segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A Longa Marcha

Recentemente, postei um texto falando sobre ganchos e recompensas, e A Longa Marcha é um bom exemplo de um filme prejudicado pelo gancho. O conceito da caminhada mortal é até chamativo, mas há um problema fundamental em A Longa Marcha que enfraquece a experiência: não é nada plausível que garotos aparentemente saudáveis como aqueles, com boas condições de vida, iriam se voluntariar para uma competição tão irracional (já é difícil acreditar que seria possível uma competição como essa existir na América, mesmo em um futuro distópico). Se os participantes fossem condenados à morte com uma chance de escapar, ou estivessem sendo forçados por psicopatas, até daria pra aceitar. Mas aqui são apenas pessoas que, sem obrigação alguma, se colocam em uma situação da qual dificilmente sairão vivas.

Imagine tentar criar um thriller sobre um suicida: o protagonista decide se enforcar sem grandes motivos, compra um pedaço de corda, escolhe uma viga, e daí o filme começa a querer criar suspense em cima dos perigos que ele corre: mostra o banco cambaleando, a corda áspera roçando no pescoço, a expressão de tristeza em seu rosto etc. Você ficaria tenso? Comovido? Provavelmente não. Se o personagem não valoriza a própria vida, por que você deveria?

O que explica essa falta de plausibilidade é o fato de A Longa Marcha não querer ser um thriller de fato, e sim uma alegoria política, um comentário sobre a “América”. O que Stephen King (autor do livro) está dizendo no fim é: o capitalismo me faz sentir como se eu estivesse em uma competição cruel, com fuzis apontados para minha cabeça, da qual apenas um vencedor pode sair vivo. Obviamente, esse não é um retrato honesto do capitalismo. É uma distorção que visa expressar o que o autor sente em relação ao sistema. Mas isso tem graça apenas para quem compartilha do mesmo sentimento. Imagine um artista que acredita que mulheres são sanguessugas e faz um filme alegórico sobre um homem que se casa com uma mulher que, aos poucos, vai se transformando fisicamente em um parasita asqueroso. Se não houver uma boa trama e uma explicação convincente para essa mutação, o filme só será divertido no nível simbólico; só funcionará para aqueles que sentirem prazer em ver mulheres sendo difamadas. Isso é exatamente o que A Longa Marcha faz com a América.

Pra ter impacto, a mensagem de um filme deve emergir naturalmente da sequência de eventos que ele apresenta. A plausibilidade desses eventos é o que dá força ao argumento. Se a mensagem depende de inventar uma situação irreal, de fazer os personagens agirem de maneira impossível, isso equivale a não ter argumentos.

Se A Longa Marcha fosse um suspense tenso, divertido, eu não me importaria tanto com a mensagem. Mas o filme se sustenta apenas em sua mensagem. A não ser que você tenha certo fascínio em ouvir conversa fiada de jovens tolos ou em ver imagens grotescas de cérebros explodindo, pés sangrando e pessoas fazendo as necessidades no chão.

The Long Walk / 2025 / Francis Lawrence

Ne Zha 2 - O Renascer da Alma

Daquelas fantasias tão desconectadas do mundo real que a narrativa se torna arbitrária e desinteressante. Em Ne Zha 2, os personagens podem existir em corpos físicos ou fora deles, podem mudar de aparência, virar animais, se tornar imortais; seus objetivos são baseados em mitos cheios de regras aleatórias e dependem de magias para serem atingidos — magias que vão sendo tiradas da manga conforme as necessidades do roteiro: se o personagem está prestes a ser engolfado pela lava, ele se transforma em pedra e sobrevive; se precisa lutar contra um vilão muito mais poderoso, engole pílulas mágicas e se torna invencível. Tirando essa dose mais exagerada de misticismo (e de piadas de banheiro), pelo visto o Idealismo Corrompido da Ásia está tristemente parecido com o do mundo ocidental (histórias sobre anti-heróis, sacrifícios etc.). A única coisa que achei admirável no filme é a ambição da parte gráfica, que tem aquele tipo de grandiosidade que parece que apenas o Oriente hoje sabe criar — a animação é uma demonstração de poder análoga aos projetos arquitetônicos mirabolantes que vemos por lá, ou aos desfiles militares de Xi Jinping. Mas é uma ambição que se limita ao aspecto físico, visual. Se Ne Zha 2 for o melhor que a China tem a oferecer hoje em termos de entretenimento audiovisual, diria que eles estão mais frágeis em 2025, culturalmente, do que estavam na época em que seus blockbusters eram coisas como O Tigre e o Dragão (2000) e Herói (2002).

Nezha: Mo tong nao hai / 2025 / Yu Yang

sábado, 13 de setembro de 2025

Ganchos e Recompensas

Há inúmeros modelos que ensinam a contar histórias melhores, e muitos trazem ideias importantes. Mas, no fim, todo filme — aliás, todo entretenimento temporal — depende de dois elementos fundamentais para funcionar: ganchos e recompensas. O gancho é o estímulo que prende a atenção do espectador e o faz querer aguardar para saber o que vai acontecer – é a promessa de alguma emoção prazerosa no horizonte. A recompensa é essa emoção prazerosa: a satisfação da expectativa criada pelo gancho.

Normalmente, todo filme terá 1 gancho principal, que será estabelecido dentro dos 10 minutos iniciais (ou pelo menos sugerido) e durará até o clímax — é aquela ideia básica que muitas vezes você já sabe sobre o filme só de ler a sinopse.

Em O Iluminado, por exemplo, aos 8 minutos Mr. Ullman conta a Jack sobre a tragédia que ocorreu no hotel Overlook, criando a expectativa de que algo terrível irá acontecer à família Torrance ao se mudar para lá. Esse gancho sustentará nosso interesse o filme todo.

O gancho principal não pode ser plenamente satisfeito antes do clímax final, se não, o espectador perderá o interesse na história. Mas ele pode ter inúmeros reforços e semi-recompensas ao longo da narrativa antes de ser plenamente satisfeito — o gancho deve respeitar o Princípio da Ascensão e sempre estar prometendo algo melhor no futuro.

Além desse gancho-mestre, um longa-metragem precisa de ganchos menores dentro do gancho principal. Em Ghost: Do Outro Lado da Vida, por exemplo, o gancho principal é a morte de Sam e sua decisão de permanecer ao lado de Molly — Sam continua “vivo” na forma de espírito, mas Molly não faz ideia (e nós queremos que ela descubra). Uma vez estabelecido esse gancho, temos outros dentro dele: a descoberta da traição de Carl, amigo do casal que foi quem orquestrou o assalto a Sam, ou a jornada de Oda Mae Brown de charlatã para médium legítima, etc.

O esqueleto de um bom filme, portanto, é feito de ganchos-mestres de longo prazo e ganchos de médio/curto prazo, cada um podendo ter diversas recompensas. Toda cena, quando bem construída, inicia estabelecendo um pequeno gancho e não termina antes de entregar alguma recompensa — que pode ir desde um avanço significativo da trama até recompensas mais simples ou estéticas, como uma imagem emblemática, uma ideia criativa ou uma frase de impacto: algo que retribua ao espectador a atenção investida.

Novelas e séries de TV costumam se sustentar em ganchos fortes de longo prazo. Com frequência, há um mistério central ou uma grande mentira cuja revelação será adiada por semanas ou meses. Se o gancho for envolvente o bastante, o espectador permanecerá interessado mesmo quando a narrativa estiver inchada, cheia de núcleos menos interessantes que não avançam a trama.

Nas formas mais elevadas de entretenimento, no entanto, evita-se tudo que é supérfluo: cada cena está ou criando/reforçando um gancho, ou no processo de entregar uma recompensa. Cenas não relacionadas a ganchos — meramente expositivas, focadas em caracterização ou que existem apenas para transmitir mensagens, exibir o estilo do diretor, etc. — são evitadas. Essas coisas, quando necessárias, devem ser incorporadas em cenas que estejam sob o efeito atrativo de algum gancho.

Em O Exterminador do Futuro, por exemplo, muita exposição é necessária para explicar ao espectador o que está acontecendo. Mas esses diálogos expositivos não ocorrem em cenas estáticas: acontecem no meio de algum tipo de suspense. Por exemplo, enquanto Kyle e Sarah estão dentro do carro no estacionamento, recarregando a arma e tentando se esconder do Exterminador.

