sábado, 22 de novembro de 2025

Wicked: Parte II

Achei tão mal feito que tive quase o impulso de voltar e abaixar a nota que dei para o primeiro filme. Mas a verdade é que a primeira parte funcionou apesar das incompetências dos criadores, tudo por conta das forças da peça. A parte 2 da peça, por já ser fraca, não tinha como sustentar a continuação. Agora, todas as inaptidões de Jon M. Chu e dos roteiristas vêm à tona sem nada pra disfarçar. A história não tem nenhum senso de direção, as relações entre os personagens não têm coerência, as cenas musicais parecem desnecessárias e destoam em tom da narrativa, e os eventos no final parecem apressados e costurados de qualquer jeito só pra se ajustarem à cronologia de O Mágico de Oz. Sem falar nos temas marxistas, que agora se tornaram mais centrais, já que Elphaba virou revolucionária e sua luta contra o sistema é o foco desta parte. (Além de Frankenstein e do Predador, temos aqui mais um “monstro” do cinema recaracterizado em 2025 como vítima oprimida.) Outra coisa chata é o tom constante de rivalidade e desarmonia entre todos os personagens: Glinda vs. Elphaba, Fiyero vs. Glinda, Nessa vs. Boq, o Mágico vs. Elphaba — e não porque uns estão certos e outros errados, mas porque todos são imperfeitos, têm impulsos irracionais conflitantes e inevitavelmente precisam se chocar. (Em uma das letras, o Mágico canta: “Há pouquíssimos que se sentem à vontade com ambiguidades morais, então agimos como se elas não existissem” — refletindo aquela visão de que bem e mal são noções imaturas.)

Fala-se muito da crise atual em Hollywood, do suposto desinteresse das gerações mais jovens em ir ao cinema. Mas saí de Wicked: Parte II com a sensação oposta — se, com filmes tão medíocres, você ainda consegue ter estreias lotadas como essa (minha sala estava repleta de fãs vestidos de verde e rosa), isso é uma prova de que as pessoas realmente amam ir ao cinema! Pensando na qualidade dos filmes que têm sido lançados, o que surpreende não é o fato de haver uma crise, mas ela não ser muito maior do que é.

Wicked: For Good / 2025 / Jon M. Chu

Melhorando Argumentos Objetivistas: Aborto e Judeus

Objetivistas costumam ter argumentos sofisticados e convincentes para a maioria dos tópicos, mas quando o assunto é aborto ou antissemitismo, muitas vezes os vejo enfraquecidos em debates ou palestras. Eu concordo com o posicionamento geral do Objetivismo nesses dois tópicos (que o aborto não deveria ser ilegal e que o antissemitismo deve ser condenado), mas não acho que esses pontos costumam ser defendidos de maneira plenamente satisfatória.

Aborto:

A pior armadilha na qual objetivistas caem aqui é a de caracterizar o feto apenas como um agrupamento de células, dando a entender que não é diferente fazer um aborto do que cortar as unhas. Pra começar, a ciência não sabe exatamente como a mecânica da vida funciona, então não acho que esse tipo de afirmação possa sustentar um argumento sólido. E acho bastante razoável pensar que existe uma diferença fundamental, por exemplo, entre um ovo fecundado e um ovo não fecundado. Que a “fagulha” da consciência — que se transformará em uma consciência ainda mais evoluída com o desenvolvimento do organismo — já está atrelada à matéria desde o início. O problema de sugerir que não há consciência alguma no feto é que objetivistas, no fundo, acabam dizendo: “sim, se o feto tivesse alguma consciência, concordo que seria horrível matá-lo, e que o aborto deveria ser proibido — mas ele não tem consciência!”. Para mim, é óbvio que essa linha de raciocínio não tem muita força.

Pra argumentar a favor da legalização do aborto de maneira mais convincente, precisamos primeiro reconhecer que, sim, é possível que exista algo consciente dentro da mãe, um “eu” único e insubstituível, e que esse “eu”, ao ser abortado, possa passar por uma experiência subjetiva horrível — ainda que ele não faça muito sentido do que vivencie.

E como argumentar a favor do aborto depois de admitir isso?

Um caminho inicial é traçar um paralelo com o que fazemos com animais, no caso da alimentação. Se a pessoa não for vegana, ela terá que aceitar que mata seres conscientes rotineiramente para perseguir seus objetivos. Se ela não tiver problema em matar uma consciência primitiva, não racional, para promover sua vida, ela terá dificuldade em argumentar que a condição do feto é muito diferente da de um animal. O que torna o ser humano único e diferente de outros animais — nossa racionalidade e livre-arbítrio — depende de recursos mentais mais sofisticados que ainda não estão desenvolvidos no feto.

Mas e se a pessoa for vegana? Bastará lembrá-la que, ainda assim, ela mata vidas diariamente para sobreviver — a não ser que ela conviva pacificamente com baratas, pernilongos, e não dê um passo na calçada antes de checar se não há uma formiga no seu caminho. Nesse momento, ela terá que admitir que não existe como sobreviver sem nunca matar algo vivo. Este é um fato metafísico que não pode ser contornado. Na natureza, vidas matam vidas o tempo todo. O ser humano, após milhares de anos de civilização, conseguiu chegar a uma organização social em que combinamos que indivíduos humanos não iniciarão violência contra outros indivíduos humanos, pois entendemos que seres racionais podem sobreviver em harmonia, através da colaboração — lidando apenas com outras espécies e com a natureza na base da força. Uma vez que você faça a pessoa aceitar que eliminar vidas é inevitável, corriqueiro, e que o princípio de “não matarás” é uma regra que conseguimos aplicar apenas num contexto delimitado, em relações entre seres humanos racionais e independentes, fica mais fácil mostrar que a gravidez indesejada é um caso em que a natureza coloca duas vidas entrelaçadas em conflito, e onde não é possível aplicar os mesmos princípios éticos que aplicamos em sociedade.

Ou seja: você pode dizer que acha triste, até trágica, a experiência pela qual um feto deve passar (ou a de qualquer animal que é morto) — e ainda assim afirmar que o aborto deve ser permitido por lei e moralmente defendido em alguns casos. Se o aborto é uma tragédia, é uma tragédia imposta pela natureza, não por uma falha moral do ser humano.

Pode ser nobre querer minimizar o sofrimento no mundo, na medida em que isso não lhe impeça de viver e ser feliz, mas considerar qualquer forma de sofrimento uma tragédia que deve ser evitada a qualquer custo é uma noção mística que nega fatos óbvios da natureza.

Judeus:

Minha questão com o combate ao antissemitismo é mais sutil. A tendência de objetivistas é caracterizar o antissemitismo apenas como racismo, ódio religioso e ressentimento contra o sucesso. Acho que tudo isso de fato faz parte do quadro e são motivações comuns. Mas objetivistas ignoram um ponto por trás do antissemitismo que é essencial para dar clareza ao conflito. Esse ponto tem a ver com o fenômeno que discuti no texto Problemas do Objetivismo #12 — Ambição vs. Ganância: a diferença entre o “capitalismo criativo” e o “capitalismo predatório”.

Minha percepção é que parte do antissemitismo vem de uma aversão comum (e legítima) ao capitalismo predatório, uma prática muitas vezes associada à cultura judaica. Quando falo em “predatismo”, não estou falando de criminosos, chantagistas, pessoas que cometem fraudes reais — apenas do tipo de pessoa que busca o lucro de maneira fria, sem de fato se importar com a qualidade objetiva do produto/serviço que oferece, com o benefício real e bem-estar do consumidor, com o impacto a longo prazo etc. Objetivistas tendem a ver qualquer troca voluntária numa sociedade livre como benéfica. Porém, como discuti no texto Ambição vs. Ganância, vejo trocas voluntárias em um espectro, que vai desde relações ganha-ganha equilibradas e enriquecedoras até zonas cinzentas, onde uma pessoa manipula a outra, se aproximando de uma relação de ganha-perde, mas ainda operando dentro dos limites da lei. Como alguém que defende livres mercados e a separação entre Estado e economia, não acho que esse tipo de troca desequilibrada deva ser banida. Mas isso não quer dizer que, moralmente, eu admire as duas práticas igualmente.

E o que judeus têm a ver com isso? Bem, não estou dizendo que todos os judeus sejam capitalistas predatórios. Mas não é implausível pensar que existe algo na cultura judaica (não nos judeus enquanto “raça”) que, por razões históricas, incentiva esse tipo de prática mais do que outras culturas.

