(Capítulo 20 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
Se, por um lado, o Idealismo pode ser corrompido por causa de conflitos internos dentro dos artistas (como vimos no capítulo anterior), isso pode acontecer também de forma mais consciente e intencional. Não só no caso de Anti-Idealistas convictos, artistas que produzem obras abertamente hostis aos valores do Idealismo e não têm problema algum em admitir isso (o que é mais respeitável), como também por uma estratégia menos honesta: Anti-Idealistas que se infiltram em instituições associadas ao Idealismo com o intuito de modificá-las e destruí-las por dentro, numa espécie de Cavalo de Troia ideológico.
Os exemplos que vou usar aqui podem soar parecidos com o Idealismo Corrompido, mas eles são ataques que vêm de outra direção, e com uma outra intenção — e se quisermos proteger o Idealismo de seus críticos, é preciso entender a diferença entre cada uma dessas mentalidades.
Anti-Idealistas desse tipo muitas vezes não se contentam apenas em promover seus ideais dentro de suas esferas, em seus próprios filmes e produções originais — eles precisam atacar o Idealismo na cultura toda e impedir que ele tenha influência sobre as pessoas. Não basta eles criarem seus próprios anti-heróis em seus próprios filmes. Eles precisam pegar heróis já estabelecidos e celebrados como Superman, Luke Skywalker ou James Bond, e daí fazê-los agir de forma anti-heroica. Não basta eles expressarem suas visões pessimistas de mundo em suas próprias histórias — eles precisam se infiltrar na Disney, por exemplo, e fazer filmes da Disney passarem a mensagem de que agora os sonhos não se tornam mais realidade. Ou então se infiltrar em gêneros populares como musicais, faroestes ou ficção-científica, e fazerem uma “releitura” desses gêneros. Ou fazer biografias de grandes figuras do passado, celebridades ligadas ao Idealismo, não para celebrar suas virtudes, mas para expor seus podres, manchar suas reputações. Não basta eles criarem suas próprias premiações, que irão prestigiar filmes Naturalistas ou de cunho político — eles querem que o Oscar passe a premiar filmes desse tipo, em vez dos que costumava premiar.
Eles precisam se infiltrar em tudo o que representa o Idealismo: obras, marcas, personagens, franquias — tudo aquilo que criou as referências Idealistas da sociedade atual — para daí subvertê-las, modificá-las, inserindo valores Anti-Idealistas e fazendo o público acreditar que os tempos mudaram, que o que funcionava no passado não funciona mais hoje, que há algo intrinsecamente errado e imoral a respeito do Idealismo, que é hora das pessoas abandonarem seus sonhos e ideais “ultrapassados” (ignorando, por exemplo, que a cultura está sempre oscilando e não existe uma única direção para qual ela inevitavelmente caminha — nos anos 60/70 tivemos uma era predominantemente Anti-Idealista, e isso não impediu que nos anos 80 a cultura se voltasse para outra direção).
É claro que a cultura evolui, e que alguns valores do passado devem sim ser repensados e rejeitados, mas estes nada têm a ver com os valores essenciais do Idealismo. Pode parecer que os Anti-Idealistas rejeitam apenas os valores ultrapassados, mas, na realidade, são os valores essenciais que eles rejeitam.
Anti-Idealistas estão sempre brigando por diversidade no entretenimento, querendo modificar arquétipos como os das Princesas Disney, ou o do James Bond. O que muitos não enxergam é que o que eles rejeitam em figuras como James Bond não é o fato dos personagens não representarem minorias, mas o fato deles incorporarem valores Idealistas. Já tivemos diversos casos onde barreiras desse tipo foram quebradas, mas isso ainda não pareceu ser o bastante. Whitney Houston, por exemplo, foi uma das maiores estrelas da história da música, mas o fato dela ser negra não deu fim às queixas dos Anti-Idealistas. Whitney era muito bonita, muito virtuosa, muito otimista, muito americana — e por isso, os incômodos associados ao Idealismo não sumiram, levando muitos a criticá-la. O que esse público deseja no fundo é eliminar o Idealismo, e em muitos casos a bandeira da diversidade serve apenas como uma camuflagem para a causa parecer mais nobre. Como o espectador honesto não é preconceituoso, não quer se sentir imoral, ele é levado a concordar com essas exigências, sem perceber que ele está comprando um pacote com duas coisas distintas, uma boa e a outra nociva, como se fossem parte de uma coisa só.