A única hora em que o espectador geralmente dá um “desconto” para a história e presta atenção mesmo na ausência de um gancho é na introdução — nos primeiros minutos, pois aceita-se que é necessário primeiro estabelecer o universo do filme antes de um gancho ser posicionado. Depois disso, apenas ganchos ativos manterão o espectador atento à tela. Então, como diria Billy Wilder, “agarre-os pela garganta e nunca mais solte”.

É possível prender a atenção do espectador mesmo sem um gancho narrativo high concept, como o de O Exterminador do Futuro. Em Casablanca, por exemplo, o gancho é simplesmente a reaparição de Ilsa na vida de Rick Blaine. O gancho pode ser qualquer acontecimento que prometa emoções intensas e prazerosas no futuro. Ele levanta certos tipos de perguntas na mente do espectador: e agora, o que irá acontecer? Como irá acontecer? Quando? Como os personagens principais irão reagir? Quais serão as consequências para eles?

No Idealismo, os ganchos estarão sempre prometendo emoções ligadas aos 4 Pilares do Idealismo: Objetividade, Benevolência, Autoestima e Excitação. (Confira o texto Os 4 Pilares do Idealismo e consulte o Mapa de Valores). Mas o tipo de evento concreto que pode servir como gancho é tão infinito e diverso quanto os interesses humanos — e o desafio do bom artista é elaborar ganchos criativos que prendam o público ao mesmo tempo que refletem sua visão pessoal.

Ganchos de Conteúdo vs. Ganchos de Forma

Alguns ganchos estão ligados aos objetivos dos personagens, aos riscos que eles correm e às experiências que irão viver. Outros estão ligados às expectativas do espectador em relação ao filme em si — às decisões criativas da obra. Comédias, musicais ou filmes de terror, por exemplo, costumam prender a atenção não apenas pelos desejos do protagonista na história, mas também por expectativas formais: de que uma piada hilária será contada, de que haverá uma grande canção ou uma cena incrivelmente assustadora, etc. Os ganchos de conteúdo, no entanto, são mais objetivos e mais fundamentais que os de forma. Ainda que o que mais prenda você em uma comédia seja a expectativa por novas piadas, é preciso haver um gancho minimamente atraente no nível da trama para dar senso de movimento e coerência à narrativa — o personagem precisa ter algum objetivo, um conflito a resolver, etc.

É importante lembrar que o fato de o personagem ter um objetivo na história não torna esse objetivo automaticamente um gancho. Costumo chamar de "filmes de serviço" aquelas tramas em que apenas acompanhamos o personagem exercendo seu trabalho — um detetive ou jornalista investigando um crime, por exemplo. Esses filmes partem da ideia de que o simples fato de o protagonista receber uma tarefa desafiadora em seu emprego já tornará a trama envolvente. Mas se aquilo faz parte do trabalho dele, algo que ele realiza por dever, a tarefa ainda não é interessante. Ela passa a ser quando é estabelecida como altamente incomum, envolvendo riscos significativos para o protagonista que afetem sua vida pessoal — sua segurança, reputação, futuro, etc.

Ganchos Internos vs. Ganchos Externos

Ganchos internos são aqueles que acontecem dentro do próprio filme e não dependem de informações externas para funcionar, apenas de um conhecimento geral sobre o mundo. Ganchos internos criam filmes sólidos e atemporais. Ganchos externos criam publicidade e atração momentânea, mas são frágeis e pouco artísticos. Por exemplo: a maioria das pessoas que assistiu a Homem-Aranha: Sem Volta para Casa ficou vidrada aguardando ansiosamente a reunião dos três atores que interpretaram o herói na era moderna: Tobey Maguire, Andrew Garfield e Tom Holland. Este é um típico gancho externo, que depende de informações trazidas de fora da sala de cinema ("você precisa ver este filme, atriz X aparece com os peitos de fora" / "há uma cena pós-créditos incrível!"). Eles podem tornar um filme excitante quando visto pela primeira vez no lançamento, mas logo ficam datados e perdem o efeito.

Agora considere a premissa de Capricórnio Um (1977): no futuro próximo, por problemas de financiamento, a NASA decide forjar em um estúdio de TV a 1ª viagem tripulada a Marte e enganar a população. Porém, o foguete sem tripulantes enviado ao espaço para sustentar a ilusão explode acidentalmente na hora da reentrada. Assim, os três astronautas escondidos — que nunca saíram da Terra — se tornam a única prova de que a missão foi forjada, e precisam ser eliminados pelo governo. Com um gancho desses, você quer acompanhar a história e saber o que vai acontecer mesmo sem qualquer informação externa sobre o filme.

Ganchos Universais vs. Ganchos de Nicho

Alguns ganchos funcionam de forma mais universal que outros. Quando o gancho envolve riscos à vida, à felicidade, à família ou ao futuro de um personagem, ele tende a funcionar para a maioria das pessoas, pois tratam de valores amplos com os quais todos podem se relacionar. Alguns filmes, no entanto, conquistam o público através de ganchos que funcionam apenas para um segmento da população: apelam para ideologias, certas preferências sexuais ou para tópicos intelectuais restritos. Esses não deixam de ser ganchos, mas são como anzóis especializados que só pescam um tipo de peixe. No Idealismo, a universalidade é vista como um valor, portanto ganchos excessivamente específicos devem ser evitados.

A Qualidade do Gancho

A originalidade, intensidade e a plausibilidade do gancho também importam. A premissa de Capricórnio Um é envolvente porque é criativa, apresentada com detalhes realistas. Todos já ouvimos conspirações sobre a ida do homem à Lua, o que dá certa credibilidade à situação. Se você parar para pensar, o filme é apenas sobre homens tentando assassinar outros homens. Mas a motivação original e plausível por trás dessa perseguição torna o gancho hipnotizante.

Em Jurassic Park, o gancho não seria muito diferente se os paleontólogos fossem a uma ilha misteriosa e encontrassem dinossauros que simplesmente sobreviveram ao meteoro e ainda vivem lá desde a era Mesozoica. Mas isso não seria muito criativo, nem plausível. Portanto, o gancho e as recompensas seriam mais fracos.

Filmes de super-heróis modernos se tornaram cansativos em parte porque o gancho muitas vezes se resume a mais um vilão querendo destruir o mundo com magias aleatórias. As consequências são gigantes (os stakes são altos, em teoria), mas o gancho é de má qualidade. Não é original, nem plausível, nem surpreendente para os heróis ou para a população, que já passaram inúmeras vezes por ameaças similares, já estão familiarizados com super-poderes, etc. Portanto, não há suspense.

Set Pieces

As cenas mais memoráveis do cinema costumam reservar seus Set Pieces para o estabelecimento do gancho principal ou para a entrega das principais recompensas. (Leia mais sobre Set Pieces no texto: Set Pieces e Grandes Cenas).

Recompensas e Reações — Pessoas se interessam por pessoas

Boas recompensas frequentemente estão ligadas a reações de personagens. O que prende o espectador à história muitas vezes não é o “fato extraordinário” em si apresentado pelo filme, mas a expectativa pelas reações dos personagens a esse fato. Ganchos irresistíveis costumam dizer subconscientemente ao espectador: “algo extraordinário ocorreu — ou vai ocorrer — e os personagens não fazem ideia”. Quanto menos os personagens esperarem o acontecimento, e quanto mais intenso e dramático for o impacto prometido sobre eles, mais seremos fisgados pela história. Os melhores filmes exploram ao máximo as reações dos personagens: fazem a plateia esperar por elas e, depois, as tornam dramáticas e memoráveis. A reação certa multiplica a dimensão do evento e pode fazer até algo cotidiano parecer “maior que a vida”. Uma reação fraca ou inadequada pode fazer até o apocalipse parecer trivial. Em comédias, as reações fazem ou destroem a piada. Claro que é preciso haver plausibilidade na reação: em A Noite dos Coelhos (1972), por exemplo, por mais que os personagens gritem, eles não conseguem tornar coelhos gigantes verdadeiramente apavorantes para o público.

