quarta-feira, 11 de junho de 2025

Junho 2025 - outros filmes vistos

Até a Última Gota (Straw / 2025 / Tyler Perry) — "Pornô de vitimização" que beira a comédia de tão ingênuo e escrachado — e com uma bússola moral tão deturpada que faz filmes como Bonnie e Clyde e Coringa parecerem moralistas em relação aos bandidos. A ideia parecia ser contar a história de uma "criminosa com um coração de ouro" estilo Thelma & Louise — a diferença é que a personagem aqui, além de ser uma mulher desprovida de qualquer qualidade positiva de caráter (e a principal causadora dos próprios problemas), assassina um homem inocente antes de partir em sua "jornada de redenção". Em vez de uma inocente injustiçada, temos uma mulher que deveria de fato estar na cadeia. Mas o filme não pensa assim e espera que torçamos por ela pelo simples fato dela ser pobre e ter uma vida desgraçada — em um único dia, tudo de ruim que poderia acontecer a alguém acontece com ela. Se você é do tipo que confunde sofrimento com nobreza de caráter, ela soará como uma das personagens mais virtuosas de todos os tempos! Dessa forma, como julgá-la "só" por matar, cometer extorsão, fazer reféns? Já vi muitos filmes moralmente ambíguos, que tentam relativizar as ações de personagens maus, mas poucos pareceram tão entusiasmados e livres de culpa ao perdoar atos criminosos quanto este.

O Esquema Fenício (The Phoenician Scheme / 2025 / Wes Anderson) — Apesar de ser um dos diretores mais monótonos da atualidade, Wes Anderson pelo menos não é preguiçoso — ele se dedica 100% toda vez que repete a mesma receita. O filme é puro Estilo Acima de Conteúdo — uma trama que ninguém em sã consciência diria que é interessante — mas Anderson executa esse "nada" com imaginação, capricho e leveza, preservando certa dignidade como artista (ainda que eu continue achando que ele é um designer preso no corpo de um cineasta).

Bailarina (Ballerina / 2025 / Len Wiseman) — Gun Fu (filmes que combinam artes marciais com o uso de armas de fogo) é um dos subgêneros que menos me atraem no cinema, e John Wick se tornou, pra mim, uma das piores influências sobre a ação moderna. Dito isso, Bailarina foi uma boa surpresa. Achei o melhor filme da franquia — não por ser inovador ou transcender totalmente os problemas do gênero, mas por ser mais sólido narrativamente e por Len Wiseman se mostrar um cineasta mais hábil que Chad Stahelski, tornando inclusive as cenas de luta mais bem dirigidas, detalhadas e divertidas de assistir.

Predador: Assassino de Assassinos (Predator: Killer of Killers / 2025 / Dan Trachtenberg, Joshua Wassung) — Levar o Predador para o universo de vikings e samurais me pareceu esquisito a princípio, mas não deixa de ser o reconhecimento de um fato: a franquia Predador sempre foi mais sobre músculos e testosterona do que sobre os elementos de ficção científica que sustentam a franquia Alien. A animação até que é bem realizada, mas se você não vê um valor intrínseco no combate físico, na "arte" de dar porrada (o roteiro poderia facilmente ser transformado em um videogame de luta), vai ser difícil se importar com qualquer coisa. O filme ainda "moderniza" a franquia exaltando os oprimidos, dignificando o sofrimento e o sacrifício — toques meio estoicos/cristãos que destoam do Predador original.

Mountainhead (2025 / Jesse Armstrong) — Sátira social fraquíssima que parece mais um descarrego de um hater de bilionários do que um filme com algo útil a dizer. A ideia é mostrar o quão patéticos (e perigosos) são CEOs de big techs, talvez na esperança de promover algum tipo de regulação sobre eles. Há críticas válidas que se poderia fazer a esse tipo de figura, mas para isso, o filme precisaria mostrar uma compreensão minimamente equilibrada de seus alvos, em vez de apenas criar versões caricatas deles e atacar esses estereótipos vazios. O título Mountainhead é uma referência explícita ao livro A Nascente (The Fountainhead), da Ayn Rand — e se o diretor vê alguma semelhança entre a mensagem de The Fountainhead e o caráter dos personagens do filme, isso só prova o quanto seu discurso é raso e tendencioso.

O Predador (1987)

Apesar de ser de um gênero que eu gosto, de uma era que eu gosto e com um ator que eu gosto, O Predador é um filme que nunca achei tão bom quanto sua popularidade sugere. Depois de assistir ao spin-off Predador: Assassino de Assassinos, acabei decidindo rever o original para fazer algumas comparações, e a primeira coisa de que me dei conta é que, apesar de já ter visto O Predador mais de uma vez, é um filme do qual sempre tenho uma lembrança vaga — lembro da ambientação na selva, da criatura, mas é quase como se eu não tivesse visto o filme de fato, como se tivesse pegado essas referências de trailers. Dessa vez, entendi melhor o porquê disso: ao contrário dos filmes da franquia Alien, O Predador é um bom exemplo de um filme sem bons set pieces. Todos os momentos significativos da narrativa são executados de maneira casual, desleixada, esquecível — não há nenhum trecho que renderia um “corte” fantástico, digno de ser revisitado e apreciado por si só. A criatura é revelada de maneira esparsa, sem nenhuma entrada ou momento emblemático; a primeira morte não traz nenhuma ideia memorável; a primeira vez que o protagonista vê o alien também não marca; nem a maneira como ele o derrota no final. Para mim, é como se bons set pieces dessem identidade a um filme — e, quando não há esses momentos excepcionais, o filme não se cristaliza direito na memória; o que se guarda é apenas um borrão ou imagens fragmentadas.

Na prática, O Predador está mais para um macho-filme daqueles estilo Stallone/Van Damme do que para uma ficção científica como Alien. É como se eles tivessem pensado inicialmente em um filme de guerra repleto de músculos e metralhadoras e, no fim, alguém tivesse dado a ideia de jogar um alien fortão no meio da história só pra tornar o combate mais intenso (até porque extraterrestres estavam em alta nos anos 80, assim como halterofilistas — por que não unir Rocky e E.T.?). Durante os primeiros 40 minutos, a criatura nem interfere na trama — fica apenas observando os personagens à distância, o que torna a narrativa arrastada. As tentativas do filme de nos envolver na missão de guerra no começo são totalmente fúteis. Depois, o Predador começa a matar um membro da equipe por vez — mas o protagonista só vai descobrir sua existência lá pela meia hora final, o que nos distancia dele enquanto personagem. É como um slasher estilo Sexta-Feira 13, em que os personagens não têm muito o que fazer durante dois atos, e tudo se concentra no showdown da última meia hora. Bons slashers conseguem se safar com essa estrutura, usando essa primeira hora para assustar o espectador e apresentar cenas de morte impressionantes. Mas, como disse, O Predador não tem essas grandes cenas, e eu particularmente não acho que a criatura dê medo — principalmente pela ambientação: o que torna um monstro assustador não é apenas a criatura em si, mas o contexto em que ela aparece. Quanto maior o contraste, mais assustador. O alien que aparece na festa infantil de Sinais (2002) não é horripilante por ter um design particularmente bem-feito — ele assusta pelo contexto em que aparece: em um local familiar, cotidiano, inocente. Tubarão (1975) cria tensão porque a criatura aparece em praias ensolaradas, onde crianças estão se divertindo, famílias estão de férias relaxando. Agora, em O Predador, os personagens são soldados durões numa selva cheia de cobras e criaturas perigosas, onde estão sendo perseguidos por guerrilheiros sanguinários. Nesse contexto, a criatura se torna apenas uma ameaça extra — seria como esperar que o tubarão fosse igualmente impactante se aparecesse na praia de O Resgate do Soldado Ryan.

Com um roteiro melhor, o confronto final entre o Schwarzenegger e o Predador poderia ter rendido um clímax recompensador, mas o que acontece é muito sem lógica e criatividade. O Predador supostamente só enxerga calor — mas, por algum motivo, o herói consegue se esconder dele passando lama no corpo e se mesclando visualmente com o fundo, além de despistá-lo arremessando pedras na mata, dando a entender que o monstro também capta movimento ou som. Um dos momentos de heroísmo que mais se destacam envolve uma flecha explosiva que parece uma imitação preguiçosa da cena de Rambo 2. A armadilha que Schwarzenegger prepara para matar o Predador no fim também não tem muita plausibilidade. Durante a maior parte do filme, o herói parece perdido em uma situação sobre a qual não tem o menor controle. Daí, no final, ele subitamente se torna um perito em caçar Predadores — o que não gera admiração, por ser feito de forma forçada.

