limite que ainda considero objetivo.. já um filme como Grave (Raw), que tem uma intenção parecida, elementos parecidos, cai mais pro lado do subjetivismo..

A protagonista não sabe interagir socialmente.. expressar emoções.. ao mesmo tempo tem uma inteligência quase sobre-humana pra coisas específicas.. me pareceu algo dentro do espectro autista..