Uma das coisas que tornam Spielberg eficaz é sua maestria ao lidar com reações — uma de suas assinaturas é a câmera se aproximando lentamente do rosto de um personagem, reagindo a algo fora de quadro. Ele não só elabora situações extraordinárias, como cria reações à altura para potencializar o evento. Pense em Alan Grant virando a cabeça de Ellie para que ela veja o braquiossauro; ou na mãe de Elliott derramando o café ao ver E.T. pela primeira vez. Uma de suas técnicas mais poderosas é a reação contraintuitiva — retratar o impacto do evento não por reações óbvias e previsíveis, mas, por exemplo, fazendo o personagem ficar mudo e imóvel, revelando a intensidade da emoção por meio de um detalhe (uma lágrima, um tremor no corpo, um objeto que cai, etc.). Esse understatement muitas vezes é mais potente que o exagero. Reações opostas às esperadas também podem comunicar intensidade — alguém com o rosto choroso num momento de extrema alegria, ou com ar de fascínio num momento de profundo terror. Isso passa a ideia de um evento tão incomum, tão extremo, que o personagem não tem emoções padronizadas para lidar com ele. Um dos motivos pelos quais é difícil repetir o impacto de Jurassic Park nas continuações é que, após o primeiro filme, ninguém naquele universo ignora mais a existência dos dinossauros; não há como reproduzir as reações do primeiro filme, pois não existe mais o personagem 100% ignorante, que é um elemento importante para tornar o gancho poderoso. Com ganchos mais fracos, as recompensas também são mais fracas.

Uma técnica que costuma fortalecer o gancho e nos fazer aguardar ansiosos pela recompensa é informar o espectador sobre o que irá acontecer, sem informar os personagens. Um erro comum de roteiristas iniciantes é esconder demais o jogo do espectador e tentar surpreendê-lo ao mesmo tempo que os personagens. Mas o público precisa ter pelo menos uma ideia do que irá acontecer para que o gancho se estabeleça.

Alfred Hitchcock dizia que suspense é preferível à surpresa:

“Existe uma diferença distinta entre ‘suspense’ e ‘surpresa’, e ainda assim muitos filmes continuam a confundir os dois. Vou explicar o que quero dizer.

Estamos agora tendo uma conversa muito inocente. Suponhamos que haja uma bomba debaixo desta mesa entre nós. Nada acontece e, de repente: ‘Boom!’ Há uma explosão. O público fica surpreso, mas antes dessa surpresa, viu apenas uma cena absolutamente comum, sem importância especial. Agora, vejamos uma situação de suspense. A bomba está debaixo da mesa e o público sabe disso, provavelmente porque viu o anarquista colocá-la lá. O público está ciente de que a bomba vai explodir à uma hora, e há um relógio na cena. O público pode ver que são quinze para a uma. Nessas condições, a mesma conversa inocente torna-se fascinante porque o público participa da cena. A plateia tem vontade de avisar os personagens na tela: ‘Vocês não deveriam estar falando de coisas tão triviais. Há uma bomba debaixo de vocês e ela está prestes a explodir!’

No primeiro caso, demos ao público quinze segundos de surpresa no momento da explosão. No segundo, proporcionamos quinze minutos de suspense. A conclusão é que, sempre que possível, o público deve ser informado. Exceto quando a surpresa é uma reviravolta, isto é, quando o desfecho inesperado é, em si mesmo, o ponto alto da história.” - Alfred Hitchcock

Assim como a cena da bomba se torna mais envolvente quando o espectador já sabe de sua presença, o filme como um todo também se torna mais envolvente quando o público tem uma noção do que vai acontecer. Em vários dos melhores filmes temos uma ideia muito clara do destino para o qual estamos caminhando, e mesmo assim não perdemos o interesse — em parte porque ainda não vimos exatamente como aquilo vai acontecer; em parte porque os personagems não sabem o que virá, e o espectador quer ver suas reações. É quase como se tivéssemos um fetiche voyeurístico de observar o rosto de uma pessoa no momento em que ela está entrando em contato com um fato novo e extraordinário.

Em Titanic, o gancho principal é que sabemos desde o início que o navio irá afundar. Há até uma animação 3D mostrando exatamente como será o naufrágio, e ainda assim o espectador aguarda ansioso a chegada do iceberg — pois ninguém a bordo tem ideia do que irá acontecer. O desastre fica particularmente envolvente porque as pessoas acreditavam que “nem Deus poderia afundar aquele navio”. E o que dá dimensão épica ao clímax não são apenas os efeitos visuais, a produção grandiosa, mas as reações de todos os personagens ao que está ocorrendo.

Em O Iluminado, Wendy é a personagem mais crucial do filme porque ela é quem não sabe absolutamente nada sobre o que vai ocorrer. No início do filme, pense na quantidade de fatos extraordinários que ela ignora e que nós já sabemos ou suspeitamos: ela não sabe que seu filho possui poderes extra-sensoriais (já vimos Danny conversando com "Tony" no banheiro), ela não desconfia que o marido seja um assassino em potencial (já vimos algumas pistas de seu desequilíbrio mental) e nem suspeita que o hotel para o qual está indo seja assombrado (ela sequer sabe que fantasmas existem!). Se ela já suspeitasse dessas coisas desde o início, não haveria tanto interesse no filme.

Por isso costuma ser crucial reforçar, ao longo da narrativa, a ignorância dos personagens acerca do “fato extraordinário” — inserir detalhes que deixem claro para a plateia que eles estão totalmente por fora: o equivalente à cena clichê em que o cachorro está latindo desesperadamente e o personagem descarta qualquer perigo: “deve ser apenas um gato”. Se O Iluminado é um dos filmes de terror mais gratificantes do cinema, muito se deve às expressões inesquecíveis de Shelley Duvall reagindo aos “fatos extraordinários” que ela descobre.

Esses fatos extraordinários não precisam se limitar a fantasmas, dinossauros ou eventos históricos. Em Cidadão Kane, o caráter corrupto do protagonista é o “desastre” que se revela aos poucos, surpreendendo os demais personagens e, no fim, surpreendendo o próprio Kane quando ele se dá conta de quem é. O caráter nobre de alguém também pode funcionar como gancho — por exemplo, o talento oculto de um personagem. Em Laços de Ternura, a maternidade e os dramas da maturidade são o evento extraordinário que vira a vida da protagonista de cabeça para baixo. Se Aurora fosse uma mulher com diversos filhos, já acostumada com essas dificuldades da vida, não haveria gancho. Mas ela é apresentada como uma mulher extremamente rígida, vaidosa, controladora — para uma mulher assim, você sabe que a maternidade será um cataclisma.

Ganchos grandiosos, com consequências amplas, tendem a ser mais envolventes, mas é perfeitamente possível prender o público com ganchos mais simples e locais — desde que você convença que o evento tem o poder de transformar dramaticamente a vida dos personagens centrais.

Filmes sem Ganchos e Recompensas

O cinema não-narrativo, como o Naturalismo e o Experimentalismo, é caracterizado pela ausência de ganchos narrativos — em especial pela ausência de ganchos internos. Esses filmes esperam que fatores externos à história funcionem como "ganchos": a simpatia pela figura do autor, a causa que o filme defende, o status social associado a tê-lo assistido, etc.

Já no cinema narrativo e no verdadeiro entretenimento, ganchos e recompensas são indispensáveis. Há filmes que nos prendem por motivos sutis e parecem não ter ganchos, mas, se a experiência é gratificante, provavelmente é porque, em algum nível, o filme cria uma boa dinâmica de ganchos e recompensas — gerando expectativas no início e satisfazendo essas expectativas de maneira eficaz mais adiante. Para identificar qual é o gancho, basta pensar nas cenas mais emocionantes ou satisfatórias do filme: elas te darão uma pista sobre o gancho agindo sobre o enredo.

O que irá diferenciar um grande filme de um entretenimento inferior, nesse sentido, é a qualidade dos ganchos e das recompensas: se ele é dominado por ganchos internos, fortes, criativos, plausíveis, universais, bem posicionados na linha do tempo, e se as recompensas são abundantes e estão à altura das expectativas criadas. M. Night Shyamalan, por exemplo, é um cineasta ótimo para elaborar ganchos, mas que frequentemente falha nas recompensas.

Ao pensar na sua história, esqueça por um momento as velhas fórmulas de roteiro e reflita em termos de ganchos e recompensas. Qual é o seu gancho-mestre — aquele conceito mais amplo que sustentará o interesse da plateia ao longo de todo o filme? Quais são as recompensas associadas a esse gancho? Quais as reações mais aguardadas da história? Em que pontos da narrativa elas ocorrem? Como elas podem se alinhar a Set-Pieces emblemáticos? E quais são as subtramas, os ganchos menores que você pode estabelecer no decorrer da trama? Que recompensas cada um deles terá? Cada cena da sua história está criando/reforçando um gancho, ou no processo de entregar uma recompensa?