Com uma direção e um roteiro fracos, O Predador só merece certo crédito porque foi feito numa época em que a indústria cinematográfica era robusta, repleta de talentos, e algum valor de entretenimento acabava recaindo sobre a maioria dos filmes: o longa é encabeçado por um verdadeiro astro, a trilha sonora de Alan Silvestri ajuda a manter a experiência estimulante, o trabalho de Stan Winston com a criatura é ótimo, etc. Mas, pra mim, o legado do filme não é proporcional à sua real qualidade.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

O Voo do Navegador (1986)

Este é um filme que eu gostava de ver no SBT quando criança, mas que nunca tinha revisto depois de adulto por achar que teria envelhecido mal — ou que pareceria malfeito em comparação com as produções do Spielberg que muitos desses filmes infantis/família dos anos 80 tentavam imitar (já viram Mac - O Extraterrestre?!). De fato, não dá pra comparar O Voo do Navegador com um filme do Spielberg em termos de direção e refinamento artístico, mas entre as produções da época que tentaram surfar na onda de E.T., esta é uma das que melhor se sustentam como filme independente. O que acontece nos quinze primeiros minutos é tão desconcertante e bem feito como gancho (lembrando também de De Volta para o Futuro) que acompanhar o resto da história se torna imprescindível. E o resto do roteiro é muito bem estruturado, no sentido de não ter blocos desinteressantes ou que não atendam progressivamente às expectativas criadas pela premissa inicial. Em termos de visual e execução, o filme também é mais bem cuidado do que eu me lembrava. A atuação do garoto principal é convincente, o design da nave cria um ótimo "movie prop" (considerando que o filme tem um dos primeiros usos de CGI no cinema, os efeitos da nave até que surpreendem), e o retrato da Flórida naquele período (associado aos sintetizadores de Alan Silvestri) é puro suco de nostalgia oitentista.


Flight of the Navigator / 1986 / Randal Kleiser

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Maio 2025 - outros filmes vistos

Pee-wee as Himself (2025 / Matt Wolf) — Tinha apenas uma vaga noção de quem era Pee-wee Herman (nunca tinha visto nem o filme do Tim Burton, As Grandes Aventuras de Pee-wee) e adorei conhecer sua história através deste documentário. Parte de sua tragédia se deve ao fato dele ter encontrado o sucesso na época "errada". Paul Reubens, em essência, era muito mais alinhado com a contracultura dos anos 70, mas foi na era Idealista dos anos 80 que seus dons encontraram um público. Esse conflito entre quem Reubens era de fato e quem seu público gostaria que ele fosse reflete o conflito interno do artista que, eventualmente, destruiria sua carreira. Apesar do desfecho trágico, a existência deste documentário acaba criando uma espécie de final feliz para Reubens, ao mostrar sua vida por uma perspectiva mais compreensiva e desconhecida pela maioria.

Sonic 3: O Filme
(Sonic the Hedgehog 3 / 2024 / Jeff Fowler) — Uma coleção de clichês tentando se amontoar em um filme. Não é uma produção malfeita ou com falhas notáveis, mas não há uma cena sequer que emane autenticidade. Tudo é incrivelmente pasteurizado, baseado em ideias excessivamente reutilizadas no cinema — desde a trama geral sobre a arma destruidora de mundos que, para ser desativada, depende dos heróis juntarem duas partes de uma chave, até as cenas individuais: temos a "dança" através do salão cortado por feixes de laser, a montagem cômica/nostálgica ao som de Wouldn't It Be Nice, piadinhas sobre a cafonice de novelas mexicanas — toda cena é composta de ideias enlatadas como essas, e nada mais (Mentalidade Clichê). A mensagem sobre o amor superar o ódio é a versão simplificada de algo que você leria num livro de autoajuda de banca de jornal.

Premonição 6: Laços de Sangue (Final Destination: Bloodlines / 2025 / Zach Lipovsky, Adam B. Stein) — Os set pieces não são tão satisfatórios quanto os dos filmes anteriores, mas a fórmula geral da franquia ainda rende um filme assistível. Há alguns toques de Idealismo Corrompido no casting e no humor (um dos roteiristas trabalhou em Pânico VI, Abigail), mas nada que arruíne totalmente a diversão.

Homem com H
(2025 / Esmir Filho)
— Segue o modelo das cinebiografias modernas, com algumas de suas limitações narrativas, mas em termos de atuações, capacidade de emocionar e de criar intimidade com o artista, faz melhor que muitas das grandes produções vindas de fora.

Thunderbolts* (2025 / Jake Schreier) — Acima do padrão Marvel em termos de direção e atuações, mas a história é tão insípida quanto de costume: um grupo de semi-vilões ou anti-heróis (há toda uma romantização do sofrimento, da melancolia) é atacado por um vilão maior ainda e passa o resto do filme tentando neutralizá-lo — um monte de negativos combatendo outros negativos, e a trama não envolve nenhum objetivo empolgante, que gere real antecipação. Permanece razoável até o clímax, que escorrega ao tentar uma abordagem mais psicológica, onde a "cura emocional" se torna o foco de todos os esforços, e a ação física vira puramente simbólica.

domingo, 25 de maio de 2025

TV Aberta, Monocultura e o Consumo Passivo

Parece haver uma correlação entre o declínio da audiência de mídias como TV aberta e rádio (em favor do YouTube, podcasts e redes sociais) e o senso de desintegração cultural, alienação social, etc. A internet foi, aos poucos, promovendo o fim da "monocultura" — aquela época em que todos pareciam estar por dentro das mesmas notícias, sabiam que novela estava no ar, que filmes faziam sucesso nos cinemas, que gírias estavam em alta, quem era famoso ou não, qual era a música do momento — e da sensação reconfortante de que, se você saísse na rua e abordasse uma pessoa aleatória, haveria uma grande interseção entre seus universos.

A cultura atomizada criada pela internet pode ter seu lado positivo, mas a ausência de uma "monocultura" também traz problemas. Acredito, inclusive, que a nostalgia que muitos sentem hoje em relação ao passado — às vezes acompanhada de uma aversão equivocada a estrangeiros — pode estar ligada a um anseio por esse senso de coesão cultural promovido pelas mídias tradicionais.

De uns meses pra cá, voltei a consumir mais rádio e TV aberta — não só para resgatar um pouco dessa coesão, mas também por sentir falta do "modo passivo" de consumo de conteúdo. Na internet, cada um é responsável por criar sua própria cultura. Isso te força a um modo "ativo" constante de consumo: você está sempre escolhendo os conteúdos aos quais será exposto, sempre selecionando, tomando decisões, se autoestimulando. Sem essa autoestimulação, nada acontece — nada vem do mundo externo. Não há nada de errado com isso, mas é importante lembrar que existe uma diferença entre esse tipo de atividade e a de ser exposto passivamente à "monocultura" — pense na diferença entre escutar sua música favorita em um CD e ouvi-la inesperadamente no rádio. Quando um conteúdo é transmitido por uma mídia de massa "oficial", ele ganha uma existência pública — uma relevância cultural que não pode ser construída individualmente.

Sabe quando você fica horas procurando algo para ver no streaming, mas simplesmente não consegue decidir? O problema, nessas situações, muitas vezes não é a ausência do "filme perfeito" para o momento — o que você quer, na verdade, pode ser sair do modo ativo de consumo e simplesmente relaxar, entrar em contato com a cultura ao seu redor — ser conduzido por uma programação definida externamente. E há valor nisso. Não só no descanso mental e no senso de conexão, mas também no lado prático de estar em contato com a sociedade em que você vive. Temos que lidar diariamente com pessoas diferentes de nós, com eventos externos que impactam nossas vidas — então, mesmo que você seja crítico a boa parte da cultura, há vantagens em estar familiarizado com a realidade além da sua bolha.

Acredito, inclusive, que plataformas como a Netflix estão perdendo uma grande oportunidade ao ignorarem esses modos diferentes de consumo. Se, além do catálogo normal, os serviços de streaming tivessem um modo "ao vivo", com uma programação 24h de conteúdos selecionados pela plataforma, haveria um grande público para isso. Seria uma forma de promover estreias simultâneas e outras experiências que sempre associamos à TV tradicional.