Quando objetivistas ignoram que existe uma diferença qualitativa entre o “capitalista criador” e o “capitalista predatório”, tratando toda forma de troca como igualmente saudável, isso cria uma desconfiança no ouvinte, que permanece cético por saber que existem formas vulgares e hostis de se fazer negócios. Se de fato houver algo na cultura judaica que incentive essas práticas, acho que objetivistas precisam estar dispostos a criticar esse aspecto da cultura. Claro, o fato de alguns judeus serem capitalistas predatórios não justifica genocídios e nem os discursos violentos que temos ouvido ultimamente. Mas quando você protege um conceito ou instituição negando problemas internos que todos podem ver, você não convence e não ajuda a quebrar preconceitos. Por isso, lutar contra o antissemitismo será mais fácil se você estiver disposto a criticar o capitalismo predatório ao qual judeus são frequentemente associados — isso não mudará a atitude de quem condena judeus por motivos completamente irracionais, mas ao enquadrar o problema como uma questão de comportamento, de uma certa tendência dentro de uma cultura — não algo biológico ou determinista — você poderá mudar a atitude daqueles que suspeitam de judeus por causa dessa postura econômica. (Da mesma forma, é mais fácil convencer alguém a aceitar o capitalismo quando você reconhece que, dentro dele, algumas pessoas agem de forma indigna — sem fingir que todos os empresários têm motivações nobres.)

domingo, 16 de novembro de 2025

Cultura - Novembro 2025

16/11 — Pluribus

Vi pessoas comentando que Pluribus, a nova série do criador de Breaking Bad, teria temas objetivistas e faria uma crítica ao coletivismo. Fui ver os três primeiros episódios e não vi nada disso. Sim, em um nível explícito e superficial, até existe a ideia de que ser uma pessoa robótica, sem individualidade, é ruim. Mas não é bem essa falta de personalidade que é o foco da crítica de Ayn Rand ao coletivismo. Além disso, o que a série oferece como exemplo de “individualismo” (a protagonista) passa longe de uma heroína randiana. 

Se você for além da mensagem explícita e analisar o que a série condena na prática, vai ver que ela está muito mais próxima daqueles filmes estilo Don’t Worry Darling, The Truman Show ou Barbie, que atacam a estética perfeitinha dos anos 50 — a suposta artificialidade do American Way of Life, onde tudo seria limpo, novo, todos seriam simpáticos e a sociedade funcionaria com extrema eficiência — versus o quê? Versus a bagunça da “vida real”. Por que a protagonista seria melhor que o resto da humanidade em Pluribus? Porque ela é mal-humorada, desarrumada, antipática, imperfeita etc. É esse contraste que é reforçado ao longo de cada episódio, não o contraste entre uma pessoa intelectualmente independente, virtuosa, e second-handers medíocres, parasitas etc.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Update: Faculdade

14/11 — Mais umas pérolas da professora marxista de Psicologia Social, agora mostrando um lado um pouco mais violento...


11/10 — Entrei em uma faculdade de Psicologia neste 2º semestre e apenas como um relato do tipo de coisa que tem sido ensinada pelos professores, vou postar abaixo um trecho da minha aula de Psicologia Social desta semana:

Como um outro professor já admitiu, não existe Psicologia Social que não seja marxista no Brasil. Porém, Psicologia Social não é a única matéria que estou cursando neste semestre. Nas aulas de Solução de Conflitos, por exemplo, o viés marxista é quase tão escancarado. Nesses primeiros dois meses, ouvi falar muito mais de Karl Marx e Paulo Freire do que de Freud e Jung.

Decidi começar a ler por conta própria livros sobre Psicologia e História da Psicologia para tentar absorver um pouco de teoria e me situar melhor no curso, pois o método de ensino é realmente caótico. Não só porque já estão dando no 1º semestre matérias avançadas que pressupõem uma base prévia em Psicologia, deixando todo mundo perdido, mas também porque os professores têm certo desdém pelo método científico e promovem aquela mentalidade pós-moderna de que tudo é relativo, de que não existem verdades absolutas, de que professor e aluno "aprendem juntos" etc.

Eu já sabia que as faculdades tinham esse tipo de agenda política, mas imaginava que seria algo inserido discretamente no meio do ensino da disciplina, que seria o foco principal. Porém, a impressão que estou tendo é quase a oposta: de que a "conscientização política" é o foco principal e, no meio disso, eles ensinam uma ou outra coisa útil para o exercício da profissão.

De uma forma meio distorcida, até que está sendo interessante. Por enquanto, não tenho aprendido muito sobre psicologia em si, mas tenho aprendido algo sobre as instituições e sobre como a cultura ao nosso redor é moldada.

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Predador: Terras Selvagens

Não achei um filme chato de assistir, e a produção é decente (apesar de ter um clima de série do Disney+). O enredo é meio episódico — um daqueles road movies em que os protagonistas só precisam chegar a um determinado local e no meio do caminho enfrentam obstáculos, fazem amizades, sofrem decepções etc. Mas não foi nesse nível que o filme mais me incomodou. Onde ele degrada a franquia é justamente na principal coisa que o Predador original tinha a seu favor — o protagonista e o senso de heroísmo. Ao longo dos anos, fomos ficando tão acostumados com a relativização do bem e do mal no cinema que as pessoas já nem acham estranho ver um filme que nos faz torcer pelo Predador e ficar contra os humanos (daqui a pouco, é capaz de fazerem um remake ambientalista de Jaws, onde o tubarão é a vítima). Aqueles que antes costumavam ser os monstros mais horripilantes e ameaçadores agora são as vítimas incompreendidas. O vilão real, pra variar, são as grandes corporações, a ganância humana, o pai autoritário — tudo aquilo que simbolize o forte, o “opressor”. Torcer por anti-heróis se tornou tão automático para o público que o fato do mocinho aqui ser uma máquina de matar, com um rosto medonho, movido a ódio e vingança, não parece causar nenhuma dissonância cognitiva (o filme, aliás, é lançado no mesmo mês em que Frankenstein também se torna uma vítima da sociedade industrial nas mãos de Guillermo del Toro).

Eu não teria problema em torcer pelo Predador, no contexto dessa história, se ele projetasse virtudes positivas — se fosse um guerreiro minimamente admirável. A questão não é tanto a inversão de papéis, mas a chatice de transformar a franquia nesse drama vitimista sobre pessoas fragilizadas, falando sobre suas dores, buscando aceitação etc.

Predator: Badlands / 2025 / Dan Trachtenberg

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Soft skills não produzem obras-primas

Uma das matérias que precisamos cursar no primeiro semestre da minha faculdade se chama "Vida e Carreira", onde você aprende a planejar seu futuro profissional, pensando em como se preparar melhor para o mercado de trabalho etc. E o conceito mais martelado ao longo do semestre foi o da importância das soft skills hoje em dia. O que aprendemos é que você é contratado pelas suas hard skills, mas são as soft skills que fazem você permanecer (hard skills: competências técnicas; soft skills: competências comportamentais e sociais).

Esse pensamento parece predominante em diversas áreas. Há alguns anos, cheguei perto de trabalhar no departamento de roteiro de uma produtora de longas e séries em São Paulo. Conversando com a chefe da produtora, questionei o motivo pelo qual eles trabalhavam com um mesmo diretor em diversos projetos. Ela respondeu que adorava esse diretor porque era uma pessoa fácil de trabalhar, alguém que fazia o que tinha que ser feito e não criava problemas — deixando clara uma certa ojeriza por diretores “difíceis”.

O problema é que, até hoje, a produtora só fez coisas medianas — nunca produziu nada de grande relevância artística, nem teve nenhum grande sucesso de público. Ficava claro pela conversa que a preocupação com talento e excelência não era uma prioridade ali. Parte do motivo disso vem do fato da CEO não ser uma pessoa do meio artístico, com bagagem, boas referências etc. Ela chegou a confessar — de maneira que me deixou até meio constrangido — que, quando lia roteiros, não tinha ideia do que era bom ou ruim.

Se você não tem uma grande paixão pelo que faz, nem um grande respeito pelo público, uma das consequências é priorizar as soft skills na hora de contratar profissionais e formar parcerias. A tranquilidade do ambiente de trabalho se torna mais importante que a qualidade do produto final.

Não tenho nada contra desenvolver soft skills, cobrá-las dos outros, exigi-las em cargos que se sustentam mais em relações interpessoais do que em performance. O problema é quando as soft skills se tornam o principal critério para tudo, e o simples fato de alguém ser visto como “difícil” torna-se motivo para descartá-lo.

Quem é ambicioso, prioriza qualidade e tem foco no produto final sabe que precisará colaborar com pessoas difíceis — e aprender a “domá-las”.

Podemos pensar no talento humano como uma espécie de petróleo ou mineral raro. Se você quer encontrá-lo, precisa ir onde ele está. Pode ser que você dê sorte e o petróleo brote no seu quintal. Mas, frequentemente, ele estará em locais de difícil acesso. O equivalente a priorizar soft skills, nessa analogia, seria o explorador buscar riquezas apenas quando elas aparecem em locais próximos, convenientes, e o processo de extração é pouco desgastante. Caso contrário, ele se contentará com terra, pedregulhos etc.