Os esquemas tradicionais podem oferecer ferramentas úteis para a construção de boas histórias. Mas se você dominar a lógica dos ganchos e recompensas, você poderá usar essas fórmulas com mais consciência — e até quebrá-las sem perder o espectador.

Índice: Artigos e Postagens Teóricas

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

A Hora do Mal

O filme tem o gancho mais forte do ano ("Ontem à noite, às 2h17 da madrugada, todas as crianças da sala da Sra. Gandy acordaram, levantaram da cama, desceram as escadas, abriram a porta da frente, saíram no escuro... e nunca mais voltaram.") — mas joga tudo no lixo logo na primeira cena. Em vez de dramatizar o evento — de mostrar o sumiço das crianças em tempo presente, no momento em que estava acontecendo, explorando todo o mistério e o terror da situação — o filme resume tudo em um flashback, narrado por uma garotinha em tom casual, como quem está contando uma fofoca para as amigas no recreio. Isso destrói todo o peso da frase que atraiu os espectadores ao cinema, e o filme nos joga na história semanas depois dos desaparecimentos, quando a cidade já quase voltou à rotina.

Isso não é amadorismo dos autores. O filme tem uma direção firme e sabe exatamente o que está fazendo. Infelizmente, o que ele quer fazer é um terror “artístico”, desconstruído, desses que querem ser notados na temporada de prêmios. Durante a primeira hora, a busca pelas crianças fica em segundo plano, e o filme vai focar no impacto do evento na comunidade: a frustração dos pais, o drama da professora injustamente acusada pelos moradores, e a vida pessoal de alguns dos envolvidos (sempre personagens comuns, falhos, anti-heroicos). A narrativa adota um estilo não linear à la Rashomon, mostrando os mesmos acontecimentos sob pontos de vista diferentes, levantando reflexões sobre a verdade, sobre a subjetividade humana — uma discussão interessante talvez para uma aula de sociologia, mas que não torna a sessão mais empolgante.

Tolerei tudo isso porque achei que o filme estava caminhando pra um final memorável. Mas se o começo foi desperdiçado daquela forma, seria otimismo demais esperar que o clímax fosse tratado com mais respeito. SPOILER: Pra começar, muito do mistério se dissipa quando a personagem de Gladys é revelada, e já fica explícito que tudo foi fruto de bruxaria — uma explicação pouco satisfatória, até porque Gladys não se conecta direito com o resto do filme: não revela nada sobre o passado da cidade, a vida pessoal das vítimas ou mesmo a família de Alex. Ela é apenas uma vilã aleatória que resolveu passar pela cidade e causar confusão. Nas histórias de terror mais satisfatórias, o “monstro” sempre reflete alguma questão interna das vítimas ou expõe conflitos que já precisavam ser resolvidos, dando ao duelo um significado maior.

SPOILER: O resgate das crianças no final também é incrivelmente frustrante. Primeiro porque humor começa a ser usado para destruir a seriedade da situação (através do personagem do viciado, ou de escolhas de direção, como o toque de mostrar o homem cortando a grama enquanto observa a cena absurda das crianças perseguindo Gladys). Mas também pelo que o filme decide não mostrar: Archer é o único personagem que vemos reencontrar o filho. Não há a cena da comunidade recuperando as crianças — o filme sequer mostra Justine, a protagonista, descobrindo que as crianças foram achadas! Pior: as crianças não são totalmente salvas, pois a narração final nos informa que elas continuam catatônicas, sob efeito da bruxaria. Teria sido muito simples dar à história um final feliz, resoluto, mas o filme prefere agradar os que acham mais sofisticado o incerto, conflitante e desconfortável.

Weapons / 2025 / Zach Cregger

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Guerreiras do K-Pop

É o tipo de fenômeno pop que mostra o quanto eu estou "velho" ou desconectado do zeitgeist — quando vi o filme na Netflix (antes de estourar), para mim pareceu apenas uma adição rotineira de catálogo, com uma premissa meio kitsch, que seria esquecida em algumas semanas. Quando o filme se tornou a produção Netflix mais vista da história e várias faixas da trilha chegaram à Billboard, me senti tão perdido quanto na época dos sucessos de Frozen e O Rei do Show — dois musicais que eu também poderia ter jurado que não dariam em nada ao sair da sessão, mas que no fim conquistaram legiões de fãs. O que Guerreiras do K-Pop tem em comum com esses dois filmes? Primeiro, músicas que não são muito meu estilo (embora eu reconheça que sejam pegajosas). Mas além disso, há um tema parecido: tramas sobre pessoas imperfeitas buscando a aceitação de suas imperfeições — um tipo de narrativa que nunca me atraiu e que, do ponto de vista do Idealismo, não sustenta um bom entretenimento.

Se esse filme tivesse sido feito há algumas décadas, ele provavelmente começaria apresentando Rumi como uma garota com grande potencial vocal, que sonha em se tornar uma Huntr/x, mas sente que não tem chances por ser mestiça. Então, a história mostraria seu talento rompendo barreiras pouco a pouco, até ela conquistar seu sonho. Essa seria uma versão da história que me atrairia mais. Mas, pra se conectar com os tempos atuais, a narrativa precisou ser meio que invertida. Em vez de irmos do ordinário em direção ao extraordinário, ocorre o contrário: o filme começa com as três protagonistas já sendo grandes guerreiras, estrelas do k-pop, vivendo a vida dos sonhos — o sucesso pleno é a realidade estabelecida como normal, rotineira, nosso ponto de partida. Daí, a grande surpresa é a revelação de que essa realidade não é tão perfeita assim: Rumi esconde de todos sua verdadeira identidade; as manchas de pele que revelam que ela é metade demônio. Este é o gancho que o filme espera que fisgue a plateia. Não é uma história sobre força, sobre realizar seu potencial — as inseguranças de Rumi e a aceitação de sua identidade são o verdadeiro assunto do filme (as manchas na pele funcionando como metáfora para etnia, orientação sexual, puberdade ou qualquer questão íntima que possa fazer um adolescente se sentir um "demônio" socialmente).

A canção Golden (um Let it Go à coreana) tem uma melodia bem marcante até, cujo refrão culmina em um dos agudos mais impossíveis que já ouvi no pop. Em um filme focado nas virtudes de Rumi, certamente haveria um destaque para o momento em que ela consegue alcançar o agudo na apresentação final ("like I'm born to be!") — seria o equivalente ao salto de Jennifer Grey no clímax de Dirty Dancing. Aqui, como o foco não é esse, o grito passa quase despercebido — em todos os momentos em que ela vai dar o agudo, a câmera se afasta ou corta para outra coisa. É um detalhe, mas que reflete bem as prioridades e interesses da história. Praticamente todos os desejos estabelecidos no início do filme não são satisfeitos no final — o desejo de Rumi de se livrar das manchas, a criação do Honmoon dourado, a atração romântica das meninas pelos Saja Boys: todos esses objetivos se revelam equivocados, valores de uma cultura ultrapassada que perseguia ideais inatingíveis de perfeição, condenava falhas e defeitos. A lição do filme é que devemos transcender essas motivações e abraçar o imperfeito — uma mensagem que até poderia ser válida, mas que é transmitida de forma propositalmente vaga, abrindo portas para todo tipo de interpretação duvidosa.

KPop Demon Hunters / 2025 / Chris Appelhans, Maggie Kang

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Julho 2025 - outros filmes vistos

F1: O Filme (F1 / 2025 / Joseph Kosinski) — Apesar de falar sobre aviação, Top Gun: Maverick não exigia que você se interessasse pelo tema para se emocionar com a história. F1 já é um filme que deve funcionar melhor para quem se interessa pelo universo do automobilismo. Como cinema, é um filme de esporte bem básico e previsível, que se destaca pela maneira como fotografa as cenas de corrida, mas que não tem um enredo realmente memorável por trás. O principal problema, pra mim, foi o protagonista — não só por achar que Brad Pitt, com seu jeito "good vibes", não convence muito como atleta disciplinado ou como mentor sábio, mas também porque Sonny Hayes tem apenas conflitos externos superficiais para superar ao longo do filme. Embora ele seja mais velho que a maioria dos pilotos, isso nunca se torna um obstáculo real na história, nem gera qualquer insegurança nele. Ele age o tempo todo como se tivesse certeza de que é o melhor do mundo e nunca duvida de que chegará ao pódio. Mesmo que ele se mostrasse de fato o melhor, isso ainda roubaria carga dramática da história. Mas Hayes passa o filme inteiro cometendo erros, se envolvendo em acidentes bobos, sendo eliminado — de forma que, quando a vitória finalmente chega, tudo parece fruto de sorte, não uma recompensa justa. O filme é cheio de músicas de rap que não são nada o meu estilo, mas a trilha instrumental do Hans Zimmer achei muito boa.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Elio

Após o acerto com Divertida Mente 2, a Pixar volta ao patamar inferior que se tornou a norma nos últimos anos e entrega mais um filme de "herói envergonhado" enlatado e sem nenhum senso de entretenimento.