A polarização política foi uma das grandes responsáveis por espantar o público da TV aberta, já que o contato com ela passou a ser desgastante para quem não estava sintonizado com determinadas ideologias. Isso pode ter tido consequências piores do que se imaginava. De uns tempos pra cá, no entanto, os discursos polarizantes perderam força, e emissoras como a Globo parecem estar tentando atenuar seu conteúdo para atrair de volta as pessoas que haviam se afastado. Se a TV aberta voltar a ser convidativa para todo tipo de público, e parte da "monocultura" for resgatada, essa pode ser uma das formas mais eficientes de reintegrar aquilo que foi desintegrado na sociedade nas últimas décadas.

Evitando o "Papo Brisado"

Meu impulso para escrever este texto veio depois de ouvir um podcast no YouTube, onde o convidado começou a divagar sobre questões filosóficas de maneira tão caótica que, por alguns minutos, achei que estava tendo uma mini bad trip. Foi um exemplo perfeito do que chamo de Papo Brisado: uma conversa existencial abstrata que perde totalmente a clareza e acaba em um caos epistemológico onde ninguém sabe mais do que está falando.

Vou transcrever abaixo alguns trechos em que ele argumentava a favor da espiritualidade e da eternidade da alma:

“A linguagem é muito esquisita. Quando eu digo: ‘Eu vim neste podcast’, eu nunca mais vou ter deixado de vir. Então, eu ter vindo no podcast é uma coisa eterna. Quando a coisa sai do ‘não ser’ e vai para o ‘ser’, ela se torna eterna.”

“Eu não consigo enxergar nada na realidade que não tenha uma causa e uma consequência. Existe algo, existe o movimento desse algo, existe algo que causou esse movimento, e esse movimento vai para algum lugar. Se eu chego à lógica de que tudo tem isso, eu também vou chegar à lógica de que ‘tudo isso’ também tem algo que funciona da mesma forma em relação a tudo isso. Olha que louco: pela lógica linguística, pela forma como a gente consegue pensar através da linguagem, a gente chega em questões espirituais. E eu fico pensando: por que o ser humano chega nisso? Se isso fosse uma ilusão, por que ela seria tão perene, forte e frequente? Seria como falar assim: ‘a cobra tem uma visão de calor, só que essa visão de calor da cobra é ilusória, e a coloca sempre em situações erradas’. Mas não é o caso. A visão de calor da cobra funciona para ela se movimentar. Assim como o golfinho tem o sonar. O cachorro tem o olfato. Da mesma forma, o ser humano tem essa coisa de explorar. E onde dá essa exploração? Ela sempre termina em coisas não materiais.”

A confusão que surge desse tipo de conversa é extremamente incômoda. Fica impossível dialogar com alguém assim, pois, em uma única fala, veja que ele mistura diferentes tópicos, tenta provar a validade dos sentidos, da razão, a existência de Deus (através do argumento da causa primeira) e encontrar um propósito para a vida humana em uma noção duvidosa de “eternidade”.

Como uma espécie de kit de primeiros socorros para conversas filosóficas que desandam, vou listar abaixo algumas das causas por trás do Papo Brisado. Com isso, você saberá melhor como desfazer os nós em uma conversa desse tipo e redirecioná-la para um caminho mais produtivo:

Problemas cognitivos

É preciso reconhecer que muitas pessoas simplesmente não têm organização mental suficiente para sustentar uma conversa altamente abstrata. Nesses casos, o ideal é evitar esse tipo de diálogo ou mantê-lo em um nível relativamente superficial.

Falta de conhecimento

Papos Brisados muitas vezes ocorrem porque os participantes são amplamente ignorantes no que diz respeito à ciência e à história da filosofia. Eles conversam como se fossem as primeiras pessoas a pensar sobre aquilo — ignorando boa parte do que a ciência já sabe e o fato de que a filosofia é uma disciplina bem estabelecida, organizada em ramos como metafísica e epistemologia — e terminam em conversas caóticas, sem estrutura, cheias de misturas de categorias e confusões conceituais que já foram resolvidas há séculos por pensadores conhecidos.

Problemas de linguagem

É importante sempre usar termos com clareza, para garantir que todos estejam se referindo aos mesmos fenômenos. Quando alguém usa palavras como “Deus”, “espiritual”, “linguístico”, “metafísico”, a pessoa pode estar se referindo a algo diferente daquilo que você entende por esses termos — e essa falta de definição é uma das grandes causas por trás do Papo Brisado. (Por medo de ser considerado burro ou inconveniente, o interlocutor muitas vezes finge que está entendendo o que o outro está falando, evita pedir definições, esclarecimentos, exemplos concretos, e a conversa se torna mais uma performance do que uma troca real de ideias.)

Perspectivas limitadas

Materialismo — Em conversas assim, é comum encontrar alguém que parece partir do princípio de que apenas o mundo material é científico, e que tudo no universo — inclusive a vida e a consciência — deveria ser totalmente explicável pela lógica newtoniana. Se a pessoa não aceita que existe tanto matéria quanto consciência no universo, e que isso é algo natural, ela estará sempre chocada com coisas óbvias: achará “muito louco” o fato de uma pessoa poder perceber um objeto, ter uma ideia, formar conceitos, se comunicar com outra consciência — tudo ligado à vida parecerá inexplicavelmente mágico, fantástico, apesar de serem coisas que até uma criança vê como naturais. Esse materialismo implícito transforma rapidamente uma conversa filosófica em um Papo Brisado.

Mentalidade convencional — Outro erro comum é o da pessoa de “senso comum” que ainda não aceita plenamente que existe um mundo além da bolha familiar em que ela vive — que a Terra é apenas um entre milhões de planetas no universo, que a evolução das espécies é real, etc. Essa pessoa acha que a realidade perceptível e imediata ao seu redor deveria ser a única realidade, e passará horas dando voltas em torno de fatos óbvios, achando “muito loucos” fenômenos que a ciência já explicou há muito tempo.

Objetivos impossíveis

Explicar o inexplicável — A motivação por trás de um Papo Brisado muitas vezes é tentar solucionar os “mistérios” do cosmos que milênios de ciência e filosofia ainda não resolveram: a origem do mundo material, da vida, da consciência, do tempo, etc. Se esse é o objetivo da conversa, ela inevitavelmente cairá em paradoxos e becos sem saída. Primeiro, porque algumas dessas questões estão além do nosso conhecimento científico atual — e dificilmente alguém da sua roda de conversa será o gênio que apresentará a teoria inédita que solucionará tudo isso. Segundo, porque muitas dessas perguntas são irracionais por natureza — “o que há além do universo?”, “o que havia antes do tempo?” — são questões que não podem ser respondidas, como gastar horas debatendo o formato de um “triângulo de quatro lados”. Nesses casos, é importante aceitar que o propósito dos participantes é apenas explorar poeticamente certas ideias, e que a ausência de respostas não é nenhuma prova contra a razão humana.

Transcender a condição humana — A busca incessante por conhecimento e certezas muitas vezes revela um interlocutor cujo desejo implícito é o da onisciência e da imortalidade. Essa pessoa se sente profundamente incomodada com as limitações do conhecimento humano. Age como se o universo estivesse conspirando para enganá-la, destruí-la — e sua única proteção fosse o conhecimento absoluto. Assim, o conhecimento deixa de ser uma ferramenta para vivermos bem na Terra e passa a ser um meio de transcender a condição humana. Ela perde de vista o contexto humano — precisa ser lembrada de que, para sermos felizes e bem-sucedidos neste universo, o que é conhecível já pode ser suficiente.

Desonestidade intelectual

Em alguns casos, a conversa se torna nebulosa não por uma dificuldade honesta de comunicação, mas porque os participantes, no fundo, não estão atrás de respostas — apenas querem confirmar visões de mundo previamente estabelecidas.

Subjetivismo/Misticismo — Há pessoas que, emocionalmente, preferem o mistério à explicação, o vago ao definido, o esotérico ao científico — e veem uma certa beleza na confusão, no paradoxal. Nesse caso, é importante não se iludir achando que o objetivo da pessoa é chegar a respostas. O prazer dela pode vir justamente da romantização do inexplicável.

Política — Há pessoas que colocam suas crenças políticas acima da lógica e da coerência. Para algumas, o objetivo da conversa filosófica pode ser justamente gerar caos epistemológico, a fim de proteger ideias que não estão abertas a questionamento. A busca por respostas e o linguajar científico são apenas uma fachada.