Há quem diga que hard skills são ensináveis e soft skills não — portanto, deveríamos priorizar as soft skills na contratação. Isso pode fazer sentido em atividades menos complexas, ou quando não se espera níveis extremos de habilidade. Você pode ensinar a maioria das pessoas inteligentes a se tornar um bom vendedor, um bom motorista, um bom gerente. Mas não se ensina talento musical, não se treina alguém para se tornar um astro de cinema ou para ser um inventor revolucionário.

Cada vez menos as pessoas parecem dispostas a lidar com personalidades difíceis para obter resultados excepcionais — algo que os produtores pioneiros de Hollywood, como Louis B. Mayer, faziam rotineiramente. Não estou romantizando a grosseria ou a falta de ética — o ideal é quando as hard skills e as soft skills se encontram. Steven Spielberg é um dos diretores mais talentosos do mundo, e se relaciona bem com todos com quem trabalha. Mas essa combinação não é garantida. Diria que ela é até rara: pessoas com habilidades extraordinárias tendem a ter personalidades complexas e sensibilidades atípicas, que frequentemente afetam a socialização.

Soft skills podem ser indispensáveis em certos cargos. São desejáveis na maioria dos cargos. Mas soft skills não produzem obras-primas. Quando falamos dos talentos, das funções mais cruciais para a qualidade final do produto — no caso do cinema, podemos destacar o roteirista, o diretor e os astros principais — as hard skills deveriam ser o principal critério de escolha. O fato delas serem subvalorizadas na cultura atual explica um pouco o declínio dos padrões no cinema e em outras áreas.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Frankenstein

Até a cena do nascimento da criatura, estava achando Frankenstein o melhor filme de 2025 (o que foi uma completa surpresa para mim, considerando minha antipatia habitual pelos filmes do diretor). Na segunda metade, porém — especialmente quando a história passa a ser contada pela perspectiva do “monstro” — o filme começa a escorregar, criando um dos contrastes de qualidade mais frustrantes de que me lembro entre duas partes de um mesmo filme. 

Nunca li o livro de Mary Shelley, mas eu podia jurar que conseguia distinguir, só pela qualidade do texto e do desenvolvimento da trama, o que era uma adaptação fiel à obra original e o que tinha sido criado por del Toro. A segunda parte é cheia daqueles problemas de lógica e plausibilidade típicos do cinema moderno: quando a criatura volta às ruínas do laboratório, por exemplo, ela encontra diversos estudos e uma carta com o endereço atual de Viktor — como esses papéis ainda estavam ali, praticamente intactos, depois de meses (ou anos) expostos à neve, chuva e vento?

Sem falar que não faz o menor sentido a criatura — que no prólogo é apresentada como um monstro implacável, pior que Voldemort, o T-1000 e o Xenomorfo combinados — invadir o navio e, em vez de matar todo mundo, resolver educadamente começar a narrar sua história de vida. Os diálogos também subitamente emburrecem, se tornando óbvios (on the nose), piegas, novelescos, como “Você é o monstro”, “Viktor, eu te perdoo” ou “Talvez agora possamos ambos ser humanos”. Compare isso com a qualidade de alguns diálogos da primeira parte, como as discussões científicas (ou quase) entre Viktor e seus colegas de profissão.

A direção de arte e toda a produção de Frankenstein são ótimas — mas, como de costume, o departamento de roteiro não foi tratado com os mesmos padrões de excelência.

Frankenstein / 2025 / Guillermo del Toro

terça-feira, 28 de outubro de 2025

O Agente Secreto

ANOTAÇÕES:

(Os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

- A cena inicial no posto (com o cadáver) seria uma boa abertura se funcionasse como um microcosmo do filme — uma representação simbólica de um tema central que seria desenvolvido depois (a corrupção da polícia, das instituições). O problema é que o filme não tem um tema central claro, tornando a cena meio solta, apenas um dos diversos episódios excêntricos que veremos ao longo da narrativa.

- É preciso diferenciar filmes bem dirigidos de direções com personalidade. São duas coisas distintas, e que nem sempre andam juntas. Aqui, a direção tem bastante personalidade, que se manifesta principalmente na atitude irônica e nos detalhes bizarros inseridos em todos os lugares (o morto no posto, a gata de duas cabeças, a perna decepada, as referências inusitadas à cultura pop americana, as cenas de sexo em público etc.). Mas isso, por si só, ainda não é uma boa direção.

- Não sei se o diretor tem um olhar que sem querer revela a feiura das coisas, ou se isso é proposital — se ele tem algum compromisso ideológico com a representação do feio na arte. Apesar de tanto O Agente Secreto quanto Ainda Estou Aqui serem filmes Naturalistas que se passam no período da ditadura militar, há um fascínio pelo grotesco e pela feiura em O Agente Secreto que reflete um Senso de Vida bem diferente. Se você desse uma câmera fotográfica a Kleber Mendonça e outra a Walter Salles, e pedisse que eles escolhessem qualquer lugar do mundo para fotografar, ambos provavelmente escolheriam uma realidade brasileira, situações de vulnerabilidade social, usariam luz natural, poucos efeitos... Mas enquanto Salles andaria por esse local buscando detalhes bonitos pra registrar, Kleber andaria pelo mesmo ambiente atento a tudo que é nojento — um animal atropelado na rua, um rosto desfigurado, uma camisinha descartada no mato — e é esse tipo de coisa que ele acharia digno de capturar e apresentar ao público.

- Meia hora de projeção e ainda não sabemos praticamente nada sobre o personagem — o que ele faz, o que busca etc. O filme parece mais um pretexto para retratar "brasilidades" (coxinha, carnaval de rua etc.) e recriar a atmosfera de um lugar/época que desperta nostalgia no cineasta (Kleber cresceu em Recife nos anos 70). 

- Wagner Moura está bem. É uma performance sutil, sem aqueles momentos intensos e virtuosos que associamos a prêmios, mas o elenco, de modo geral, é bom.

- Existe uma trama em algum lugar aqui, mas por algum motivo o cineasta não quer que o espectador saiba direito do que ela se trata. Por volta dos 40 minutos, descobrimos que homens estão indo atrás do Marcelo (Wagner Moura) para matá-lo — mas pra ficarmos realmente envolvidos, precisaríamos entender os valores em jogo: o que o protagonista fez, se ele é inocente ou culpado, qual o contexto, quais os planos de cada lado etc. É o típico filme autoral pretensioso que acha que o espectador deve entrar na sala já conhecendo as referências do artista. Pense em alguém de fora do Brasil vendo este filme: a pessoa sequer vai entender o contexto da ditadura militar, o que tornará a perseguição ainda mais sem sentido.

- Como de costume, há uma demonização de todos aqueles que estão em cargos de poder ou em posições de “privilégio”: policiais, empresários e patrões viram sinônimos de assassinos, estupradores, escravagistas etc.

- Qual a relevância da história da perna? Do alfaiate judeu com as cicatrizes? Da sala de cinema? O filme às vezes parece uma coleção de sketches que o diretor foi escrevendo ao longo do tempo e resolveu juntar em um único longa, sem grandes preocupações com coerência temática.

- Por volta de 1h40 entendemos aquilo que, em um filme narrativo normal, seria estabelecido nos primeiros 20 minutos — o que o protagonista fez e quem quer matá-lo. O grande vilão do filme é o cara que quer cortar verbas da universidade pública por questionar a qualidade dos projetos de pesquisa. Tá certo que ele está errado em mandar matar o Wagner Moura... Mas que eu acreditei mais nele do que no Wagner em relação às pesquisas da universidade, isso eu acreditei.

- Chamar o longa O Agente Secreto, sugerindo uma espécie de trama hitchcockiana, é apenas uma ironia do diretor — uma daquelas referências passivo-agressivas ao Idealismo que Anti-Idealistas adoram fazer, sem a menor intenção de segui-las.

- Já suspeitava desde o início que o personagem do Bobbi seria ridicularizado, morto ou ambos: por que um filme tão comprometido com a feiura escalaria um ator como Gabriel Leone?

- SPOILER: É coerente o protagonista ser assassinado e o filme nem mostrar isso — revelar só depois, numa matéria de jornal, como um fato corriqueiro. Se tudo culminasse numa perseguição grandiosa e empolgante, eu provavelmente teria gostado um pouco mais do filme. Mas isso teria sido menos consistente com a atitude niilista e anti-espectador do resto do longa.

- Anticlimáticos esses saltos para o presente, onde as garotas estão fazendo pesquisa na universidade. A estética não conversa com o resto do filme. (Mas quem está preocupado com coesão, harmonia?)

- No fim, o filme entra numa discussão aleatória sobre memória e o apagamento do passado que parece pertencer mais ao filme anterior do diretor (Retratos Fantasmas) do que a este.