A história é sobre um garoto que sonha em ser abduzido por extraterrestres — não por um verdadeiro senso de aventura, mas porque isso seria um bom remédio para sua solidão e seu sentimento de inadequação na Terra. Da forma mais conveniente possível, aliens resolvem fazer contato com o planeta e abduzem justamente Elio. Enquanto está sendo teletransportado para a nave, em vez de ficar apavorado como qualquer ser humano crível, Elio comemora como se fosse um garoto que acabou de fazer um gol. Nesse momento, é como se o filme dissesse: este é apenas um filme bobinho para passar o tempo — não leve a sério nada do que está acontecendo. E é só com essa atitude despretensiosa mesmo que se pode acompanhar o resto da trama, que não faz o menor esforço para soar inteligente ou plausível (Elio, que era um garoto tímido e vítima de bullying, subitamente se torna embaixador da Terra no espaço e enfrenta, sem hesitação, monstros dez vezes maiores que ele).

Recentemente assisti a O Voo do Navegador (1986) e fiquei impressionado com como o roteiro, com toda a sua simplicidade, parecia saber o tempo todo o que havia de divertido na possibilidade de aliens contatarem um garoto na Terra — e estruturava o enredo ao redor disso. Essa é uma noção que passa longe de Elio, que tem uma trama chata de "política externa" que nunca se conecta com as emoções do espectador (o grande "sonho" do protagonista é receber um crachá que o torna membro de uma espécie de ONU intergaláctica — alguém se importa?).

Como de costume, o foco do filme acaba não sendo a aventura, mas o drama familiar, a cura de traumas, etc. Elio começa o filme deprimido porque perdeu os pais e está sendo criado pela tia, com quem não se dá muito bem. (SPOILER) Ele se volta para o espaço como forma de fugir dessas frustrações, mas, no fim, em vez de ter seus sonhos realizados, ele apenas se conecta melhor com a tia (principalmente após descobrir que ela também é solitária e imperfeita como ele) e volta para a vida que tinha antes — só que agora mais conformado e com uns amiguinhos novos.

Não estou dizendo que as lições do filme seriam completamente inválidas para uma família quebrada do mundo real, mas será que alguma criança ficaria empolgada de ir ao cinema pra aprender esse tipo de coisa? Em vez de um momento de diversão, levar as crianças ao cinema hoje tem se parecido vez mais com levá-las para uma conversa com a psicopedagoga da escola.

Elio / 2025 / Adrian Molina, Madeline Sharafian, Domee Shi

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Extermínio: A Evolução

Fui completamente enganado pelo trailer, que dava a impressão de um terror eletrizante, quando na verdade o filme está mais pra um drama sobre um garoto tentando achar um médico para sua mãe doente. A estrutura é aquela da “jornada melancólica em um mundo devastado”, estilo The Last of Us / A Estrada, onde um pequeno grupo de pessoas precisa ir do ponto A até o ponto B em um cenário pós-apocalíptico, e no meio do caminho se depara com monstros, faz aliados, etc. Mas tudo é muito episódico e tedioso, até porque o protagonista é um garoto de 12 anos que não sabe o que está fazendo, e a outra é uma mulher insana: sabemos desde o início que não há chance de o plano deles ser minimamente eficaz. A "graça" do filme é sentir pena dessas almas perdidas perseguindo sonhos ilusórios em um mundo cruel — o filme é uma das expressões mais puras do Senso de Vida Malevolente

É estranho chamar um filme de zumbi de "Idealismo Corrompido", pois o gênero já nasceu Corrompido em 1968 com A Noite dos Mortos-Vivos, e permaneceu assim mesmo durante os anos 80. Mas Extermínio: A Evolução merece esse título, pois representa uma subversão até dos padrões estabelecidos pela própria franquia. Os zumbis são quase irrelevantes para a história e não têm relação alguma com a doença ou a cura da mãe. Assim como Um Lugar Silencioso: Dia Um e tantos outros, o filme se distancia das convenções do gênero para focar em dramas pessoais — se a jornada se passasse em uma zona de guerra ou qualquer outro ambiente inóspito, não faria grande diferença.

Outro problema é que aqui não apenas temos o tom mórbido típico do gênero (cuja maior obsessão parece ser mostrar personagens testemunhando entes queridos morrendo de forma brutal), como também aquela combinação terrível de má escrita com pretensão artística, responsável por colocar muitos filmes nas minhas listas de piores do ano. A produção é decente, mas o roteiro é incrivelmente ilógico e cheio de furos. Há várias coisas aleatórias também, como o tal do menino Jimmy, que só aparece no prólogo e no final, ou uns inserts de filmes antigos no meio da ação, que dão a impressão de que serão justificados apenas nas continuações (às vezes, parece que estamos vendo o início de uma série de TV, não um filme). Assim como Pecadores, é mais um terror que confunde qualidade com originalidade — e originalidade com excentricidade e subversão de expectativas.

28 Years Later / 2025 / Danny Boyle

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Como Treinar o Seu Dragão

Esse filme pra mim foi um grande experimento científico: no cinema, você raramente consegue testar hipóteses de forma controlada, como na ciência, pois não é simples levar um filme para um laboratório e manipular variáveis específicas (como a escolha de um ator) pra medir com precisão o impacto de cada elemento. Mas este remake live-action de Como Treinar o Seu Dragão (do qual eu não gostei na época) cria essa oportunidade, pois segue à risca a animação de 2010, mas com uma alteração crucial (na perspectiva do Idealismo): ele substitui o protagonista sem graça — que se tornou um dos meus exemplos favoritos de "herói envergonhado" no cinema — por um ator bastante talentoso e carismático, que "descorrompe" o herói ao interpretá-lo de maneira atraente, eliminando as caretas, os trejeitos abobalhados, o tom azedo e sarcástico de voz, etc. Com isso, o filme ficou surpreendentemente melhor. Tive até dificuldade de acreditar que estava acompanhando o mesmo enredo do original — parecia que eu estava vendo novas cenas, ações e falas, não apenas um novo ator. Mas, ao rever trechos da animação chegando em casa, vi que muito pouca coisa foi alterada de fato. Isso reforçou, pra mim, a teoria do Spielberg de que o casting representa de 40% a 60% de um filme. O filme de 2010 é tecnicamente bem feito, tem um roteiro bem estruturado, mas fica difícil investir emocionalmente em uma história quando o próprio protagonista passa o tempo todo agindo para descreditá-la.

Acho que o final continua deixando um pouco a desejar — Hiccup matar o dragão, apesar disso ir contra seus princípios, e depois ter a perna amputada (uma cicatriz teria sido um sinal de bravura mais que suficiente). Mas, desta vez, essas foram queixas isoladas dentro de um filme sólido — em vez de evidências de um problema mais profundo.

How to Train Your Dragon / 2025 / Dean DeBlois

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Junho 2025 - outros filmes vistos

Até a Última Gota (Straw / 2025 / Tyler Perry) — "Pornô de vitimização" que beira a comédia de tão ingênuo e escrachado — e com uma bússola moral tão deturpada que faz filmes como Bonnie e Clyde e Coringa parecerem moralistas em relação aos bandidos. A ideia parecia ser contar a história de uma "criminosa com um coração de ouro" estilo Thelma & Louise — a diferença é que a personagem aqui, além de ser uma mulher desprovida de qualquer qualidade positiva de caráter (e a principal causadora dos próprios problemas), assassina um homem inocente antes de partir em sua "jornada de redenção". Em vez de uma inocente injustiçada, temos uma mulher que deveria de fato estar na cadeia. Mas o filme não pensa assim e espera que torçamos por ela pelo simples fato dela ser pobre e ter uma vida desgraçada — em um único dia, tudo de ruim que poderia acontecer a alguém acontece com ela. Se você é do tipo que confunde sofrimento com nobreza de caráter, ela soará como uma das personagens mais virtuosas de todos os tempos! Dessa forma, como julgá-la "só" por matar, cometer extorsão, fazer reféns? Já vi muitos filmes moralmente ambíguos, que tentam relativizar as ações de personagens maus, mas poucos pareceram tão entusiasmados e livres de culpa ao perdoar atos criminosos quanto este.