Os valores mais atacados pelos Anti-Idealistas são os relacionados a Autoestima e Benevolência, que são os dois pilares com mais carga emocional e moral. Eles frequentemente irão expressar antipatia por ideias como: orgulho, ambição, heroísmo, força, sucesso, riqueza, fama, beleza, habilidade. Ou então: otimismo, felicidade, inocência, pureza de caráter, julgamentos morais, certo vs. errado, bem vs. mal.
É importante notar que muitas dessas coisas, quando interpretadas de maneira errada, podem de fato ser ruins. Por exemplo: enquanto autoestima é um conceito positivo e saudável, o narcisismo ou a arrogância já não são (e não são “excesso” de autoestima, mas, sim, a falta dela). Enquanto o otimismo é algo positivo, uma pessoa superficial e tola não é (e não permanecerá otimista por muito tempo quando as consequências de sua tolice vierem cobrar o preço). Enquanto riqueza é algo bom, ficar rico roubando, sendo corrupto e desonesto não é (e nem fará a pessoa ter uma real qualidade de vida) — e por aí vai.
Então se você quer criticar a arrogância, por exemplo, é importante deixar claro que o que você está atacando não é o conceito de autoestima, e sim o “mau uso” dela (uma boa forma de fazer isso é incluindo na sua história um exemplo positivo de autoestima, contrastando com o exemplo ruim). Quando a pessoa não faz isso, quando ela não deixa claro o que ela está atacando e o que ela está defendendo, deixando a crítica vaga e sem definições, provavelmente é porque ela deseja atacar o valor positivo em si, e está motivada por ressentimento, preconceito e outros sentimentos destrutivos.
Os Anti-Idealistas raramente fazem ataques a essas ideias de maneira direta, pois ficaria óbvio que suas intenções não são tão boas. O jeito então é esconder o ataque por trás de algo mais aceitável: vamos supor que você tenha um certo desprezo por pessoas bem-sucedidas. Se você disser por aí “eu odeio o sucesso”, provavelmente você não será muito respeitado. Mas se você disser “eu odeio a ganância” e caracterizar todas as pessoas de sucesso como corruptas, imorais, de forma generalizada, juntando as duas ideias num mesmo saco, você parecerá moralmente respeitável, e ainda conseguirá causar o dano no seu verdadeiro alvo: as pessoas de sucesso.
Essa é a essência do Anti-Idealismo, e se o entretenimento quiser sobreviver, é esse tipo de mentalidade e suas estratégias sorrateiras que precisam ser compreendidas e combatidas.
A dificuldade é que hoje em dia as pessoas estão tão habituadas ao Anti-Idealismo que elas o enxergam apenas como o senso comum, como a mentalidade padrão dos filmes, séries de TV e músicas, e não como a coisa destrutiva que estou sugerindo (especialmente as gerações mais jovens que já cresceram com essas referências).
Se um filme como Star Wars: Os Últimos Jedi (2017) tivesse sido lançado há 40 anos, por exemplo, as pessoas ficariam completamente indignadas. Mas hoje, após anos e anos de erosão do Idealismo, o público acha perfeitamente aceitável que, na primeira sequência do filme, ao receber o sabre de luz das mãos de Rey, Luke Skywalker o jogue para trás como se fosse uma casca de banana. Em O Retorno de Jedi (1983), há um momento em que Luke também joga fora o sabre. Mas vejam a diferença na intenção: ali, Luke estava sendo manipulado pelo vilão para lutar contra seu pai (Darth Vader), se render ao ódio, o que o faria passar para o lado negro da Força. Então, quando ele arremessa o sabre, isso significa uma resistência contra o lado negro — um ato que reforça seu heroísmo e sua benevolência. Já em Os Últimos Jedi, ele simplesmente joga fora o sabre como um pedaço de lixo, demonstrando desprezo pelo objeto em si. O sabre de luz é um enorme símbolo da franquia, algo que nos remete à nobreza dos Jedi, à habilidade, e à virtude. Quando Luke o arremessa daquela forma, a mensagem do filme fica clara: heróis são coisa do passado, agora nada mais pode ser nobre e heroico — nem o sabre, nem os Jedi, e nem Star Wars. E o resto do filme irá apenas reforçar isso.