O Agente Secreto / 2025 / Kleber Mendonça Filho

sábado, 25 de outubro de 2025

Casa de Dinamite

Durante os primeiros 30 minutos, achei que estava vendo um filme sólido, na linha de Setembro 5. Apesar de cair um pouco na categoria “filme de serviço”, o que acontece no emprego dos personagens nesse dia é tão extremo que consegue prender a atenção, mesmo na ausência de personagens mais cativantes. O elenco é bom, o gancho é forte e bem posicionado: logo nos primeiros 10 minutos, agentes do Departamento de Segurança dos EUA detectam um míssil vindo em direção ao país — que logo se revela uma bomba nuclear. O problema é que o míssil é tão rápido que restam menos de 20 minutos para os personagens fazerem qualquer coisa. Fiquei me perguntando: como o roteiro lidará com isso? A bomba cairá já no final do “ato 1”, e o resto do filme será sobre as consequências? Ou o filme criará uma distorção temporal, esticando esses 20 minutos pra que durem uma hora e meia?

Infelizmente, o caminho escolhido é o menos interessante: toda vez que a bomba está prestes a atingir o solo, o filme reinicia a narrativa — só que agora pelo ponto de vista de outro personagem. Como comentei em A Hora do Mal, tendo a achar uma chatice essa coisa de múltiplas perspectivas. Em vez de tornar a narrativa mais empolgante, isso costuma ser puro Idealismo Corrompido, uma tática pra tirar o foco do suspense e do espetáculo e se concentrar nas angústias e dilemas dos personagens (algo mais “humano” e “intimista”) — além, claro, da mensagem subjetivista que costuma acompanhar essa abordagem (“vejam, existem diversas verdades!”). Se você quer mostrar múltiplas perspectivas, o cinema já oferece uma ferramenta pra isso: a edição paralela. Não é necessário reiniciar toda a história.

SPOILER: Se ao final de tudo tivéssemos uma recompensa satisfatória pro gancho inicial — se houvesse uma grande cena envolvendo a bomba — a espera teria valido a pena. Mas o filme tem o desfecho mais brochante possível, terminando sem mostrar se a bomba cai, de onde ela veio ou quais são as consequências — uma completa traição às expectativas criadas no espectador. Os créditos finais surgem na tela de forma tão abrupta e seca que, por um momento, achei que tivesse sentado em cima do controle remoto e pulado uns minutos pra frente. Se o filme tivesse personagens riquíssimos e o interesse central fosse as relações entre eles, talvez a bomba não fizesse falta. Mas aqui, os personagens são funcionários do governo que só nos interessam na medida em que estão lidando com um evento catastrófico. Não há interesse algum na “dimensão pessoal”. Casa de Dinamite parece um roteiro inacabado — um longo ato 1 que não leva a lugar nenhum.

O único sentido que consigo fazer desse filme é que o propósito da diretora não era criar um suspense eletrizante, nem um drama humano — mas apenas manchar a imagem do governo americano, mostrando o despreparo de todos diante de uma crise global. E não como uma crítica construtiva, feita por alguém que espera competência e padrões mais elevados. É apenas o prazer de mostrar que somos todos falhos, que não existem heróis — nem no alto escalão da maior potência do mundo.

O engraçado é que, seguindo a agenda D.E.I., o filme é repleto de mulheres, latinos e negros em posições de liderança. O problema é que, nesse caso, essa inclusão não é nem um pouco lisonjeira — e pode até levar alguns espectadores a ligar os pontos entre políticas D.E.I. e incompetência, tirando do filme uma mensagem que não me parece ser a planejada pela diretora.

A House of Dynamite / 2025 / Kathryn Bigelow

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Cultura - Outubro 2025

22/10 — Nunca estive tão pouco motivado pra ir ao cinema (ou pra escrever críticas) quanto em 2025. A média de qualidade dos filmes anda tão baixa que já não tem me bastado mais dividi-los entre “bons” e “ruins”. É preciso criar uma nova categoria — algo que distinga filmes de verdade de meros conteúdos audiovisuais.

Digo isso porque acho que nem todo vídeo com mais de 70 minutos é automaticamente um “filme” no sentido tradicional — assim como nem toda substância comestível em quantidade suficiente pra encher a barriga pode ser chamada de uma “refeição”. Pra que um vídeo longo se torne um filme, na minha concepção, ele precisa oferecer uma quantia mínima de nutrientes: um mínimo de investimento criativo, de estrutura narrativa, de ideias originais, de talento, ambição, escapismo etc.

É o que quis dizer no texto Filmes Nota 6 Salvariam a Indústria. Mas, dos cinquenta e poucos longas de ficção de 2025 que vi até agora, diria que apenas uns sete ou oito eram realmente filmes. Não estou dizendo que eram bons filmes ainda — apenas que me deram a sensação de estar vendo um filme. Todo o resto se encaixava melhor na categoria de “conteúdo audiovisual”.

Pegue as principais estreias das últimas semanas: O Telefone Preto 2, O Bom Bandido, A Casa Mágica da Gabby, The Mastermind, Tron – Ares, Depois da Caçada, Casa de Dinamite, GOAT, Coração de Lutador – The Smashing Machine, Os Estranhos: Capítulo 2 — nenhum desses filmes me fez ir animado ao cinema, com a convicção de que, se eu comprasse o ingresso, eles me divertiriam, me fariam sair inspirado da sala, energizado ou algo do tipo. Os que arrisquei ver dessa lista, de fato, não fizeram isso.

Sem falar que ninguém fora da bolha cinéfila parece saber que esses filmes existem. Quando um filme é fraco, mas é um evento cultural, ainda há certo interesse em vê-lo, discuti-lo. Mas não há graça em discutir filmes medíocres que não têm o menor impacto na cultura.

Não me parece acidental que 2025 — além de ser o ano cinematográfico mais tedioso de que me lembro — tenha se tornado também o ano dos relançamentos. A programação está tão lotada de clássicos que, numa cidade como São Paulo, quando você abre o Ingresso.com, os filmes novos se perdem no meio de tantas opções antigas. Quando os lançamentos deixam de cumprir suas funções enquanto entretenimento, reexibir filmes antigos começa a se tornar um negócio cada vez mais lucrativo.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Outubro 2025 - outros filmes vistos

Tron: Ares (2025 / Joachim Rønning) — Imagens e sons bonitos, mas pura mediocridade no nível da história, dos diálogos, do elenco, das mensagens (é daqueles filmes tipo Avatar que te atraem pela tecnologia e pelo alto valor de produção, mas daí trazem um enredo anti-capitalista pra “equilibrar”). 

Na minha viagem recente pra Orlando, tive uma impressão muito forte: a de que os parques da Disney representam algo muito mais grandioso e vital para a empresa do que a divisão de cinema. E talvez isso explique, em parte, a mediocridade dos filmes. Em muitos casos, os produtores não estão tentando criar obras duradouras, que sejam fins em si mesmas. O verdadeiro produto é o parque — e os filmes servem principalmente para manter as atrações “quentes” no imaginário popular. A montanha-russa do Tron, inaugurada em 2023, é atualmente a atração mais disputada do Magic Kingdom (a Disney de Xangai tem uma desde 2016). Faz sentido, portanto, produzir mais filmes da franquia Tron pra manter o brinquedo em alta. O mesmo vale para novos conteúdos de Star Wars, sequências de Avatar e remakes live-action dos clássicos. A reforma atual da Frontierland trará uma nova área baseada em Carros — então, se uma sequência de Carros for anunciada nos próximos anos, vocês já sabem o motivo. Ou seja, com raras exceções, a Disney tem feito filmes não com a mentalidade de quem vê o cinema como sua própria experiência, mas com a mentalidade de quem produz aqueles vídeos temáticos que passam na fila do brinquedo. 

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

IA e Criatividade

Temos visto cada vez mais pessoas realizando trabalhos artísticos com o uso da IA. Isso vem levantando uma série de discussões a respeito do papel da arte, mas nenhum debate pode ser satisfatório se ignorar um princípio central: certos produtos humanos — como a arte — não são meramente utilitários. Não são como um pedaço de pão, que serve apenas para matar a fome, sem que importe de onde ele veio, quem o preparou etc. Certos produtos têm valor porque refletem as virtudes e qualidades pessoais do criador — seu interesse não está meramente no objeto à sua frente, mas também no que ele revela a respeito da pessoa que o criou. 

Fazendo uma analogia, o valor de uma fotografia não está apenas no prazer que as cores e formas que ela revela provocam nos seus olhos. Boa parte do valor está na suposição de que aquela imagem representa algo que existe no mundo real. Se você adultera totalmente a foto, ela perde esse valor documental. Já quando vemos uma obra de arte — uma pintura, por exemplo — não assumimos que ela reflete uma realidade física exata. Seu valor depende de ela refletir outro tipo de realidade — a do artista: o que inclui não apenas suas ideias, visões e valores, mas também suas capacidades e talentos.