Esse tipo de desonestidade intelectual torna o Papo Brisado particularmente indigesto. Além de ter que lidar com o caos cognitivo, de pensar dez vezes mais do que o necessário para desfazer todos os problemas de linguagem, de suportar a pretensão de pessoas que não sabem do que estão falando, seu desconforto pode vir também da percepção de algo hostil por trás da conversa: o fato da pessoa estar se aproveitando do seu interesse por fatos e ideias complexas para preparar um ataque à razão e à objetividade. Assim como os Anti-Idealistas na arte atraem o público se apropriando de aspectos do Idealismo apenas para subvertê-los depois, algumas pessoas usam conversas filosóficas como isca para envolver mentes sedentas por conhecimento e aprimoramento intelectual, quando tudo o que elas querem é enguiçar sua mente.

Portanto, para evitar o Papo Brisado, lembre-se de que existem certas condições para que uma discussão filosófica seja produtiva. A pessoa precisa ter boa cognição, conhecimento básico sobre o tema, usar palavras com clareza, não pode ter objetivos impossíveis com a conversa, nem partir de perspectivas filosóficas irracionais e, acima de tudo, precisa ser intelectualmente honesta. Alguns desses erros podem ser corrigidos ao longo da discussão, mas, quando eles começam a se acumular a ponto de tornar impossível desfazer os nós, é hora de mudar educadamente de assunto e poupar sua energia mental.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Lilo & Stitch (2025)

O maior empecilho deste remake é o fato de o original ser uma animação que, embora simpática, tem uma historinha bem água-com-açúcar. Se Lilo & Stitch (2002) tem algo que justifica sua popularidade, é Stitch, que é maravilhosamente concebido. Mas a história em si é uma variação despretensiosa de E.T. que serviria bem para um episódio de uma série animada de TV.

A boa notícia é que o live-action não só consegue preservar o que o original tinha de mais especial — Stitch continua igualmente divertido — como também dá uma polida no roteiro e na caracterização de alguns dos outros personagens: tanto Lilo quanto a irmã mais velha, pra mim, ficaram mais carismáticas nesta versão. É um dos raros casos também em que um remake moderno traz algumas melhorias em termos de valores e mensagem em relação ao original, em vez de apenas corromper a obra. Isso vem da sensibilidade de Dean Fleischer Camp, de Marcel the Shell with Shoes On, que traz personalidade para a produção, pequenos toques que dão vida a cada cena, sem deixar de cumprir seu dever de ser fiel ao material base.

Lilo & Stitch / 2025 / Dean Fleischer Camp

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Filmes Nota 6 Salvariam a Indústria

Astros às vezes são definidos como aquele ator capaz de fazer o público ir ao cinema só para vê-lo, independentemente do filme — e a visão de muitos hoje é que não existem mais astros como antigamente, pois nenhum ator atualmente garante bilheteria. Mas me ocorreu que isso nunca foi literalmente verdade. Se nomes como Schwarzenegger ou Tom Cruise eram suficientes para garantir bilheteria, isso não se devia apenas ao carisma deles, mas também ao fato do público ter certa confiança na qualidade básica dos filmes: a vasta maioria dos filmes que você via, até algumas décadas atrás, cumpria sua função mínima como entretenimento. Um filme "Nota 6" pode não virar o favorito de ninguém, mas rende um programa divertido e faz valer o ingresso.

O problema hoje é que não há mais essa confiança. Princípios e critérios foram jogados pela janela, e é extremamente comum você ver filmes que são uma completa perda de tempo, que não arrancam uma emoção positiva sequer da plateia. Alguns atores atuais teriam potencial para garantir bilheteria "apenas com seus nomes" se aparecessem consistentemente em filmes "Nota 6" ou melhores (em uma métrica Idealista). O público não é tão rigoroso quanto se imagina. O sucesso recente de filmes como Um Filme Minecraft ou Premonição 6: Laços de Sangue mostra que, quando um filme entrega o básico em termos de diversão, o público comparece e responde. Mas esse "básico", que costumava estar presente na vasta maioria dos lançamentos comerciais (o que permitia que as pessoas saíssem de casa para ir ao cinema e escolhessem o filme às vezes só quando chegavam no multiplex), hoje é raridade.

Pegue a Sandra Bullock, por exemplo. Velocidade Máxima (1994) foi o filme que a lançou ao estrelato, e é de fato um filme de ação bem acima da média. Mas quase qualquer filme que você visse com ela nos anos 90 seria no mínimo um passatempo agradável, ainda que não atingisse o mesmo patamar: Enquanto Você Dormia, A Rede, Tempo de Matar e até Velocidade Máxima 2, considerado uma "bomba" pela crítica. O mesmo pode ser dito de Eddie Murphy, Harrison Ford, Meryl Streep, Gene Hackman e até de astros da Era de Ouro (muitos musicais da Judy Garland ou do Fred Astaire eram apenas OK). Era como se o sistema e as práticas estabelecidas na indústria criassem um piso mínimo (em termos de valor de entretenimento) abaixo do qual pouca coisa se sustentava.

Hoje há tantos produtos completamente ocos nesse sentido que é necessário um trabalho de curadoria enorme só para você descobrir algo que atinja esse piso mínimo e pareça um filme legítimo: algo que tenha uma trama minimamente instigante, fácil de acompanhar, com atores/personagens atraentes, "Princípio da Ascensão", uma mensagem digna etc. Portanto, não é primeiramente a ausência de gênios isolados e de atores carismáticos no cinema que está fazendo a indústria colapsar. É a falta de um Sistema, de padrões, dessa base sólida de filmes "Nota 6", entregando entretenimento consistentemente, semana após semana, que fazia do cinema uma opção confiável de lazer — mesmo quando deixava a desejar no aspecto artístico.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Missão: Impossível – O Acerto Final

Não tinha gostado tanto da Parte 1, e este, infelizmente, me agradou ainda menos. O set piece dos monomotores no final é o único que se destaca. O resto do filme é uma grande enrolação — incontáveis cenas de reuniões em salas fechadas, onde se discutem coordenadas, códigos secretos, todo tipo de MacGuffin, mas você nunca entende direito o que está acontecendo (pra não ficarem muito paradas, essas cenas de conversa são sempre entrecortadas por clipes de cenas de ação de filmes anteriores ou flashforwards de sequências que ainda estão por vir — uma tática incrivelmente brochante).

Ethan Hunt, assim como no anterior, continua parecendo sem controle da situação, perplexo em uma narrativa onde tudo está sempre dando errado, da qual ele sai vivo mais por sorte do que por eficácia. O Acerto Final é o filme mais longo da franquia (e um dos mais caros de todos os tempos, com um orçamento estimado em 400 milhões de dólares!), mas é o mais diluído em termos de espetáculo e entretenimento — refletindo essa lógica do "pague o dobro e leve a metade" que virou a norma no mundo pós-Covid. A produção física é caprichada e a dedicação de Tom Cruise é indiscutível, mas o roteiro e a direção dão aquela sensação de que os artistas de Hollywood se tornaram preguiçosos e não investem mais a energia criativa necessária para fazer cada minuto de projeção valer a pena.

Mission: Impossible – The Final Reckoning / 2025 / Christopher McQuarrie

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Cultura - Maio 2025

5/5 - Tarifas em Hollywood

Trump anunciou tarifas altíssimas para filmes produzidos internacionalmente, para incentivá-los a voltar para os EUA. Se for real, provavelmente será uma medida desastrosa — e o pior é que, mesmo entre os críticos das tarifas de Trump, muitos terão receio de mencionar a causa original do problema: se é caro demais produzir filmes nos EUA, isso já se deve a intervenção estatal (estimulada por greves, sindicatos, etc.). Todos querem que os filmes voltem a ser feitos nos EUA, mas ninguém quer torná-los mais baratos eliminando impostos, regulações, e permitindo que as pessoas trabalhem por cachês menores. Descartando essas possibilidades, resta apenas uma "solução" para segurar os filmes no país: mais intervenção estatal — ou seja, o governo multar produções internacionais baratas, ou dar dinheiro aos estúdios americanos para compensar o alto (e artificial) custo de produção.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Dinâmica da Espiral - Insights

A Dinâmica da Espiral pode ser aplicada a inúmeros tópicos e gerar infinitas reflexões. Seria impossível cobrir todas elas, mas vou fazer um breve resumo dos principais insights que tive lendo os livros Spiral Dynamics (Beck / Cowan), A Theory of Everything (Ken Wilber) e outros conteúdos relacionados — contrastando a Dinâmica da Espiral com o Objetivismo e outros conceitos relevantes aqui para o blog.