Fico pensando também no quão incompatível seria uma personagem como a Elsa de Frozen: Uma Aventura Congelante (2013) com a Disney do passado (a Disney da era clássica ou do Renascimento do final dos anos 80). Elsa não foi a primeira Princesa Disney a ter uma vida difícil, cheia de sofrimento. Cinderela era abusada, humilhada, feita de empregada pela própria família. Mas Cinderela, apesar de tudo, mantinha sua pureza de caráter, sua esperança, sua atitude benevolente. Elsa é um reflexo dos anos 2010, pois, ao contrário de Cinderela, ela tem seu espírito quebrado. Ela se torna rancorosa, agressiva, sombria, passa a criar conflitos desnecessários com os outros, é mostrada como vítima — e o filme quer que a gente simpatize com ela justamente por suas falhas e perturbações. Embora seja vista como uma princesa empoderada por alguns, Elsa, na verdade, é muito mais frágil e indefesa que Cinderela nesse sentido. Ela vem para desconstruir o conceito de Princesa Disney, e mostrar o lado não tão positivo do ser humano e da vida. Elsa não apresenta apenas desvantagens e vulnerabilidades —, mas é uma personagem com certos problemas de caráter. Ela é parte boa, e parte má. Tem atitudes em relação à irmã Anna que são totalmente desnecessárias, agressivas, motivadas por ressentimento e crueldade: por exemplo, quando impede Anna de se casar sem nem ter motivos ainda para suspeitar de seu noivo. “Como assim ela quer se casar com alguém que conheceu há poucos dias? Não existe tal coisa como amor à primeira vista! A vida não é tão simples!”. De fato, Elsa foi escrita originalmente para ser a vilã do filme, mas no meio do processo resolveram torná-la a protagonista — fizeram algumas alterações no roteiro, tornaram ela “do bem”, mas sem apagar completamente os traços da vilã que ela deveria ter sido.
Se Frozen, com suas canções divertidas e cenários atraentes, ainda pode parecer como um caso mais perdoável de Idealismo Corrompido, o mesmo já fica difícil de ser dito de um filme como Viva: A Vida é uma Festa (2017). Na animação, Miguel é um garoto mexicano pobre, simples, mas com um grande sonho: se tornar um músico de sucesso como seu ídolo Ernesto de La Cruz. Sua família é contra a ideia dele ser músico, e a princípio nós, na plateia, achamos que isso será apenas um artifício de roteiro para criar conflito e gerar um final emocionante, quando Miguel finalmente se tornar um sucesso e provar que estavam todos enganados sobre ele. Não é bem isso que acontece. Ao longo da trama, Miguel irá descobrir que seu ídolo Ernesto na verdade é um grande monstro, que para conquistar seu sucesso ele foi cruel com sua família, roubou e até matou. O pequeno Miguel, no fim, então aprende que ambição é algo perigoso, que pessoas bem-sucedidas tendem a ser más, desumanas, e que abrir mão de seus sonhos pra viver uma vida humilde e simples é um ato belo e admirável. Se você perguntar a uma criança se ela preferiria ver um filme sobre pessoas vivas, atraentes, habilidosas, num lugar rico, exuberante, buscando e atingindo seus sonhos — ou um filme sobre pessoas mortas, comuns, sem grandes habilidades, num vilarejo humilde, aprendendo a abrir mão de seus sonhos, o que você acha que ela escolheria? A Disney de hoje parece achar que seria a segunda opção, mas é difícil de imaginar uma história que subverta de maneira mais completa todos os valores originais de Walt Disney.