Frequentemente, somos inspirados mais pelas virtudes do artista representadas em uma obra do que pela "mensagem" em si ou pelo conteúdo. Pense nos seus artistas favoritos e no quanto o fato de eles demonstrarem habilidades extraordinárias em seu trabalho pesa na sua admiração. O Davi de Michelangelo teria grande apelo se tivesse sido feito por uma impressora 3D, e tivéssemos que avaliá-lo apenas pela ideia do criador, e não também pela execução?

Pra mim, esta é a discussão central no que diz respeito à IA e à criatividade. As virtudes e habilidades reais do artista importam? Ou apenas a intenção, a visão geral? Quem não vê problema em criar arte com IA parte do princípio de que apenas a visão geral conta — o “gosto” do artista — pouco importando suas reais capacidades. Já para quem acha que a arte deve refletir os talentos do artista, criar com IA parece uma espécie de fraude — quebra o contrato implícito que sempre existiu entre artista e espectador: o de que a obra reflete tanto a visão quanto as habilidades do criador. Pra esse espectador, apreciar arte criada por IA é como estar na posição de um professor corrigindo redações escritas com o ChatGPT: tentando se concentrar apenas na intenção e nas decisões amplas que governam o texto, mas sem ter como saber se o aluno entendeu a matéria, se sabe escrever ou se é semi-analfabeto.

Acho que é um engano pensar que o artista que cria com IA será admirado pelo seu “dom” de criar prompts, da mesma forma que um diretor de cinema é celebrado como o autor de um filme, mesmo dependendo de outras pessoas para executar sua visão. A partir do momento em que você introduz a IA no jogo, o espectador já não confia mais na autenticidade plena da obra. Ele não tem como saber se a IA está apenas executando as ideias originais do autor ou se está “tendo ideias” por ele (copiando de outras obras). Assim, a arte deixa de refletir a realidade interna do artista e perde um de seus atributos mais essenciais — como no caso de falsificações. 

Não acho que a IA generativa deva ser banida. Mas acho que se tornará crucial para o espectador saber quando um trabalho criativo foi feito com a ajuda de IA — e o que exatamente a IA fez (por exemplo: se um roteirista a usou apenas para correções ortográficas, se a usou para criar diálogos ou se a premissa inteira do filme foi baseada na IA).

Se o mundo começar a ser inundado de arte criada por IA e o devido crédito não for dado, será como viver em um mundo distópico no qual não confiamos mais em fotos, vídeos e em nenhuma forma de registro. Nada mais será um reflexo confiável da realidade ou das capacidades de ninguém. A pessoa que quiser ser apreciada por suas reais capacidades terá que achar formas de provar que não usa IA — da mesma forma que cantores talentosos hoje precisam divulgar que não usam autotune e não fazem playback em shows, pois o normal é o público já desconfiar. A IA é o "autotune do cérebro" — uma ferramenta que permite que você pareça virtuoso em inúmeras atividades nas quais não é. Portanto, devemos usá-la com prudência e evitá-la quando a presunção do público for a de que aquelas são as suas habilidades.

Índice: Artigos e Postagens Teóricas

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Uma Batalha Após a Outra

Há uma cena de perseguição de carros no final de Uma Batalha Após a Outra que é tão brilhantemente concebida e executada que arruinou meus planos de falar apenas mal do filme. No nível do roteiro, a cena nem faz tanto sentido (como o cara sabe que Willa está naquele carro? E o DiCaprio?), mas ignorando esses detalhes, é um momento de puro cinema: que outra arte seria capaz de transformar o simples sobe e desce de uma estrada naquele balé vertiginoso de carros? É uma forma criativa e memorável de filmar uma perseguição (normalmente, usa-se lente grande-angular para aumentar o senso de velocidade, e aqui o filme faz o oposto) — e não é um truque estilístico desconectado da função narrativa: se não fosse pelo achatamento e pelo senso de desorientação espacial criado pela lente teleobjetiva, não seria tão convincente o acidente que encerra a perseguição.

SPOILERS: O filme não acaba aí, e a segunda cena mais eficaz do longa vem logo depois: a conversa entre DiCaprio e a filha, na qual ele revela a verdade sobre sua mãe, Perfidia. Não é uma cena que funciona tão bem para mim, pois ela exige que você tenha uma simpatia pelos personagens que eu não desenvolvi ao longo da narrativa. Mas é uma maneira inteligente de concluir a história. Se você estiver alinhado ideologicamente com o filme — se estiver torcendo para a família ter um final feliz e achar empolgante a ideia de Willa se tornar uma revolucionária como a mãe — você sairá da sala em êxtase após esses 20 minutos finais.

Mas eu não estava tão alinhado. E nem só pela questão política. Sempre acho difícil me envolver com histórias que focam apenas em figuras decadentes, corruptas, ridículas (filmes do Tarantino, por exemplo). Se o filme fosse uma sátira pura, que apenas ridiculariza ou condena os personagens, não haveria tanto problema. Mas Uma Batalha Após a Outra é parte sátira e parte thriller de ação que espera que você torça pelos protagonistas, por mais falhos que eles sejam.

Quanto à trama, é uma geringonça que desafia qualquer resumo: há um prólogo de meia hora, um salto no tempo de 16 anos, uma longa introdução a esse novo contexto, e só depois de 1 hora um enredo mais focado é apresentado, quando o personagem de Sean Penn começa a caçar a filha. Mas mesmo aí, o filme permanece confuso, pois há várias tramas paralelas se desenvolvendo simultaneamente, e boa parte do tempo é gasta com o personagem do DiCaprio, que é praticamente inútil para a ação central. Se você for pensar, Lockjaw (Penn), a filha e Perfidia deveriam ser os protagonistas, os fios condutores da história, mas o filme decide focar no DiCaprio — um maconheiro que mal sabe o que está acontecendo na maior parte do tempo. Paul Thomas Anderson se deleita nesse caos, criando praticamente um "stoner movie". Se não fosse pelo foco que o filme ganha na reta final, minha avaliação geral não seria muito superior à de Vício Inerente — outro filme de PTA adaptado de um livro de Thomas Pynchon, do qual não gostei quase nada.

Mas Uma Batalha Após a Outra tem alguns méritos inegáveis, incluindo Sean Penn em uma das performances mais memoráveis de sua carreira. Apesar do meu desdém pelo teor geral da história, meu respeito por talento e autenticidade me força a reconhecê-los.

One Battle After Another / 2025 / Paul Thomas Anderson

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A Longa Marcha

Recentemente, postei um texto falando sobre ganchos e recompensas, e A Longa Marcha é um bom exemplo de um filme prejudicado pelo gancho. O conceito da caminhada mortal é até chamativo, mas há um problema fundamental em A Longa Marcha que enfraquece a experiência: não é nada plausível que garotos aparentemente saudáveis como aqueles, com boas condições de vida, iriam se voluntariar para uma competição tão irracional (já é difícil acreditar que seria possível uma competição como essa existir na América, mesmo em um futuro distópico). Se os participantes fossem condenados à morte com uma chance de escapar, ou estivessem sendo forçados por psicopatas, até daria pra aceitar. Mas aqui são apenas pessoas que, sem obrigação alguma, se colocam em uma situação da qual dificilmente sairão vivas.

Imagine tentar criar um thriller sobre um suicida: o protagonista decide se enforcar sem grandes motivos, compra um pedaço de corda, escolhe uma viga, e daí o filme começa a querer criar suspense em cima dos perigos que ele corre: mostra o banco cambaleando, a corda áspera roçando no pescoço, a expressão de tristeza em seu rosto etc. Você ficaria tenso? Comovido? Provavelmente não. Se o personagem não valoriza a própria vida, por que você deveria?

O que explica essa falta de plausibilidade é o fato de A Longa Marcha não querer ser um thriller de fato, e sim uma alegoria política, um comentário sobre a “América”. O que Stephen King (autor do livro) está dizendo no fim é: o capitalismo me faz sentir como se eu estivesse em uma competição cruel, com fuzis apontados para minha cabeça, da qual apenas um vencedor pode sair vivo. Obviamente, esse não é um retrato honesto do capitalismo. É uma distorção que visa expressar o que o autor sente em relação ao sistema. Mas isso tem graça apenas para quem compartilha do mesmo sentimento. Imagine um artista que acredita que mulheres são sanguessugas e faz um filme alegórico sobre um homem que se casa com uma mulher que, aos poucos, vai se transformando fisicamente em um parasita asqueroso. Se não houver uma boa trama e uma explicação convincente para essa mutação, o filme só será divertido no nível simbólico; só funcionará para aqueles que sentirem prazer em ver mulheres sendo difamadas. Isso é exatamente o que A Longa Marcha faz com a América.

Pra ter impacto, a mensagem de um filme deve emergir naturalmente da sequência de eventos que ele apresenta. A plausibilidade desses eventos é o que dá força ao argumento. Se a mensagem depende de inventar uma situação irreal, de fazer os personagens agirem de maneira impossível, isso equivale a não ter argumentos.