IDEALISMO

Não cabe a mim posicionar o Idealismo na Espiral, mas a Dinâmica pode ser muito útil no universo do entretenimento. Ao entendermos os sistemas de valores que governam cada nível, podemos garantir que não estaremos ignorando necessidades humanas essenciais, nem nos entregando aos aspectos negativos de cada estágio — aqueles que são insustentáveis ou que impedem a convivência harmoniosa com os outros níveis.

Acredito que a maioria das necessidades legítimas de cada nível da Espiral é coberta pelos 4 Pilares e por outros princípios do Idealismo: Objetividade atende às necessidades dos níveis AZUL e LARANJA; Autoestima, às do VERMELHO e LARANJA; Benevolência, às do VERDE; Excitação, às dos níveis BEGE, ROXO e VERMELHO, etc. Muitos dos "inimigos do entretenimento" que discuto combatem os aspectos negativos de cada estágio: a fantasia desconectada da realidade do nível ROXO; a violência e os "excessos de testosterona" do VERMELHO; o Idealismo Reprimido do AZUL; o comercialismo vazio do LARANJA, etc. Como, nos últimos 15 anos, o nível que mais vem causando tumulto na cultura é o VERDE, muitos dos meus textos são focados nos aspectos problemáticos desse estágio: a cultura woke, heróis envergonhados, Anti-Idealismo, Casting Naturalista, Naturalismo, Experimentalismo, etc.

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OBJETIVISMO

Objetivismo na Espiral

Na minha visão, a filosofia Objetivista apresenta uma perspectiva de 2º Patamar, apesar de carregar fortes características do nível LARANJA. Os Problemas do Objetivismo que costumo discutir derivam de algumas "sombras" dos níveis LARANJA e AZUL que atingem na filosofia. Minha percepção é a seguinte: Ayn Rand tinha uma animosidade nem sempre saudável ou justificada em relação ao nível VERDE, por associá-lo à esquerda radical da época — o que a fazia regredir, em alguns tópicos, a níveis anteriores da Espiral.

Nathaniel Branden me parece ter transicionado para o 2º Patamar de forma mais plena (Branden, aliás, era amigo de Ken Wilber). Quando ele brincava dizendo que “Ayn Rand nem sempre era uma boa objetivista”, acredito que ele se referia às sombras do 1º Patamar que se revelavam em algumas posições dela, que nem sempre refletiam seus ideais mais elevados.

É importante notar que o movimento Objetivista é diferente da filosofia de Rand em si, e que muitos seguidores dela (especialmente os mais ortodoxos) podem ter mais características do nível AZUL ou LARANJA do que do 2º Patamar. 

Vícios Humanos

Embora a Dinâmica da Espiral não tenha uma ética desenvolvida, os males que ela atribui a cada nível (em sua versão não saudável) dialogam bastante com os males que o Objetivismo observa na sociedade. O misticismo e o tribalismo do nível ROXO; o uso da força bruta e o desrespeito pelos direitos individuais do VERMELHO; o autoritarismo e o racionalismo do AZUL, etc.

Nesse ponto, a teoria pode ser bastante útil ao Objetivismo, e traz uma vantagem: enquanto o Objetivismo vê todos esses “vícios” como expressões de uma mesma coisa — irracionalidade — a Dinâmica da Espiral dá uma explicação de por que diferentes pessoas adotam formas distintas de irracionalidade. O Objetivismo talvez esteja tão distante dos níveis mais baixos da Espiral que não enxerga com clareza os detalhes que fazem as pessoas adotarem um estilo de destruição ou outro.

A Dinâmica da Espiral dá um “zoom” em cada estágio e mostra que há uma ordem cronológica para cada tipo de problema, e que cada nível surge como resposta aos dilemas do nível anterior. Isso ajuda a entender por que certos fenômenos sempre andam juntos:

- Por que o “Attila” (VERMELHO) tem o “Witch Doctor” (ROXO) como parceiro.

- Por que há tanta hipocrisia na Igreja e em organizações conservadoras, onde pessoas supostamente no nível AZUL vivem tendo recaídas e revelando traços do nível VERMELHO ainda não totalmente reprimido (padres molestando crianças; maridos conservadores que traem esposas etc.).

- Por que certos ideais de esquerda (VERDE) são mais comuns entre pessoas “bem-nascidas”, que já usufruíram dos benefícios do capitalismo (LARANJA), e menos entre populações mais pobres e religiosas (VERMELHO/AZUL), que ainda não vivenciaram plenamente o nível LARANJA.

- Por que há tanta hipocrisia na esquerda militante (VERDE), especialmente em relação ao luxo e ao consumo (o fenômeno do “socialista de iPhone”), que são “ecos” do nível anterior (LARANJA).

Tudo isso acontece porque as características de um nível muitas vezes “vazam” para o nível seguinte, antes de serem substituídas por comportamentos mais elaborados.

Tabula Rasa

O principal desafio que a Dinâmica da Espiral apresenta para o Objetivismo é a sugestão de que o ser humano não nasce tão “tabula rasa” quanto Ayn Rand acreditava. Os teóricos da Dinâmica não afirmam que o ser humano nasce com ideias inatas, mas sugerem que nossos valores são moldados por fatores biológicos, psicológicos e sociais.

Por exemplo: uma pessoa não nasce com uma crença ou descrença no papel do governo; não há ideologia política inata. Mas, se suas condições “biopsicossociais” fizerem o nível VERMELHO predominar em sua personalidade, essa pessoa terá impulsos dominantes/agressivos, que a farão enxergar o mundo por uma lente de conflito — o que pode incentivá-la a desprezar a ordem social e os direitos individuais.

Pra que uma pessoa assim compreenda verdadeiramente a visão de direitos individuais e aja de acordo, ela precisará internalizar novos valores com base em experiência: vivenciar o nível AZUL, descobrir os problemas deste novo nível, resolvê-los, e então ascender ao nível LARANJA, onde talvez consiga viver segundo esses princípios — não basta ela ser exposta a argumentos lógicos e se convencer de um dia pro outro.

Natureza Humana

Como discuti no texto O Homem Comum Como Racional, a crença de Rand de que o homem não seria dominado por instintos e de que todos poderiam viver racionalmente sugere que, pra ela, o lugar natural do ser humano seria no 2º Patamar da Espiral (AMARELO / TURQUESA). Rand tinha a tendência de condenar moralmente os níveis do 1º Patamar (com exceção parcial do LARANJA — que ela romantizava e enxergava às vezes como AMARELO) e não percebia que havia certos degraus a serem subidos antes de alguém alcançar o nível de consciência de seus heróis.

Por isso, embora ela oferecesse aos seus leitores uma visão de 2º Patamar como modelo, ela não ajudava muito as pessoas a ascender até lá, pois não reconhecia a necessidade do 1º Patamar — queria apenas se livrar dele.

Capitalismo: 1º Patamar vs. 2º Patamar

O empreendedor que a Espiral posiciona no nível LARANJA tem uma atitude mais compatível com o “capitalismo predatório” — que Rand rejeitava — do que com o egoísmo racional representado por seus heróis. A visão de capitalismo proposta por Rand (e pelos Founding Fathers) é mais compatível com o 2º Patamar. Mas apenas uma pequena minoria da população está nesse nível. Isso significa que, na prática, o capitalismo é exercido majoritariamente por pessoas no 1º Patamar, que são menos éticas do que gostaríamos. Isso ajuda a esclarecer as confusões que discuti no texto Ambição vs. Ganância. Rand, por entender que o sistema criado pelos Founding Fathers vinha do 2º Patamar, às vezes romantizava os empresários que usufruíam desse sistema como se também tivessem uma consciência de 2º Patamar, quando, na verdade, a maioria permanecia no 1º.

Autossacrifício

A Dinâmica da Espiral pode trazer uma visão esclarecedora para Objetivistas sobre o conceito de autossacrifício. Como Rand via o ser humano naturalmente no 2º Patamar, o autossacrifício para ela era incompreensível: se o homem é essencialmente bom, por que ele deveria sacrificar seus valores? Agora, se a Espiral estiver certa — e a vasta maioria da população ainda estiver no 1º Patamar — as éticas de sacrifício do nível AZUL se tornam mais compreensíveis. O nível AZUL surge como resposta aos problemas do VERMELHO, caracterizado por gratificação imediata, egocentrismo e ausência de remorso. Se a consciência de uma pessoa está no nível VERMELHO, ela precisará da disciplina e do absolutismo do nível AZUL, em algum momento, para controlar seus impulsos. A grande confusão aqui (além das diferentes formas de se definir o termo “sacrifício”) é que, em geral, as ideologias de sacrifício são criadas para pessoas em um nível inferior ao AZUL — são elas que devem ouvir os pedidos de autossacrifício e abnegação, já que seus objetivos são, de fato, destrutivos. Mas Rand achava que esses filósofos altruístas estavam se dirigindo a seres humanos também nos níveis AMARELO/TURQUESA, e pedindo que eles vivessem uma vida de abnegação. Pode até ser que alguns filósofos mais niilistas quisessem o sacrifício de todos, até daqueles no 2º Patamar. Mas, no geral, esses discursos me parecem se dirigir ao 1º Patamar, muitas vezes nem levando em conta a existência do 2º, por se tratar de uma minoria numericamente insignificante.