O Esquema Fenício (The Phoenician Scheme / 2025 / Wes Anderson) — Apesar de ser um dos diretores mais monótonos da atualidade, Wes Anderson pelo menos não é preguiçoso — ele se dedica 100% toda vez que repete a mesma receita. O filme é puro Estilo Acima de Conteúdo — uma trama que ninguém em sã consciência diria que é interessante — mas Anderson executa esse "nada" com imaginação, capricho e leveza, preservando certa dignidade como artista (ainda que eu continue achando que ele é um designer preso no corpo de um cineasta).

Bailarina (Ballerina / 2025 / Len Wiseman) — Gun Fu (filmes que combinam artes marciais com o uso de armas de fogo) é um dos subgêneros que menos me atraem no cinema, e John Wick se tornou, pra mim, uma das piores influências sobre a ação moderna. Dito isso, Bailarina foi uma boa surpresa. Achei o melhor filme da franquia — não por ser inovador ou transcender totalmente os problemas do gênero, mas por ser mais sólido narrativamente e por Len Wiseman se mostrar um cineasta mais hábil que Chad Stahelski, tornando inclusive as cenas de luta mais bem dirigidas, detalhadas e divertidas de assistir.

Predador: Assassino de Assassinos (Predator: Killer of Killers / 2025 / Dan Trachtenberg, Joshua Wassung) — Levar o Predador para o universo de vikings e samurais me pareceu esquisito a princípio, mas não deixa de ser o reconhecimento de um fato: a franquia Predador sempre foi mais sobre músculos e testosterona do que sobre os elementos de ficção científica que sustentam a franquia Alien. A animação até que é bem realizada, mas se você não vê um valor intrínseco no combate físico, na "arte" de dar porrada (o roteiro poderia facilmente ser transformado em um videogame de luta), vai ser difícil se importar com qualquer coisa. O filme ainda "moderniza" a franquia exaltando os oprimidos, dignificando o sofrimento e o sacrifício — toques meio estoicos/cristãos que destoam do Predador original.

Mountainhead (2025 / Jesse Armstrong) — Sátira social fraquíssima que parece mais um descarrego de um hater de bilionários do que um filme com algo útil a dizer. A ideia é mostrar o quão patéticos (e perigosos) são CEOs de big techs, talvez na esperança de promover algum tipo de regulação sobre eles. Há críticas válidas que se poderia fazer a esse tipo de figura, mas para isso, o filme precisaria mostrar uma compreensão minimamente equilibrada de seus alvos, em vez de apenas criar versões caricatas deles e atacar esses estereótipos vazios. O título Mountainhead é uma referência explícita ao livro A Nascente (The Fountainhead), da Ayn Rand — e se o diretor vê alguma semelhança entre a mensagem de The Fountainhead e o caráter dos personagens do filme, isso só prova o quanto seu discurso é raso e tendencioso.

O Predador (1987)

Apesar de ser de um gênero que eu gosto, de uma era que eu gosto e com um ator que eu gosto, O Predador é um filme que nunca achei tão bom quanto sua popularidade sugere. Depois de assistir ao spin-off Predador: Assassino de Assassinos, acabei decidindo rever o original para fazer algumas comparações, e a primeira coisa de que me dei conta é que, apesar de já ter visto O Predador mais de uma vez, é um filme do qual sempre tenho uma lembrança vaga — lembro da ambientação na selva, da criatura, mas é quase como se eu não tivesse visto o filme de fato, como se tivesse pegado essas referências de trailers. Dessa vez, entendi melhor o porquê disso: ao contrário dos filmes da franquia Alien, O Predador é um bom exemplo de um filme sem bons set pieces. Todos os momentos significativos da narrativa são executados de maneira casual, desleixada, esquecível — não há nenhum trecho que renderia um “corte” fantástico, digno de ser revisitado e apreciado por si só. A criatura é revelada de maneira esparsa, sem nenhuma entrada ou momento emblemático; a primeira morte não traz nenhuma ideia memorável; a primeira vez que o protagonista vê o alien também não marca; nem a maneira como ele o derrota no final. Para mim, é como se bons set pieces dessem identidade a um filme — e, quando não há esses momentos excepcionais, o filme não se cristaliza direito na memória; o que se guarda é apenas um borrão ou imagens fragmentadas.

Na prática, O Predador está mais para um macho-filme daqueles estilo Stallone/Van Damme do que para uma ficção científica como Alien. É como se eles tivessem pensado inicialmente em um filme de guerra repleto de músculos e metralhadoras e, no fim, alguém tivesse dado a ideia de jogar um alien fortão no meio da história só pra tornar o combate mais intenso (até porque extraterrestres estavam em alta nos anos 80, assim como halterofilistas — por que não unir Rocky e E.T.?). Durante os primeiros 40 minutos, a criatura nem interfere na trama — fica apenas observando os personagens à distância, o que torna a narrativa arrastada. As tentativas do filme de nos envolver na missão de guerra no começo são totalmente fúteis. Depois, o Predador começa a matar um membro da equipe por vez — mas o protagonista só vai descobrir sua existência lá pela meia hora final, o que nos distancia dele enquanto personagem. É como um slasher estilo Sexta-Feira 13, em que os personagens não têm muito o que fazer durante dois atos, e tudo se concentra no showdown da última meia hora. Bons slashers conseguem se safar com essa estrutura, usando essa primeira hora para assustar o espectador e apresentar cenas de morte impressionantes. Mas, como disse, O Predador não tem essas grandes cenas, e eu particularmente não acho que a criatura dê medo — principalmente pela ambientação: o que torna um monstro assustador não é apenas a criatura em si, mas o contexto em que ela aparece. Quanto maior o contraste, mais assustador. O alien que aparece na festa infantil de Sinais (2002) não é horripilante por ter um design particularmente bem-feito — ele assusta pelo contexto em que aparece: em um local familiar, cotidiano, inocente. Tubarão (1975) cria tensão porque a criatura aparece em praias ensolaradas, onde crianças estão se divertindo, famílias estão de férias relaxando. Agora, em O Predador, os personagens são soldados durões numa selva cheia de cobras e criaturas perigosas, onde estão sendo perseguidos por guerrilheiros sanguinários. Nesse contexto, a criatura se torna apenas uma ameaça extra — seria como esperar que o tubarão fosse igualmente impactante se aparecesse na praia de O Resgate do Soldado Ryan.

Com um roteiro melhor, o confronto final entre o Schwarzenegger e o Predador poderia ter rendido um clímax recompensador, mas o que acontece é muito sem lógica e criatividade. O Predador supostamente só enxerga calor — mas, por algum motivo, o herói consegue se esconder dele passando lama no corpo e se mesclando visualmente com o fundo, além de despistá-lo arremessando pedras na mata, dando a entender que o monstro também capta movimento ou som. Um dos momentos de heroísmo que mais se destacam envolve uma flecha explosiva que parece uma imitação preguiçosa da cena de Rambo 2. A armadilha que Schwarzenegger prepara para matar o Predador no fim também não tem muita plausibilidade. Durante a maior parte do filme, o herói parece perdido em uma situação sobre a qual não tem o menor controle. Daí, no final, ele subitamente se torna um perito em caçar Predadores — o que não gera admiração, por ser feito de forma forçada.

Com uma direção e um roteiro fracos, O Predador só merece certo crédito porque foi feito numa época em que a indústria cinematográfica era robusta, repleta de talentos, e algum valor de entretenimento acabava recaindo sobre a maioria dos filmes: o longa é encabeçado por um verdadeiro astro, a trilha sonora de Alan Silvestri ajuda a manter a experiência estimulante, o trabalho de Stan Winston com a criatura é ótimo, etc. Mas, pra mim, o legado do filme não é proporcional à sua real qualidade.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

O Voo do Navegador (1986)

Este é um filme que eu gostava de ver no SBT quando criança, mas que nunca tinha revisto depois de adulto por achar que teria envelhecido mal — ou que pareceria malfeito em comparação com as produções do Spielberg que muitos desses filmes infantis/família dos anos 80 tentavam imitar (já viram Mac - O Extraterrestre?!). De fato, não dá pra comparar O Voo do Navegador com um filme do Spielberg em termos de direção e refinamento artístico, mas entre as produções da época que tentaram surfar na onda de E.T., esta é uma das que melhor se sustentam como filme independente. O que acontece nos quinze primeiros minutos é tão desconcertante e bem feito como gancho (lembrando também de De Volta para o Futuro) que acompanhar o resto da história se torna imprescindível. E o resto do roteiro é muito bem estruturado, no sentido de não ter blocos desinteressantes ou que não atendam progressivamente às expectativas criadas pela premissa inicial. Em termos de visual e execução, o filme também é mais bem cuidado do que eu me lembrava. A atuação do garoto principal é convincente, o design da nave cria um ótimo "movie prop" (considerando que o filme tem um dos primeiros usos de CGI no cinema, os efeitos da nave até que surpreendem), e o retrato da Flórida naquele período (associado aos sintetizadores de Alan Silvestri) é puro suco de nostalgia oitentista.