Se A Longa Marcha fosse um suspense tenso, divertido, eu não me importaria tanto com a mensagem. Mas o filme se sustenta apenas em sua mensagem. A não ser que você tenha certo fascínio em ouvir conversa fiada de jovens tolos ou em ver imagens grotescas de cérebros explodindo, pés sangrando e pessoas fazendo as necessidades no chão.

The Long Walk / 2025 / Francis Lawrence

Ne Zha 2 - O Renascer da Alma

Daquelas fantasias tão desconectadas do mundo real que a narrativa se torna arbitrária e desinteressante. Em Ne Zha 2, os personagens podem existir em corpos físicos ou fora deles, podem mudar de aparência, virar animais, se tornar imortais; seus objetivos são baseados em mitos cheios de regras aleatórias e dependem de magias para serem atingidos — magias que vão sendo tiradas da manga conforme as necessidades do roteiro: se o personagem está prestes a ser engolfado pela lava, ele se transforma em pedra e sobrevive; se precisa lutar contra um vilão muito mais poderoso, engole pílulas mágicas e se torna invencível. Tirando essa dose mais exagerada de misticismo (e de piadas de banheiro), pelo visto o Idealismo Corrompido da Ásia está tristemente parecido com o do mundo ocidental (histórias sobre anti-heróis, sacrifícios etc.). A única coisa que achei admirável no filme é a ambição da parte gráfica, que tem aquele tipo de grandiosidade que parece que apenas o Oriente hoje sabe criar — a animação é uma demonstração de poder análoga aos projetos arquitetônicos mirabolantes que vemos por lá, ou aos desfiles militares de Xi Jinping. Mas é uma ambição que se limita ao aspecto físico, visual. Se Ne Zha 2 for o melhor que a China tem a oferecer hoje em termos de entretenimento audiovisual, diria que eles estão mais frágeis em 2025, culturalmente, do que estavam na época em que seus blockbusters eram coisas como O Tigre e o Dragão (2000) e Herói (2002).

Nezha: Mo tong nao hai / 2025 / Yu Yang

sábado, 13 de setembro de 2025

Ganchos e Recompensas

Há inúmeros modelos que ensinam a contar histórias melhores, e muitos trazem ideias importantes. Mas, no fim, todo filme — aliás, todo entretenimento temporal — depende de dois elementos fundamentais para funcionar: ganchos e recompensas. O gancho é o estímulo que prende a atenção do espectador e o faz querer aguardar para saber o que vai acontecer – é a promessa de alguma emoção prazerosa no horizonte. A recompensa é essa emoção prazerosa: a satisfação da expectativa criada pelo gancho.

Normalmente, todo filme terá 1 gancho principal, que será estabelecido dentro dos 10 minutos iniciais (ou pelo menos sugerido) e durará até o clímax — é aquela ideia básica que muitas vezes você já sabe sobre o filme só de ler a sinopse.

Em O Iluminado, por exemplo, aos 8 minutos Mr. Ullman conta a Jack sobre a tragédia que ocorreu no hotel Overlook, criando a expectativa de que algo terrível irá acontecer à família Torrance ao se mudar para lá. Esse gancho sustentará nosso interesse o filme todo.

O gancho principal não pode ser plenamente satisfeito antes do clímax final, se não, o espectador perderá o interesse na história. Mas ele pode ter inúmeros reforços e semi-recompensas ao longo da narrativa antes de ser plenamente satisfeito — o gancho deve respeitar o Princípio da Ascensão e sempre estar prometendo algo melhor no futuro.

Além desse gancho-mestre, um longa-metragem precisa de ganchos menores dentro do gancho principal. Em Ghost: Do Outro Lado da Vida, por exemplo, o gancho principal é a morte de Sam e sua decisão de permanecer ao lado de Molly — Sam continua “vivo” na forma de espírito, mas Molly não faz ideia (e nós queremos que ela descubra). Uma vez estabelecido esse gancho, temos outros dentro dele: a descoberta da traição de Carl, amigo do casal que foi quem orquestrou o assalto a Sam, ou a jornada de Oda Mae Brown de charlatã para médium legítima, etc.

O esqueleto de um bom filme, portanto, é feito de ganchos-mestres de longo prazo e ganchos de médio/curto prazo, cada um podendo ter diversas recompensas. Toda cena, quando bem construída, inicia estabelecendo um pequeno gancho e não termina antes de entregar alguma recompensa — que pode ir desde um avanço significativo da trama até recompensas mais simples ou estéticas, como uma imagem emblemática, uma ideia criativa ou uma frase de impacto: algo que retribua ao espectador a atenção investida.

Novelas e séries de TV costumam se sustentar em ganchos fortes de longo prazo. Com frequência, há um mistério central ou uma grande mentira cuja revelação será adiada por semanas ou meses. Se o gancho for envolvente o bastante, o espectador permanecerá interessado mesmo quando a narrativa estiver inchada, cheia de núcleos menos interessantes que não avançam a trama.

Nas formas mais elevadas de entretenimento, no entanto, evita-se tudo que é supérfluo: cada cena está ou criando/reforçando um gancho, ou no processo de entregar uma recompensa. Cenas não relacionadas a ganchos — meramente expositivas, focadas em caracterização ou que existem apenas para transmitir mensagens, exibir o estilo do diretor, etc. — são evitadas. Essas coisas, quando necessárias, devem ser incorporadas em cenas que estejam sob o efeito atrativo de algum gancho.

Em O Exterminador do Futuro, por exemplo, muita exposição é necessária para explicar ao espectador o que está acontecendo. Mas esses diálogos expositivos não ocorrem em cenas estáticas: acontecem no meio de algum tipo de suspense. Por exemplo, enquanto Kyle e Sarah estão dentro do carro no estacionamento, recarregando a arma e tentando se esconder do Exterminador.

A única hora em que o espectador geralmente dá um “desconto” para a história e presta atenção mesmo na ausência de um gancho é na introdução — nos primeiros minutos, pois aceita-se que é necessário primeiro estabelecer o universo do filme antes de um gancho ser posicionado. Depois disso, apenas ganchos ativos manterão o espectador atento à tela. Então, como diria Billy Wilder, “agarre-os pela garganta e nunca mais solte”.

É possível prender a atenção do espectador mesmo sem um gancho narrativo high concept, como o de O Exterminador do Futuro. Em Casablanca, por exemplo, o gancho é simplesmente a reaparição de Ilsa na vida de Rick Blaine. O gancho pode ser qualquer acontecimento que prometa emoções intensas e prazerosas no futuro. Ele levanta certos tipos de perguntas na mente do espectador: e agora, o que irá acontecer? Como irá acontecer? Quando? Como os personagens principais irão reagir? Quais serão as consequências para eles?

No Idealismo, os ganchos estarão sempre prometendo emoções ligadas aos 4 Pilares do Idealismo: Objetividade, Benevolência, Autoestima e Excitação. (Confira o texto Os 4 Pilares do Idealismo e consulte o Mapa de Valores). Mas o tipo de evento concreto que pode servir como gancho é tão infinito e diverso quanto os interesses humanos — e o desafio do bom artista é elaborar ganchos criativos que prendam o público ao mesmo tempo que refletem sua visão pessoal.

Ganchos de Conteúdo vs. Ganchos de Forma

Alguns ganchos estão ligados aos objetivos dos personagens, aos riscos que eles correm e às experiências que irão viver. Outros estão ligados às expectativas do espectador em relação ao filme em si — às decisões criativas da obra. Comédias, musicais ou filmes de terror, por exemplo, costumam prender a atenção não apenas pelos desejos do protagonista na história, mas também por expectativas formais: de que uma piada hilária será contada, de que haverá uma grande canção ou uma cena incrivelmente assustadora, etc. Os ganchos de conteúdo, no entanto, são mais objetivos e mais fundamentais que os de forma. Ainda que o que mais te interesse em um filme seja a performance de um ator, a direção, os efeitos visuais, é preciso haver um gancho minimamente atraente no nível da trama para dar senso de movimento e coerência à narrativa — o personagem precisa ter algum objetivo, um conflito a resolver, etc.

É importante lembrar que o fato de o personagem ter um objetivo na história não torna esse objetivo automaticamente um gancho. Costumo chamar de "filmes de serviço" aquelas tramas em que apenas acompanhamos o personagem exercendo seu trabalho — um detetive ou jornalista investigando um crime, por exemplo. Esses filmes partem da ideia de que o simples fato de o protagonista receber uma tarefa desafiadora em seu emprego já tornará a trama envolvente. Mas se aquilo faz parte do trabalho dele, algo que ele realiza por dever, a tarefa ainda não é interessante. Ela passa a ser quando é estabelecida como altamente incomum, envolvendo riscos significativos para o protagonista que afetem sua vida pessoal — sua segurança, reputação, futuro, etc.