Quando adolescente eu esperava o ano todo para assistir a cerimônia do Oscar, e por mais longas que fossem as festas, eu ainda gravava tudo em VHS para poder assisti-las de novo diversas vezes ao longo do ano. A mais grandiosa e memorável de todas pra mim tinha sido a festa de 1998 quando Titanic venceu 11 prêmios, que, por sinal, foi a cerimônia com a maior audiência da história. Naquele ano, comprei um pôster comemorativo da Academia que tinha minicartazes de todos os vencedores do Oscar desde sua origem. Meu plano era atualizar esse pôster a cada década para mantê-lo em dia — mas, 10 anos depois, o Oscar já não era o mesmo. Vencedores como Onde os Fracos Não Têm Vez (2007) ou Quem Quer Ser Um Milionário? (2008) davam um ar totalmente diferente à premiação. 10 anos depois, o Oscar estava ainda mais distante de seu espírito original, e no fim, o pôster do Oscar na minha parede continua sendo o mesmo: começando em Asas (1927) e terminando em Titanic (1997). Enquanto os festivais europeus sempre celebraram o cinema Anti-Idealista, o Oscar (em sua intenção original) era predominantemente voltado para o Idealismo. Mas isso foi mudando ao longo dos anos 2000 e 2010, e passamos a ver uma presença cada vez maior de Anti-Idealismo nos filmes indicados ao Oscar. Antigamente, você raramente veria o Oscar consagrando os mesmos filmes que os festivais de Veneza e Cannes — eram eventos completamente antagônicos. Mas pegue vencedores recentes desses festivais europeus: Coringa (2019), Parasita (2019), Roma (2018), A Forma da Água (2017) — todos foram grandes favoritos ao Oscar também e chegaram a vencer o prêmio de Melhor Filme. E não foi a Europa que se aproximou do gosto americano, mas o contrário.
É irônico que um cineasta estrangeiro como Guillermo del Toro, por exemplo, possa ir aos EUA, fazer um filme abertamente crítico à cultura americana como A Forma da Água, e ainda receber o prêmio máximo da Academia por isso. Se analisarmos superficialmente, a trama de A Forma da Água (2017) parece derivada de filmes como E.T.: O Extraterrestre (1982): um humano e uma criatura de outro mundo se encontram, formam uma grande relação de afeto, e a partir daí o humano precisa ajudar a criatura a escapar e a voltar para sua casa antes de ser capturada pelos humanos exploradores. O filme pega elementos de um gênero associado ao cinema americano, ao Idealismo, mas não com a intenção de proporcionar escapismo, diversão, fazer a gente acreditar na história, torcer pelo romance, sonhar —, e sim para subverter o gênero. Nada relativo à ação de fato importa em A Forma da Água. O enredo é apenas um veículo para o comentário político-social, que é o verdadeiro produto do filme. O que as pessoas gostam em A Forma da Água não é a fantasia em si, a aventura, mas as críticas ao Idealismo e aos símbolos da América.
Curiosamente, quando Guillermo del Toro subiu ao palco para receber o Oscar de Melhor Filme por A Forma da Água, ele poderia ter escolhido qualquer coisa para falar, poderia ter agradecido qualquer pessoa, mas o que ele fez, surpreendentemente, foi expressar toda sua admiração pelo cinema americano, dizer como ele foi inspirado, quando criança, no México, por filmes como E.T. de Spielberg, cineastas como William Wyler, Frank Capra — ou seja, pelo Idealismo. Parece contraditório, mas, na verdade, este é um padrão bastante comum — quase todo artista que age para destruir o Idealismo, originalmente, era um grande admirador do entretenimento americano.
Spielberg, com sua gentileza às vezes excessiva, disse a Del Toro antes da cerimônia que se ele ganhasse o Oscar, ele faria parte deste mesmo legado de cineastas e deveria se orgulhar. Del Toro parece ter ficado honrado com a “bênção”, mas ela foi baseada em um grande equívoco. O Oscar ganhou seu status e sua reputação ao longo da história por causa dos valores que ele representava. Por ser um símbolo de glamour, talento, por premiar filmes grandes, que inspiravam o público, que uniam sucesso comercial a sucesso de crítica — é a associação do Oscar a valores Idealistas e ao espírito americano que o tornou a estatueta mais cobiçada do mundo. Se desde o início o Oscar se parecesse com o festival de Cannes, ele jamais teria alcançado esse mesmo status na cultura. Então, ganhar um Oscar, hoje, quando seus critérios se tornaram totalmente opostos aos do passado, não tem o mesmo significado de ganhar o Oscar na época em que Wyler ou Spielberg ganharam.
2 comentários:
Ao ler como você descreve o Anti-idealismo e a forma como agem seus perpetradores, minha memória automaticamente os associa à cultura woke. A estratégia ESG adotada pelas empresas de entretenimento parece fortemente associada à essa cultura.
Exato. Inclusive seu comentário chegou no momento em que eu estava no meio de um texto novo sobre esse tópico, que acabei de postar. abs!
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