Flight of the Navigator / 1986 / Randal Kleiser

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Maio 2025 - outros filmes vistos

Pee-wee as Himself (2025 / Matt Wolf) — Tinha apenas uma vaga noção de quem era Pee-wee Herman (nunca tinha visto nem o filme do Tim Burton, As Grandes Aventuras de Pee-wee) e adorei conhecer sua história através deste documentário. Parte de sua tragédia se deve ao fato dele ter encontrado o sucesso na época "errada". Paul Reubens, em essência, era muito mais alinhado com a contracultura dos anos 70, mas foi na era Idealista dos anos 80 que seus dons encontraram um público. Esse conflito entre quem Reubens era de fato e quem seu público gostaria que ele fosse reflete o conflito interno do artista que, eventualmente, destruiria sua carreira. Apesar do desfecho trágico, a existência deste documentário acaba criando uma espécie de final feliz para Reubens, ao mostrar sua vida por uma perspectiva mais compreensiva e desconhecida pela maioria.

Sonic 3: O Filme
(Sonic the Hedgehog 3 / 2024 / Jeff Fowler) — Uma coleção de clichês tentando se amontoar em um filme. Não é uma produção malfeita ou com falhas notáveis, mas não há uma cena sequer que emane autenticidade. Tudo é incrivelmente pasteurizado, baseado em ideias excessivamente reutilizadas no cinema — desde a trama geral sobre a arma destruidora de mundos que, para ser desativada, depende dos heróis juntarem duas partes de uma chave, até as cenas individuais: temos a "dança" através do salão cortado por feixes de laser, a montagem cômica/nostálgica ao som de Wouldn't It Be Nice, piadinhas sobre a cafonice de novelas mexicanas — toda cena é composta de ideias enlatadas como essas, e nada mais (Mentalidade Clichê). A mensagem sobre o amor superar o ódio é a versão simplificada de algo que você leria num livro de autoajuda de banca de jornal.

Premonição 6: Laços de Sangue (Final Destination: Bloodlines / 2025 / Zach Lipovsky, Adam B. Stein) — Os set pieces não são tão satisfatórios quanto os dos filmes anteriores, mas a fórmula geral da franquia ainda rende um filme assistível. Há alguns toques de Idealismo Corrompido no casting e no humor (um dos roteiristas trabalhou em Pânico VI, Abigail), mas nada que arruíne totalmente a diversão.

Homem com H
(2025 / Esmir Filho)
— Segue o modelo das cinebiografias modernas, com algumas de suas limitações narrativas, mas em termos de atuações, capacidade de emocionar e de criar intimidade com o artista, faz melhor que muitas das grandes produções vindas de fora.

Thunderbolts* (2025 / Jake Schreier) — Acima do padrão Marvel em termos de direção e atuações, mas a história é tão insípida quanto de costume: um grupo de semi-vilões ou anti-heróis (há toda uma romantização do sofrimento, da melancolia) é atacado por um vilão maior ainda e passa o resto do filme tentando neutralizá-lo — um monte de negativos combatendo outros negativos, e a trama não envolve nenhum objetivo empolgante, que gere real antecipação. Permanece razoável até o clímax, que escorrega ao tentar uma abordagem mais psicológica, onde a "cura emocional" se torna o foco de todos os esforços, e a ação física vira puramente simbólica.

domingo, 25 de maio de 2025

TV Aberta, Monocultura e o Consumo Passivo

Parece haver uma correlação entre o declínio da audiência de mídias como TV aberta e rádio (em favor do YouTube, podcasts e redes sociais) e o senso de desintegração cultural, alienação social, etc. A internet foi, aos poucos, promovendo o fim da "monocultura" — aquela época em que todos pareciam estar por dentro das mesmas notícias, sabiam que novela estava no ar, que filmes faziam sucesso nos cinemas, que gírias estavam em alta, quem era famoso ou não, qual era a música do momento — e da sensação reconfortante de que, se você saísse na rua e abordasse uma pessoa aleatória, haveria uma grande interseção entre seus universos.

A cultura atomizada criada pela internet pode ter seu lado positivo, mas a ausência de uma "monocultura" também traz problemas. Acredito, inclusive, que a nostalgia que muitos sentem hoje em relação ao passado — às vezes acompanhada de uma aversão equivocada a estrangeiros — pode estar ligada a um anseio por esse senso de coesão cultural promovido pelas mídias tradicionais.

De uns meses pra cá, voltei a consumir mais rádio e TV aberta — não só para resgatar um pouco dessa coesão, mas também por sentir falta do "modo passivo" de consumo de conteúdo. Na internet, cada um é responsável por criar sua própria cultura. Isso te força a um modo "ativo" constante de consumo: você está sempre escolhendo os conteúdos aos quais será exposto, sempre selecionando, tomando decisões, se autoestimulando. Sem essa autoestimulação, nada acontece — nada vem do mundo externo. Não há nada de errado com isso, mas é importante lembrar que existe uma diferença entre esse tipo de atividade e a de ser exposto passivamente à "monocultura" — pense na diferença entre escutar sua música favorita em um CD e ouvi-la inesperadamente no rádio. Quando um conteúdo é transmitido por uma mídia de massa "oficial", ele ganha uma existência pública — uma relevância cultural que não pode ser construída individualmente.

Sabe quando você fica horas procurando algo para ver no streaming, mas simplesmente não consegue decidir? O problema, nessas situações, muitas vezes não é a ausência do "filme perfeito" para o momento — o que você quer, na verdade, pode ser sair do modo ativo de consumo e simplesmente relaxar, entrar em contato com a cultura ao seu redor — ser conduzido por uma programação definida externamente. E há valor nisso. Não só no descanso mental e no senso de conexão, mas também no lado prático de estar em contato com a sociedade em que você vive. Temos que lidar diariamente com pessoas diferentes de nós, com eventos externos que impactam nossas vidas — então, mesmo que você seja crítico a boa parte da cultura, há vantagens em estar familiarizado com a realidade além da sua bolha.

Acredito, inclusive, que plataformas como a Netflix estão perdendo uma grande oportunidade ao ignorarem esses modos diferentes de consumo. Se, além do catálogo normal, os serviços de streaming tivessem um modo "ao vivo", com uma programação 24h de conteúdos selecionados pela plataforma, haveria um grande público para isso. Seria uma forma de promover estreias simultâneas e outras experiências que sempre associamos à TV tradicional.

A polarização política foi uma das grandes responsáveis por espantar o público da TV aberta, já que o contato com ela passou a ser desgastante para quem não estava sintonizado com determinadas ideologias. Isso pode ter tido consequências piores do que se imaginava. De uns tempos pra cá, no entanto, os discursos polarizantes perderam força, e emissoras como a Globo parecem estar tentando atenuar seu conteúdo para atrair de volta as pessoas que haviam se afastado. Se a TV aberta voltar a ser convidativa para todo tipo de público, e parte da "monocultura" for resgatada, essa pode ser uma das formas mais eficientes de reintegrar aquilo que foi desintegrado na sociedade nas últimas décadas.

Evitando o "Papo Brisado"

Meu impulso para escrever este texto veio depois de ouvir um podcast no YouTube, onde o convidado começou a divagar sobre questões filosóficas de maneira tão caótica que, por alguns minutos, achei que estava tendo uma mini bad trip. Foi um exemplo perfeito do que chamo de Papo Brisado: uma conversa existencial abstrata que perde totalmente a clareza e acaba em um caos epistemológico onde ninguém sabe mais do que está falando.

Vou transcrever abaixo alguns trechos em que ele argumentava a favor da espiritualidade e da eternidade da alma:

“A linguagem é muito esquisita. Quando eu digo: ‘Eu vim neste podcast’, eu nunca mais vou ter deixado de vir. Então, eu ter vindo no podcast é uma coisa eterna. Quando a coisa sai do ‘não ser’ e vai para o ‘ser’, ela se torna eterna.”