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OUTROS INSIGHTS

Teoria dos Arquétipos

Os 12 Arquétipos e os níveis da Espiral têm muitos paralelos. Em vez de substituir uma teoria pela outra, acho que elas podem ser usadas em conjunto de forma eficaz no entretenimento, já que é possível imaginar variações de um mesmo Arquétipo em cada um dos níveis da Espiral (um Revolucionário no nível VERMELHO seria mais violento e impulsivo, enquanto um no nível VERDE seria mais democrático e intelectual).

Pêndulo

A noção de que a cultura dominante oscila entre eras mais individualistas e eras mais coletivistas é apoiada pela Dinâmica da Espiral, mas ela traz uma visão mais plausível que a ideia de ciclos perfeitamente simétricos e previsíveis proposta pelo livro Pendulum. Além disso, na Dinâmica da Espiral, a cultura nunca retorna exatamente ao mesmo ponto anterior. Ela oscila entre fases individualistas e coletivistas, mas sempre em um nível diferente, incorporando aprendizados dos ciclos anteriores e, portanto, se tornando mais sofisticada e trazendo novos desafios e qualidades.

Declínio Cultural

O declínio cultural que vem caracterizando o século 21 pode ser explicado pelo que a teoria chama de Gamma Trap — uma fase de frustração, ressentimento, cinismo, violência e radicalismo que acontece quando o sistema vigente de valores não consegue lidar adequadamente com os desafios da realidade, e a cultura entra em estagnação ou regride a níveis anteriores. No final do século 20, diria que a sociedade estava predominantemente no nível LARANJA, com muitos líderes já nos níveis VERDE/AMARELO. Mas o livro Spiral Dynamics aponta um erro que pode levar à regressão cultural ou a uma Gamma Trap: a tentativa de um nível mais complexo impor prematuramente seus valores a um nível menos complexo. O livro foi escrito nos anos 90, antes da era das redes sociais, mas já citava o exemplo de culturas mais simples sendo expostas, via televisão, a visões de mundo que não tinham maturidade pra absorver, que acabavam funcionando como “vírus psicológicos”. No século 21, podemos dizer que a internet e as redes sociais criaram uma pandemia desse tipo de vírus, levando várias culturas a se fecharem e a regredirem a níveis anteriores. Em especial, me parece que foi o desenvolvimento não saudável do nível VERDE que levou os níveis anteriores a preferirem regredir ao nível VERMELHO/AZUL, em vez de evoluírem para o AMARELO (os lockdowns e a resposta da sociedade à Covid, aliás, foram uma clara regressão ao nível AZUL).

Influência e Liderança

O livro Spiral Dynamics traz um insight útil quanto à liderança: líderes eficazes geralmente estão cerca de meio nível acima de seu público na Espiral. Assim, eles compartilham em grande parte da mesma visão de mundo, o que facilita a comunicação, mas trazem também uma perspectiva nova do próximo nível, ajudando seu público a ascender. A implicação é que, se você estiver mais de um nível acima de seu público-alvo, será mais difícil você influenciá-lo, por mais clara que seja sua comunicação. Para liderar ou impactar diretamente outras pessoas, o ideal é mirar no nível (ou na transição) logo abaixo da sua posição atual (LARANJA influencia quem está na transição AZUL/laranja; LARANJA é liderado por quem está na transição laranja/VERDE, etc.).

Isso não quer dizer que pessoas no 2º Patamar não possam ter influência nos níveis mais baixos, mas talvez sugira que essa influência será menos direta — será exercida com o auxílio de pessoas mais próximas dos níveis do público-alvo.

Dabrowski e Desintegração Positiva

Os 6 instintos humanos descritos por Dabrowski têm fortes paralelos com as motivações dos 6 níveis do 1º Patamar da Espiral:

- Instinto de Auto-Preservação (BEGE)

- Instinto Sexual (BEGE/VERMELHO)

- Instinto Religioso (ROXO/AZUL)

- Instinto de Luta (VERMELHO)

- Instinto de Posse (LARANJA)

- Instinto Social (ROXO/VERDE)

Na teoria de Dabrowski, há apenas dois tipos de estágios integrados (Integração Primária vs. Integração Secundária), separados por vários estágios de desintegração. A Dinâmica da Espiral, por outro lado, sugere que cada um dos oito níveis da Espiral permite personalidades integradas, e que desintegrações ocorrem toda vez que a pessoa muda de nível. Isso contradiz parcialmente Dabrowski, mas as duas teorias poderiam ser integradas da seguinte forma: as desintegrações que acompanham as mudanças de nível dentro do 1º Patamar da Espiral seriam “mini desintegrações”, que não transformam completamente a personalidade. Já a “Desintegração Positiva” proposta por Dabrowski seria a transição mais drástica, que ocorre entre o 1º Patamar da Espiral (VERMELHO, AZUL, LARANJA — onde vive a maioria da população) e o 2º Patamar (AMARELO/TURQUESA), onde o indivíduo tem que adquirir independência psicológica da cultura. O nível VERDE, atualmente, seria o nível onde ocorre a Desintegração descrita por Dabrowski, o que explicaria a instabilidade particular deste nível.

Extrema Esquerda e Extrema Direita

O nível VERDE em si é (ou pode ser) saudável, mas a Dinâmica da Espiral explica como níveis mais baixos podem se mascarar como níveis mais elevados e socialmente aceitos para impor suas agendas. A cultura woke e o moralismo autoritário da esquerda moderna seriam, portanto, não expressões genuínas do nível VERDE, mas manifestações dos níveis VERMELHO e AZUL, que adotam discursos VERDES para ganhar controle. Da mesma forma, a direita nacionalista e autoritária frequentemente adota discursos do nível LARANJA (livres mercados, direito à propriedade), quando na verdade expressa os mesmos níveis VERMELHO e AZUL em que se encontra a esquerda radical.

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CRÍTICAS À TEORIA

TURQUESA

O nível TURQUESA não me parece tão bem diferenciado do nível AMARELO quanto os níveis do 1º Patamar se distinguem entre si. O TURQUESA parece apenas uma repetição do AMARELO, mas com uma linguagem mais mística/esotérica que não esclarece muita coisa. Por isso, tenho certas dúvidas quanto à validade do nível TURQUESA (talvez por eu não ter chegado lá) e quanto à ideia de que a Espiral continuaria oscilando eternamente entre individualismo e coletivismo, repetindo as dinâmicas do 1º Patamar, sem nunca chegar a qualquer certeza ou a valores estáveis.

VERDE vs. LARANJA

O nível VERDE, dependendo de como é descrito, pode adquirir ares socialistas que tornam difícil, especialmente para quem vem de uma perspectiva Objetivista, enxergá-lo como superior ao nível LARANJA. Nem sempre concordo com a forma como o VERDE é caracterizado. A maneira pela qual considero aceitável colocá-lo acima do LARANJA é a seguinte: o LARANJA seria aquele tipo de sociedade científica, capitalista, mas excessivamente focada no mundo material — ainda alienada do universo interior do ser humano, de questões psicológicas, sociais, etc. Nesse sentido, o LARANJA é de fato um nível incompleto. Isso não quer dizer que aquilo que vem depois do LARANJA deixe de ser científico ou racional — como às vezes sugerem alguns teóricos da Espiral — mas sim que o nível VERDE passa a considerar as ciências humanas tão importantes quanto as demais. No nível LARANJA, por exemplo, veríamos aquelas pessoas que escolhem ser médicas ou advogadas por ser a carreira que traz maior retorno financeiro, segurança e oportunidades — uma trajetória profissional típica do século 19 e da primeira metade do século 20 (acompanhada de casamentos arranjados, etc.). Só no nível VERDE as pessoas começam a levar a sério suas emoções, a compatibilidade da carreira com seus valores, aptidões, propósito de vida, etc. Por essa ótica, o VERDE surge, sim, como uma evolução do LARANJA, promovendo uma vida mais plena e feliz. Agora, quando certas leituras da Espiral associam o VERDE à redistribuição de propriedade, a um ambientalismo que não leva em conta o ser humano, a um igualitarismo que desmantela qualquer senso de hierarquia — aí já vejo essas características como manifestações "não saudáveis" do nível VERDE — não como parte do lado virtuoso.