Ganchos Internos vs. Ganchos Externos

Ganchos internos são aqueles que acontecem dentro do próprio filme e não dependem de informações externas para funcionar, apenas de um conhecimento geral sobre o mundo. Ganchos internos criam filmes sólidos e atemporais. Ganchos externos criam publicidade e atração momentânea, mas são frágeis e pouco artísticos. Por exemplo: a maioria das pessoas que assistiu a Homem-Aranha: Sem Volta para Casa ficou vidrada aguardando ansiosamente a reunião dos três atores que interpretaram o herói na era moderna: Tobey Maguire, Andrew Garfield e Tom Holland. Este é um típico gancho externo, que depende de informações trazidas de fora da sala de cinema ("você precisa ver este filme, atriz X aparece com os peitos de fora" / "há uma cena pós-créditos incrível!"). Eles podem tornar um filme excitante quando visto pela primeira vez no lançamento, mas logo ficam datados e perdem o efeito.

Agora considere a premissa de Capricórnio Um (1977): no futuro próximo, por problemas de financiamento, a NASA decide forjar em um estúdio de TV a 1ª viagem tripulada a Marte e enganar a população. Porém, o foguete sem tripulantes enviado ao espaço para sustentar a ilusão explode acidentalmente na hora da reentrada. Assim, os três astronautas escondidos — que nunca saíram da Terra — se tornam a única prova de que a missão foi forjada, e precisam ser eliminados pelo governo. Com um gancho desses, você quer acompanhar a história e saber o que vai acontecer mesmo sem qualquer informação externa sobre o filme.

Ganchos Universais vs. Ganchos de Nicho

Alguns ganchos funcionam de forma mais universal que outros. Quando o gancho envolve riscos à vida, à felicidade, à família ou ao futuro de um personagem, ele tende a funcionar para a maioria das pessoas, pois tratam de valores amplos com os quais todos podem se relacionar. Alguns filmes, no entanto, conquistam o público através de ganchos que funcionam apenas para um segmento da população: apelam para ideologias, certas preferências sexuais ou para tópicos intelectuais restritos. Esses não deixam de ser ganchos, mas são como anzóis especializados que só pescam um tipo de peixe. No Idealismo, a universalidade é vista como um valor, portanto ganchos excessivamente específicos devem ser evitados.

A Qualidade do Gancho

A originalidade, intensidade e a plausibilidade do gancho também importam. A premissa de Capricórnio Um é envolvente porque é criativa, apresentada com detalhes realistas. Todos já ouvimos conspirações sobre a ida do homem à Lua, o que dá certa credibilidade à situação. Se você parar para pensar, o filme é apenas sobre homens tentando assassinar outros homens. Mas a motivação original e plausível por trás dessa perseguição torna o gancho hipnotizante.

Em Jurassic Park, a ação não seria muito diferente se os paleontólogos fossem a uma ilha misteriosa e encontrassem dinossauros que simplesmente sobreviveram ao meteoro e ainda vivem lá desde a era Mesozoica. Mas isso não seria muito criativo, nem plausível. Portanto, o gancho e as recompensas seriam mais fracos.

Filmes de super-heróis modernos se tornaram cansativos em parte porque o gancho muitas vezes se resume a mais um vilão querendo destruir o mundo com magias aleatórias. As consequências são gigantes (os stakes são altos, em teoria), mas o gancho é de má qualidade. Não é original, nem plausível, nem surpreendente para os heróis ou para a população, que já passaram inúmeras vezes por ameaças similares, já estão familiarizados com super-poderes, etc. Portanto, não há suspense.

Set Pieces

As cenas mais memoráveis do cinema costumam reservar seus Set Pieces para o estabelecimento do gancho principal ou para a entrega das principais recompensas. (Leia mais sobre Set Pieces no texto: Set Pieces e Grandes Cenas).

Recompensas e Reações — Pessoas se interessam por pessoas

Boas recompensas frequentemente estão ligadas a reações de personagens. O que prende o espectador à história muitas vezes não é o “fato extraordinário” em si apresentado pelo filme, mas a expectativa pelas reações dos personagens a esse fato. Ganchos irresistíveis costumam dizer subconscientemente ao espectador: “algo extraordinário ocorreu — ou vai ocorrer — e os personagens não fazem ideia”. Quanto menos os personagens esperarem o acontecimento, e quanto mais intenso e dramático for o impacto prometido sobre eles, mais seremos fisgados pela história. Os melhores filmes exploram ao máximo as reações dos personagens: fazem a plateia esperar por elas e, depois, as tornam dramáticas e memoráveis. A reação certa multiplica a dimensão do evento e pode fazer até algo cotidiano parecer “maior que a vida”. Uma reação fraca ou inadequada pode fazer até o apocalipse parecer trivial. Em comédias, as reações fazem ou destroem a piada. Claro que é preciso haver plausibilidade na reação: em A Noite dos Coelhos (1972), por exemplo, por mais que os personagens gritem, eles não conseguem tornar coelhos gigantes verdadeiramente apavorantes para o público.

Uma das coisas que tornam Spielberg eficaz é sua maestria ao lidar com reações — uma de suas assinaturas é a câmera se aproximando lentamente do rosto de um personagem, reagindo a algo fora de quadro. Ele não só elabora situações extraordinárias, como cria reações à altura para potencializar o evento. Pense em Alan Grant virando a cabeça de Ellie para que ela veja o braquiossauro; ou na mãe de Elliott derramando o café ao ver E.T. pela primeira vez. Um dos motivos pelos quais é difícil repetir o impacto de Jurassic Park nas sequências é que, após o primeiro filme, ninguém naquele universo ignora mais a existência dos dinossauros; não há como reproduzir as reações do primeiro filme, pois não existe mais o personagem 100% ignorante, que é um elemento importante para tornar o gancho poderoso. Com ganchos mais fracos, as recompensas também são mais fracas.

Uma das técnicas mais poderosas de Spielberg é a reação estilizada — retratar o impacto do evento não por reações óbvias, realistas e previsíveis, mas, por exemplo, fazendo o personagem ficar mudo e imóvel, revelando a intensidade da emoção por meio de um detalhe (uma lágrima, um tremor no corpo, um objeto que cai, etc.). Esse understatement muitas vezes é mais potente que o exagero. Reações opostas às esperadas também podem comunicar intensidade — alguém com o rosto choroso num momento de extrema alegria, ou com ar de fascínio num momento de profundo terror. Isso passa a ideia de um evento tão incomum, tão extremo, que o personagem não tem emoções padronizadas para lidar com ele.

Informando o Público

Uma técnica que costuma fortalecer o gancho e nos fazer aguardar ansiosos pela recompensa é informar o espectador sobre o que irá acontecer, sem informar os personagens. Um erro comum de roteiristas iniciantes é esconder demais o jogo do espectador e tentar surpreendê-lo ao mesmo tempo que os personagens. Mas o público precisa ter pelo menos uma ideia do que irá acontecer para que o gancho se estabeleça.

Alfred Hitchcock dizia que suspense é preferível à surpresa:

“Existe uma diferença distinta entre ‘suspense’ e ‘surpresa’, e ainda assim muitos filmes continuam a confundir os dois. Vou explicar o que quero dizer.

Estamos agora tendo uma conversa muito inocente. Suponhamos que haja uma bomba debaixo desta mesa entre nós. Nada acontece e, de repente: ‘Boom!’ Há uma explosão. O público fica surpreso, mas antes dessa surpresa, viu apenas uma cena absolutamente comum, sem importância especial. Agora, vejamos uma situação de suspense. A bomba está debaixo da mesa e o público sabe disso, provavelmente porque viu o anarquista colocá-la lá. O público está ciente de que a bomba vai explodir à uma hora, e há um relógio na cena. O público pode ver que são quinze para a uma. Nessas condições, a mesma conversa inocente torna-se fascinante porque o público participa da cena. A plateia tem vontade de avisar os personagens na tela: ‘Vocês não deveriam estar falando de coisas tão triviais. Há uma bomba debaixo de vocês e ela está prestes a explodir!’

No primeiro caso, demos ao público quinze segundos de surpresa no momento da explosão. No segundo, proporcionamos quinze minutos de suspense. A conclusão é que, sempre que possível, o público deve ser informado. Exceto quando a surpresa é uma reviravolta, isto é, quando o desfecho inesperado é, em si mesmo, o ponto alto da história.” - Alfred Hitchcock

Assim como a cena da bomba se torna mais envolvente quando o espectador já sabe de sua presença, o filme como um todo também se torna mais envolvente quando o público tem uma noção do que vai acontecer. Em vários dos melhores filmes temos uma ideia muito clara do destino para o qual estamos caminhando, e mesmo assim não perdemos o interesse — em parte porque ainda não vimos exatamente como aquilo vai acontecer; em parte porque os personagems não sabem o que virá, e o espectador quer ver suas reações. É quase como se tivéssemos um fetiche voyeurístico de observar o rosto de uma pessoa no momento em que ela está entrando em contato com um fato novo e extraordinário.