“Eu não consigo enxergar nada na realidade que não tenha uma causa e uma consequência. Existe algo, existe o movimento desse algo, existe algo que causou esse movimento, e esse movimento vai para algum lugar. Se eu chego à lógica de que tudo tem isso, eu também vou chegar à lógica de que ‘tudo isso’ também tem algo que funciona da mesma forma em relação a tudo isso. Olha que louco: pela lógica linguística, pela forma como a gente consegue pensar através da linguagem, a gente chega em questões espirituais. E eu fico pensando: por que o ser humano chega nisso? Se isso fosse uma ilusão, por que ela seria tão perene, forte e frequente? Seria como falar assim: ‘a cobra tem uma visão de calor, só que essa visão de calor da cobra é ilusória, e a coloca sempre em situações erradas’. Mas não é o caso. A visão de calor da cobra funciona para ela se movimentar. Assim como o golfinho tem o sonar. O cachorro tem o olfato. Da mesma forma, o ser humano tem essa coisa de explorar. E onde dá essa exploração? Ela sempre termina em coisas não materiais.”

A confusão que surge desse tipo de conversa é extremamente incômoda. Fica impossível dialogar com alguém assim, pois, em uma única fala, veja que ele mistura diferentes tópicos, tenta provar a validade dos sentidos, da razão, a existência de Deus (através do argumento da causa primeira) e encontrar um propósito para a vida humana em uma noção duvidosa de “eternidade”.

Como uma espécie de kit de primeiros socorros para conversas filosóficas que desandam, vou listar abaixo algumas das causas por trás do Papo Brisado. Com isso, você saberá melhor como desfazer os nós em uma conversa desse tipo e redirecioná-la para um caminho mais produtivo:

Problemas cognitivos

É preciso reconhecer que muitas pessoas simplesmente não têm organização mental suficiente para sustentar uma conversa altamente abstrata. Nesses casos, o ideal é evitar esse tipo de diálogo ou mantê-lo em um nível relativamente superficial.

Falta de conhecimento

Papos Brisados muitas vezes ocorrem porque os participantes são amplamente ignorantes no que diz respeito à ciência e à história da filosofia. Eles conversam como se fossem as primeiras pessoas a pensar sobre aquilo — ignorando boa parte do que a ciência já sabe e o fato de que a filosofia é uma disciplina bem estabelecida, organizada em ramos como metafísica e epistemologia — e terminam em conversas caóticas, sem estrutura, cheias de misturas de categorias e confusões conceituais que já foram resolvidas há séculos por pensadores conhecidos.

Problemas de linguagem

É importante sempre usar termos com clareza, para garantir que todos estejam se referindo aos mesmos fenômenos. Quando alguém usa palavras como “Deus”, “espiritual”, “linguístico”, “metafísico”, a pessoa pode estar se referindo a algo diferente daquilo que você entende por esses termos — e essa falta de definição é uma das grandes causas por trás do Papo Brisado. (Por medo de ser considerado burro ou inconveniente, o interlocutor muitas vezes finge que está entendendo o que o outro está falando, evita pedir definições, esclarecimentos, exemplos concretos, e a conversa se torna mais uma performance do que uma troca real de ideias.)

Perspectivas limitadas

Materialismo — Em conversas assim, é comum encontrar alguém que parece partir do princípio de que apenas o mundo material é científico, e que tudo no universo — inclusive a vida e a consciência — deveria ser totalmente explicável pela lógica newtoniana. Se a pessoa não aceita que existe tanto matéria quanto consciência no universo, e que isso é algo natural, ela estará sempre chocada com coisas óbvias: achará “muito louco” o fato de uma pessoa poder perceber um objeto, ter uma ideia, formar conceitos, se comunicar com outra consciência — tudo ligado à vida parecerá inexplicavelmente mágico, fantástico, apesar de serem coisas que até uma criança vê como naturais. Esse materialismo implícito transforma rapidamente uma conversa filosófica em um Papo Brisado.

Mentalidade convencional — Outro erro comum é o da pessoa de “senso comum” que ainda não aceita plenamente que existe um mundo além da bolha familiar em que ela vive — que a Terra é apenas um entre milhões de planetas no universo, que a evolução das espécies é real, etc. Essa pessoa acha que a realidade perceptível e imediata ao seu redor deveria ser a única realidade, e passará horas dando voltas em torno de fatos óbvios, achando “muito loucos” fenômenos que a ciência já explicou há muito tempo.

Objetivos impossíveis

Explicar o inexplicável — A motivação por trás de um Papo Brisado muitas vezes é tentar solucionar os “mistérios” do cosmos que milênios de ciência e filosofia ainda não resolveram: a origem do mundo material, da vida, da consciência, do tempo, etc. Se esse é o objetivo da conversa, ela inevitavelmente cairá em paradoxos e becos sem saída. Primeiro, porque algumas dessas questões estão além do nosso conhecimento científico atual — e dificilmente alguém da sua roda de conversa será o gênio que apresentará a teoria inédita que solucionará tudo isso. Segundo, porque muitas dessas perguntas são irracionais por natureza — “o que há além do universo?”, “o que havia antes do tempo?” — são questões que não podem ser respondidas, como gastar horas debatendo o formato de um “triângulo de quatro lados”. Nesses casos, é importante aceitar que o propósito dos participantes é apenas explorar poeticamente certas ideias, e que a ausência de respostas não é nenhuma prova contra a razão humana.

Transcender a condição humana — A busca incessante por conhecimento e certezas muitas vezes revela um interlocutor cujo desejo implícito é o da onisciência e da imortalidade. Essa pessoa se sente profundamente incomodada com as limitações do conhecimento humano. Age como se o universo estivesse conspirando para enganá-la, destruí-la — e sua única proteção fosse o conhecimento absoluto. Assim, o conhecimento deixa de ser uma ferramenta para vivermos bem na Terra e passa a ser um meio de transcender a condição humana. Ela perde de vista o contexto humano — precisa ser lembrada de que, para sermos felizes e bem-sucedidos neste universo, o que é conhecível já pode ser suficiente.

Desonestidade intelectual

Em alguns casos, a conversa se torna nebulosa não por uma dificuldade honesta de comunicação, mas porque os participantes, no fundo, não estão atrás de respostas — apenas querem confirmar visões de mundo previamente estabelecidas.

Subjetivismo/Misticismo — Há pessoas que, emocionalmente, preferem o mistério à explicação, o vago ao definido, o esotérico ao científico — e veem uma certa beleza na confusão, no paradoxal. Nesse caso, é importante não se iludir achando que o objetivo da pessoa é chegar a respostas. O prazer dela pode vir justamente da romantização do inexplicável.

Política — Há pessoas que colocam suas crenças políticas acima da lógica e da coerência. Para algumas, o objetivo da conversa filosófica pode ser justamente gerar caos epistemológico, a fim de proteger ideias que não estão abertas a questionamento. A busca por respostas e o linguajar científico são apenas uma fachada.

Esse tipo de desonestidade intelectual torna o Papo Brisado particularmente indigesto. Além de ter que lidar com o caos cognitivo, de pensar dez vezes mais do que o necessário para desfazer todos os problemas de linguagem, de suportar a pretensão de pessoas que não sabem do que estão falando, seu desconforto pode vir também da percepção de algo hostil por trás da conversa: o fato da pessoa estar se aproveitando do seu interesse por fatos e ideias complexas para preparar um ataque à razão e à objetividade. Assim como os Anti-Idealistas na arte atraem o público se apropriando de aspectos do Idealismo apenas para subvertê-los depois, algumas pessoas usam conversas filosóficas como isca para envolver mentes sedentas por conhecimento e aprimoramento intelectual, quando tudo o que elas querem é enguiçar sua mente.

Portanto, para evitar o Papo Brisado, lembre-se de que existem certas condições para que uma discussão filosófica seja produtiva. A pessoa precisa ter boa cognição, conhecimento básico sobre o tema, usar palavras com clareza, não pode ter objetivos impossíveis com a conversa, nem partir de perspectivas filosóficas irracionais e, acima de tudo, precisa ser intelectualmente honesta. Alguns desses erros podem ser corrigidos ao longo da discussão, mas, quando eles começam a se acumular a ponto de tornar impossível desfazer os nós, é hora de mudar educadamente de assunto e poupar sua energia mental.