Política

Até agora, não vi teóricos da Espiral darem soluções políticas viáveis para as divergências entre os níveis. Líderes de 2º Patamar, supostamente, deveriam conseguir conciliar os interesses de todos os níveis da Espiral — mas como chegar a um acordo entre a anarquia do nível VERMELHO, o autoritarismo do nível AZUL, o liberalismo do nível LARANJA e o coletivismo do nível VERDE? A visão de governo Objetivista, que defende uma liberdade limitada apenas pelos direitos individuais dos outros, ainda me parece a melhor solução para qualquer sociedade. Um dos perigos da teoria é que algumas interpretações da Espiral podem levar à erosão do conceito de direitos individuais (pelo desejo de acomodar os interesses de todos os níveis) e à visão de que seria aceitável impor ditaduras "leves" para disciplinar os níveis abaixo do AZUL.

Embasamento

O embasamento científico que vi até agora para a Dinâmica da Espiral não é muito forte. Embora a teoria descreva muito bem diversos fenômenos, ainda não vi boas explicações sobre o que leva esses sistemas de valores a se desenvolverem nas pessoas, o quão maleáveis ele são, se há influência genética, etc. Há muitas perguntas no ar, então não quero dar a impressão que abracei tudo o que a teoria propõe. Para mim, a Espiral vem se tornando só uma ferramenta útil pra compreender a sociedade e o comportamento humano — uma espécie de teoria dos Arquétipos turbinada, mais aplicável a problemas mundiais e questões do dia a dia.

terça-feira, 29 de abril de 2025

Cultura - Abril 2025

29/4 - O sucesso de Pecadores

Fiz uma avaliação breve e meio desdenhosa de Pecadores que talvez tenha dado a impressão de ser um filme irrelevante, mas ele na verdade deve se tornar um dos lançamentos mais aclamados de 2025, com impacto significativo na temporada. O que explica isso? Pra mim, um dos motivos é o fato do filme cair parcialmente na categoria Estilo Acima de Conteúdo — e filmes autorais, com uma estética cool/desconstruída, um estilo visual sexy e um conteúdo vago, que traz alguma reflexão mais profunda, mas não exige real elaboração do público, costumam ser os que recebem as avaliações mais entusiasmadas hoje em dia (pense nos quatro filmes mais populares do ano passado no Letterboxd: A Substância, Rivais, Nosferatu, Duna: Parte 2).

Mas, em vez de ser artsy demais, Sinners leva essa estética para o universo dos "macho filmes" de ação, acrescentando testosterona (do tipo ruim), o que cria um apelo popular extra. Além disso, o filme tem um discurso duvidoso de orgulho racial que inflama as emoções daqueles que se deixam levar por esse tipo de empoderamento.

Sim, Pecadores é um filme original, com imagem e som de ótimo nível, mas não acho que é só sua qualidade técnica que vem gerando essa resposta positiva.


5/4 - Vi dois vídeos esta semana que me fizeram sentir um pouco menos desalinhado com as discussões no mundo mainstream.

The Era Of Slop Entertainment — Este vídeo (citado inclusive pelo Critical Drinker) traz o ponto que discuti em fevereiro: apesar de a era woke do cinema estar em declínio, o problema da falta de talento e criatividade continua sendo uma grande questão. Até agora, alguns falavam como se acabar com a cultura woke resolveria a maioria dos problemas, mas muita gente já está começando a perceber que esse não será o caso. Me preocupam um pouco as referências que esses analistas mais populares têm de cinema ideal (voltar para os "tempos áureos" de Homem de Ferro, pra mim, ainda não seria o bastante), mas pelo menos há uma insatisfação apontada pro lugar certo.

How Capitalism Killed the Movie Star — Este vídeo discute a questão da "morte dos astros", que descrevi como um problema-chave no texto Como Salvar o Cinema. Há vários pontos interessantes no vídeo, mas ele atribui o declínio dos astros ao "capitalismo" — ao fato de que, hoje, os estúdios estão mais focados em IPs e personagens do que em atores. Mas vejo furos nessa explicação. Julia Roberts e Schwarzenegger não foram exatamente frutos do comunismo. E por que os astros da música hoje também seriam menores em estatura e impacto global? Apesar de uma coisa interferir na outra, atribuo a morte dos astros mais ao lado cultural do problema do que ao lado financeiro. Ainda assim, é bom ver mais e mais gente apontando o dedo para essa questão.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Abril 2025 - outros filmes vistos

O Contador 2 (The Accountant 2 / 2025 / Gavin O'Connor) — Achei bem mais fraco que o primeiro. A produção tem um clima de filme para streaming, daqueles sem verba para sequências de ação espetaculares, que acabam sendo forçados a focar no desenvolvimento de personagem e em diálogos em cenários de escala modesta. O problema é que a trama e os personagens não são interessantes a ponto do espetáculo não fazer falta. A química entre Affleck e o irmão ("buddy criminals") passa longe dos filmes buddy cop antigos, que apesar das tramas simples, muitas vezes brilhavam pelo carisma das duplas.

Tempo de Guerra (Warfare / 2025 / Alex Garland, Ray Mendoza) — Só assisti a 40 minutos e fui embora do cinema. É daqueles filmes desconstruídos que te jogam no meio de uma situação sem introduzir os personagens, sem nunca estabelecer motivações pessoais, propósitos, obstáculos — e esperam que você continue assistindo só por respeito à tragédia real que ele retrata, não por um real envolvimento narrativo. 

Pecadores (Sinners / 2025 / Ryan Coogler) — O tipo de subversão de gênero misturada com comentário social que eu esperaria de um cineasta como Jordan Peele, não de Ryan Coogler. Vem nessa onda de filmes autorais desajeitados que, na tentativa de se provarem "não-formulaicos" e de atender à atual demanda por obras originais, jogam fora todos os princípios narrativos — inclusive os que não deviam.

G20 (2025 / Patricia Riggen) — Leva o troféu "tão ruim que é bom" de 2025. A única explicação que consigo dar para esse filme é a seguinte: era um roteiro dos anos 90, estilo Força Aérea Um, que foi engavetado na época por ser absurdo demais, e que agora decidiram reescrever, inverter os gêneros dos protagonistas e transformar em uma paródia de filmes woke. O problema é que, no fim, o roteiro foi entregue a alguém sem um pingo de senso de humor, que dirigiu tudo de maneira séria.

Como Ganhar Milhões Antes que a Avó Morra (2024 / Pat Boonnitipat) — Dramédia tailandesa semi-naturalista que, por um lado, me desagrada por ser baseada em uma visão malevolente de mundo e em uma ética de culpa e dever, mas, por outro, tem minha simpatia por tentar contar a história mais agradável possível dentro dessas premissas, focando em personagens gostáveis e em uma versão "higienizada" do horror existencial que normalmente acompanha esse tipo de enredo.

Black Mirror (2011—) T7.E1 "Common People" — Nem todos os episódios da 7ª temporada me agradaram, mas este primeiro é um excelente exemplo do que Black Mirror faz de melhor: pegar conceitos inovadores de ficção científica para gerar reflexão, alertar o espectador e fazer comentários culturais ácidos (é aquela rara crítica ao "capitalismo" no entretenimento que consegue trazer pontos válidos sem distorcer totalmente a realidade).

Reagan (2024 / Sean McNamara) — Outro dia vi um vídeo do Andrew Klavan onde ele disse algo pertinente: não é possível substituir os atuais artistas de Hollywood por conservadores, apenas por outros artistas (que talvez até acreditem no conservadorismo, mas essa seria uma questão à parte). Reagan é um filme que parece feito por conservadores, não por cineastas. O resultado é sofrível, e se depender do "dream team" que Trump escolheu para liderar Hollywood (Mel Gibson, Jon Voight, Stallone), veremos cada vez mais dessa estética.