Em Titanic, o gancho principal é que sabemos desde o início que o navio irá afundar. Há até uma animação 3D mostrando exatamente como será o naufrágio, e ainda assim o espectador aguarda ansioso a chegada do iceberg — pois ninguém a bordo tem ideia do que irá acontecer, e porque queremos testemunhar o espetáculo visual. O desastre fica particularmente envolvente porque as pessoas acreditavam que “nem Deus poderia afundar aquele navio”. E o que dá dimensão épica ao clímax não são apenas os efeitos visuais, a produção grandiosa, mas as reações de todos os personagens ao que está ocorrendo.

Em O Iluminado, Wendy é a personagem mais crucial do filme porque ela é quem não sabe absolutamente nada sobre o que vai ocorrer. No início do filme, pense na quantidade de fatos extraordinários que ela ignora e que nós já sabemos ou suspeitamos: ela não sabe que seu filho possui poderes extra-sensoriais (já vimos Danny conversando com "Tony" no banheiro), ela não desconfia que o marido seja um assassino em potencial (já vimos algumas pistas de seu desequilíbrio mental) e nem suspeita que o hotel para o qual está indo seja assombrado (ela sequer sabe que fantasmas existem!). Se ela já suspeitasse dessas coisas desde o início, não haveria tanto interesse no filme.

Por isso costuma ser crucial reforçar, ao longo da narrativa, a ignorância dos personagens acerca do “fato extraordinário” — inserir detalhes que deixem claro para a plateia que eles estão totalmente por fora: o equivalente à cena clichê em que o cachorro está latindo desesperadamente e o personagem descarta qualquer perigo: “deve ser apenas um gato”. Se O Iluminado é um dos filmes de terror mais gratificantes do cinema, muito se deve às expressões inesquecíveis de Shelley Duvall reagindo aos “fatos extraordinários” que ela descobre.

Esses fatos extraordinários não precisam se limitar a fantasmas, dinossauros ou eventos históricos. Em Cidadão Kane, o caráter corrupto do protagonista é o “desastre” que se revela aos poucos, surpreendendo os demais personagens e, no fim, surpreendendo o próprio Kane quando ele se dá conta de quem é. O caráter nobre de alguém também pode funcionar como gancho — por exemplo, o talento oculto de um personagem. Em Laços de Ternura, a maternidade e os dramas da maturidade são o evento extraordinário que vira a vida da protagonista de cabeça para baixo. Se Aurora fosse uma mulher com diversos filhos, já acostumada com essas dificuldades da vida, não haveria gancho. Mas ela é apresentada como uma mulher extremamente rígida, vaidosa, controladora — para uma mulher assim, você sabe que a maternidade será um cataclisma.

Ganchos grandiosos, com consequências amplas, tendem a ser mais envolventes, mas é perfeitamente possível prender o público com ganchos mais simples e locais — desde que você convença que o evento tem o poder de transformar dramaticamente a vida dos personagens centrais.

Filmes sem Ganchos e Recompensas

O cinema não-narrativo, como o Naturalismo e o Experimentalismo, é caracterizado pela ausência de ganchos narrativos — em especial pela ausência de ganchos internos. Esses filmes esperam que fatores externos à história funcionem como "ganchos": a simpatia pela figura do autor, a causa que o filme defende, o status social associado a tê-lo assistido, etc.

Já no cinema narrativo e no verdadeiro entretenimento, ganchos e recompensas são indispensáveis. Há filmes que nos prendem por motivos sutis e parecem não ter ganchos, mas, se a experiência é gratificante, provavelmente é porque, em algum nível, o filme cria uma boa dinâmica de ganchos e recompensas — gerando expectativas no início e satisfazendo essas expectativas de maneira eficaz mais adiante. Para identificar qual é o gancho, basta pensar nas cenas mais emocionantes ou satisfatórias do filme: elas te darão uma pista sobre o gancho agindo sobre o enredo.

O que irá diferenciar um grande filme de um entretenimento inferior, nesse sentido, é a qualidade dos ganchos e das recompensas: se ele é dominado por ganchos internos, fortes, criativos, plausíveis, universais, bem posicionados na linha do tempo, e se as recompensas são abundantes e estão à altura das expectativas criadas. M. Night Shyamalan, por exemplo, é um cineasta ótimo para elaborar ganchos, mas que frequentemente falha nas recompensas.

Ao pensar na sua história, esqueça por um momento as velhas fórmulas de roteiro e reflita em termos de ganchos e recompensas. Qual é o seu gancho-mestre — aquele conceito mais amplo que sustentará o interesse da plateia ao longo de todo o filme? Quais são as recompensas associadas a esse gancho? Quais as reações mais aguardadas da história? Em que pontos da narrativa elas ocorrem? Como elas podem se alinhar a Set-Pieces emblemáticos? E quais são as subtramas, os ganchos menores que você pode estabelecer no decorrer da trama? Que recompensas cada um deles terá? Cada cena da sua história está criando/reforçando um gancho, ou no processo de entregar uma recompensa?

Os esquemas tradicionais podem oferecer ferramentas úteis para a construção de boas histórias. Mas se você dominar a lógica dos ganchos e recompensas, você poderá usar essas fórmulas com mais consciência — e até quebrá-las sem perder o espectador.

Índice: Artigos e Postagens Teóricas

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

A Hora do Mal

O filme tem o gancho mais forte do ano ("Ontem à noite, às 2h17 da madrugada, todas as crianças da sala da Sra. Gandy acordaram, levantaram da cama, desceram as escadas, abriram a porta da frente, saíram no escuro... e nunca mais voltaram.") — mas joga tudo no lixo logo na primeira cena. Em vez de dramatizar o evento — de mostrar o sumiço das crianças em tempo presente, no momento em que estava acontecendo, explorando todo o mistério e o terror da situação — o filme resume tudo em um flashback, narrado por uma garotinha em tom casual, como quem está contando uma fofoca para as amigas no recreio. Isso destrói todo o peso da frase que atraiu os espectadores ao cinema, e o filme nos joga na história semanas depois dos desaparecimentos, quando a cidade já quase voltou à rotina.

Isso não é amadorismo dos autores. O filme tem uma direção firme e sabe exatamente o que está fazendo. Infelizmente, o que ele quer fazer é um terror “artístico”, desconstruído, desses que querem ser notados na temporada de prêmios. Durante a primeira hora, a busca pelas crianças fica em segundo plano, e o filme vai focar no impacto do evento na comunidade: a frustração dos pais, o drama da professora injustamente acusada pelos moradores, e a vida pessoal de alguns dos envolvidos (sempre personagens comuns, falhos, anti-heroicos). A narrativa adota um estilo não linear à la Rashomon, mostrando os mesmos acontecimentos sob pontos de vista diferentes, levantando reflexões sobre a verdade, sobre a subjetividade humana — uma discussão interessante talvez para uma aula de sociologia, mas que não torna a sessão mais empolgante.

Tolerei tudo isso porque achei que o filme estava caminhando pra um final memorável. Mas se o começo foi desperdiçado daquela forma, seria otimismo demais esperar que o clímax fosse tratado com mais respeito. SPOILER: Pra começar, muito do mistério se dissipa quando a personagem de Gladys é revelada, e já fica explícito que tudo foi fruto de bruxaria — uma explicação pouco satisfatória, até porque Gladys não se conecta direito com o resto do filme: não revela nada sobre o passado da cidade, a vida pessoal das vítimas ou mesmo a família de Alex. Ela é apenas uma vilã aleatória que resolveu passar pela cidade e causar confusão. Nas histórias de terror mais satisfatórias, o “monstro” sempre reflete alguma questão interna das vítimas ou expõe conflitos que já precisavam ser resolvidos, dando ao duelo um significado maior.

SPOILER: O resgate das crianças no final também é incrivelmente frustrante. Primeiro porque humor começa a ser usado para destruir a seriedade da situação (através do personagem do viciado, ou de escolhas de direção, como o toque de mostrar o homem cortando a grama enquanto observa a cena absurda das crianças perseguindo Gladys). Mas também pelo que o filme decide não mostrar: Archer é o único personagem que vemos reencontrar o filho. Não há a cena da comunidade recuperando as crianças — o filme sequer mostra Justine, a protagonista, descobrindo que as crianças foram achadas! Pior: as crianças não são totalmente salvas, pois a narração final nos informa que elas continuam catatônicas, sob efeito da bruxaria. Teria sido muito simples dar à história um final feliz, resoluto, mas o filme prefere agradar os que acham mais sofisticado o incerto, conflitante e desconfortável.

Weapons / 2025 / Zach Cregger