Um Filme Minecraft
(A Minecraft Movie / 2025 / Jared Hess) — Chama atenção por não ser cínico nem ter os toques Corrompidos que costumam definir esse tipo de filme. Em vez de uma aventura irônica, Minecraft funciona como uma comédia de fato, sustentada por um fluxo constante de piadas e por personagens abertamente cômicos (o filme em nenhum momento os confunde com heróis). Não dá para dizer que é um bom roteiro, mas o elenco e o humor orgulhosamente juvenil podem render uma sessão divertida.

Desconhecidos (Strange Darling / 2024 / JT Mollner) — Tenta, através do estilo e de desconstruções narrativas, tornar interessante um conteúdo que, por si só, não renderia um filme satisfatório. Imagine a mesma história contada de forma linear e pergunte-se: algum dos personagens se tornaria gostável? Os eventos da trama e a conclusão gerariam algum prazer ou significado?

Vitória (2025 / Andrucha Waddington) Se O Outro Lado da Rua (2004) foi uma espécie de versão Naturalista de Janela Indiscreta, Vitória seria um "remake" ainda mais simplificado de O Outro Lado da Rua. E o problema não é o filme não ter uma trama ágil, suspense, etc. Se fosse como Ainda Estou Aqui, que compensa a narrativa mais esparsa/Naturalista com ótimas atuações, questões políticas/históricas interessantes, não haveria problema. Mas Vitória não oferece essas qualidades que sustentam os melhores filmes Naturalistas. Ele tenta prender o espectador pelo aspecto "thriller", mas tem a energia que se espera de um filme brasileiro estrelado por uma senhora de quase 95 anos. Quem foi assistir no embalo do Oscar, esperando outro grande destaque nacional, provavelmente saiu decepcionado — mas com pena de admitir, por respeito a Fernanda Montenegro.

sábado, 19 de abril de 2025

Vídeos: Dinâmica da Espiral

Trouxe aqui recentemente o tema da Dinâmica da Espiral, que vem se mostrando uma das "chaves mestras" que eu procurava para solucionar alguns "mistérios" sobre a natureza humana e a sociedade que as teorias que eu já conhecia ainda não explicavam. Pelo que pude ver até agora, a teoria se integra muito bem ao Idealismo e me ajuda a entender melhor o propósito dos princípios que venho estabelecendo aqui — que não é condenar a natureza humana ou ignorar estágios necessários de desenvolvimento, mas tentar promover versões mais saudáveis de cada um desses estágios e mostrar o que pode haver de universal e não conflituoso entre eles (assim como na Teoria dos Arquétipos, não existem estágios de desenvolvimento intrinsecamente maus — mas cada estágio tem sombras que precisam ser evitadas). 

Vou deixar abaixo quatro vídeos de pessoas diferentes dando um resumo da teoria, para quem quiser se aprofundar um pouco mais no tema.

Clare W. Graves é o criador original da emergent cyclical theory.


Don Edward Beck utilizou os estudos de Graves para escrever o livro Spiral Dynamics, que deu mais corpo e alcance à teoria.


Ken Wilber incorporou a Dinâmica da Espiral à sua Teoria Integral (que, eventualmente, passou a usar um esquema diferente de cores para descrever os estágios).


Este é um resumo do canal Actualized.org, para quem quiser uma linguagem mais moderna e com legendas em português.

segunda-feira, 31 de março de 2025

Março 2025 - outros filmes vistos

Novocaine - À Prova de Dor (Novocaine / 2025 / Dan Berk, Robert Olsen) — Estava esperando uma mistura irritante de ironia com violência extrema, então a primeira parte até me surpreendeu com personagens bem estabelecidos e um enredo mais agradável do que eu imaginava. Ainda assim, quando a ação finalmente deslancha, o filme abandona um pouco a lógica e começa a machucar o protagonista (que não sente dor) mais pra causar aflição e justificar a premissa do que por necessidade narrativa (a graça desta sinopse, na minha visão, estaria mais na reação de espanto das testemunhas que não sabem da condição do personagem do que nos ferimentos em si, mas o filme não faz um bom uso deste potencial).

O Estúdio (The Studio / 2025) T1.E1 e T1.E2 — Streaming surpreendendo de novo este mês com uma série muito acima da média, que estabelece um padrão tão elevado nos dois primeiros episódios que é difícil imaginar como poderia sustentá-lo nos próximos. Imperdível para cinéfilos.

Sem Chão (No Other Land / 2024)
— Documentário tedioso que só ganhou o Oscar pelo ativismo político, não por ser bem feito, interessante, ter imagens/entrevistas valiosas ou esclarecer qualquer fato.

Adolescência (Adolescence / 2025 / 
Philip Barantini)
— Primeiro lançamento de 2025 que deve entrar nas minhas listas de melhores do ano. O uso do plano-sequência às vezes parece um exibicionismo desnecessário, mas nos momentos mais dramáticos, ajuda a acumular uma tensão que torna os episódios hipnóticos. A série prende a atenção gerando curiosidade sobre os motivos por trás do crime, o que pode tornar um pouco frustrante a guinada Naturalista mais pro final, de optar por focar menos nos porquês e mais no impacto da tragédia nos envolvidos. Ainda assim, é um estudo de personagens fascinante que revela algumas das questões psicológicas/culturais mais urgentes das gerações mais jovens. A performance do Owen Cooper é tão impressionante no 3º episódio que me lembrou do jovem Leonardo DiCaprio quando começou a se destacar no cinema. 

The Electric State (2025 / Anthony Russo, Joe Russo) — Isso só revela o quanto o sucesso de bilheteria de Vingadores: Guerra Infinita e Ultimato não foi mérito da direção dos irmãos Russo. O filme segue um formato familiar de narrativa de aventura, mas os cineastas parecem ter uma espécie de cegueira para os elementos que tornam um filme interessante para o espectador, então se limitam a cuidar dos efeitos especiais e da aparência externa da produção, torcendo pra que o conteúdo se conecte magicamente com o público — o que, infelizmente, não acontece.

Branca de Neve (Snow White / 2025 / Marc Webb) — Melhor do que eu esperava (se bem que as expectativas eram tão baixas que isso nem diz muito). Está mais pra um entretenimento decente enfraquecido por alguns problemas típicos do cinema atual (mensagens woke pontuais, anões no vale da estranheza, um elenco quase bom) do que pra um projeto desastroso como Pinóquio (2022). O filme tem uma direção competente (inclusive na parte musical), cenários/figurinos bonitos, novidades o bastante pra não parecer um remake enlatado, e o tom, de modo geral, não é subversivo ou hostil ao clássico — exceto quando querem transformar a Branca de Neve em uma líder revolucionária, aí realmente fica difícil defender.

Código Preto (Black Bag / 2025 / Steven Soderbergh) — Não me sintonizo bem com o cinema de Steven Soderbergh e, apesar do bom elenco, achei a trama de Código Preto extremamente desinteressante. É o tipo de história mais preocupada em parecer bem escrita e engenhosa (a abordagem dos "relojoeiros") do que em dar um motivo para o espectador se importar por qualquer coisa.

Better Man: A História de Robbie Williams (Better Man / 2024 / Michael Gracey) — Por que o macaco? Para mim, é um toque autodepreciativo estratégico para amenizar a qualidade potencialmente egocêntrica da produção (assim como a ênfase nos problemas emocionais e na suposta inferioridade de Robbie). Descontando esses aspectos "corrompidos" (ou esta aplicação duvidosa do conceito de Complementaridade), achei o filme eficaz e dirigido de maneira bem estimulante.

O Macaco (The Monkey / 2025 / Osgood Perkins) — Mais um caso em que o cineasta teve bastante liberdade criativa pra realizar o filme, mas isso se provou uma péssima ideia. Assim como Mickey 17 faz com a ficção científica, O Macaco apenas pega a premissa do conto de horror de Stephen King (que imagino ser sério) para subverter o gênero e transformá-lo em uma comédia excêntrica guiada pelas afetações do diretor. O resultado não é nem assustador, nem cômico.

Mickey 17 (2025 / Bong Joon Ho) — Reclamamos com tanta frequência da falta de originalidade nos filmes que é fácil cair na armadilha de achar que originalidade, por si só, torna um filme bom. O novo longa do diretor de Parasita (2019) prova que isso não é verdade. Excentricidade é o prato principal aqui, mas em vez do caos organizado de filmes como A Substância ou Pobres Criaturas, Mickey 17 parece mais o trabalho de um esquizofrênico pretensioso. Convencido de que os frutos de sua imaginação serão sempre brilhantes, o filme se entrega a devaneios aleatórios sem a disciplina necessária para produzir uma boa história.