quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Cultura - Dezembro 2024

19/12 - Teaser de Superman

A 1ª imagem do Superman no filme que supostamente irá marcar um recomeço para a DC é o herói caído no chão e ensanguentado. Não é das entradas mais animadoras...





13/12 - Luigi Mangione

Há alguns meses, deixei o comentário ao lado no meu Instagram após assistir Coringa 2. O "sucesso" de Luigi Mangione (suspeito do assassinato do CEO da UnitedHealthcare) não é surpresa alguma para quem vem observando a reação do público aos inúmeros filmes lançados nos últimos anos com a mensagem "matem os ricos".










8/12 - Skeleton Crew (Episódios 1 e 2)

Boa parte dos problemas que apontei em The Acolyte foram evitados nesta nova série do universo Star Wars que, das produções recentes, é uma das que melhor reproduzem o clima dos filmes de Lucas/Spielberg dos anos 80. Ainda soa como uma imitação ou homenagem, em vez de algo com vida própria, mas pelo menos a série foge do Idealismo Corrompido estilo Stranger Things, onde a homenagem se limita aos elementos visuais/concretos da produção. O fato da série ser protagonizada por crianças talvez tenha ajudado na implementação desse tom mais benevolente, mas vale lembrar que os Star Wars originais, estrelados por adultos, também tinham essa atitude leve. Isso não significa que, esteticamente, já tenha havido uma grande evolução ou que o roteiro evite os vícios das séries de TV modernas. Mas acho que, no caso de Star Wars, essa mudança no Senso de Vida é mais urgente até do que as melhorias puramente técnicas. Tomara que não seja um caso isolado e que isso reflita uma mudança maior dentro da Disney.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Anora

Um retrato de jovens imperfeitos, perdidos na vida, tomando uma série de decisões tolas e sofrendo as consequências. O que torna Anora mais incômodo do que o típico filme Naturalista com esse tema é o tempero niilista do diretor, que parece se divertir corrompendo a bússola moral da plateia: fazendo ela rir enquanto observa atos revoltantes, humilhando um personagem que ele fez questão de tornar honrado primeiro, criando esperança sobre os rumos da trama que em breve serão frustrados… A arte de Sean Baker parece ser a de identificar possíveis valores em sua história e casualmente quebrá-los — sem muito sensacionalismo, pois transformar essa subversão em um espetáculo trairia seu gosto por ambivalências e paradoxos. Quanto a Mikey Madison: sua atuação é boa no sentido de convencer o público de que ela é alguém como a personagem. Mas, quando estamos falando de uma personagem tão rica em imperfeições quanto Anora, uma grande performance, na minha visão, seria aquela capaz de extrair dela alguma qualidade digna de ser contemplada, o que, infelizmente, não ocorre aqui.

Anora / 2024 / Sean Baker

Satisfação: 3

Categoria: Naturalismo / Anti-Idealismo

Filmes Parecidos: Projeto Flórida (2017) / Docinho da América (2016) / To Leslie (2022) / Joias Brutas (2019) / Red Rocket (2021)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Um Homem Diferente

Não é fácil encarar um rosto desfigurado como o do protagonista de Um Homem Diferente, e eu tinha uma certa preocupação de que este filme se tornasse apenas uma lição de moral sobre aqueles que sentissem qualquer desconforto visual ao longo da projeção. Mas o filme lida com a questão de maneira bastante razoável, inclusive explicando as origens genéticas e involuntárias dessa reação. Em vez de um teste moral, o foco do filme se torna a engenhosidade da própria trama, que busca aquele tipo de inversão irônica bem explorada no ano passado em Ficção Americana.

Nesse aspecto, o filme começa muito bem, mas não sabe exatamente o que fazer com a premissa a partir da metade. A sacada central do roteiro é que o personagem encontra a cura para sua doença, mas, em vez de vencer na vida, acaba sendo superado por outro personagem que tem a mesma condição que ele tinha.

Vejo dois caminhos interessantes para um filme com essa premissa. O primeiro seria uma crítica à sociedade — uma sátira no estilo de Ficção Americana, onde um personagem que deseja realizar algo virtuoso acaba ficando para trás em uma cultura que não valoriza mais o belo. O segundo seria uma história de ascensão e queda sobre um homem com uma falha de caráter que acredita que vencerá na vida por meio de mudanças externas, superficiais, mas acaba sendo derrotado por seus fantasmas internos.

O diretor e roteirista Aaron Schimberg, que também sofre de um tipo de desfiguração facial, talvez não tenha o distanciamento necessário do tema para optar pela primeira opção. Assim, a história vira uma discussão sobre a importância do caráter diante do material. O problema é que o roteiro falha em estabelecer um problema de caráter para o personagem. No início da história, Edward (brilhantemente interpretado por Sebastian Stan) não tem nenhuma "falha trágica" que ele equivocadamente tente superar através da mudança de aparência. Ele é um cara perfeitamente digno, cujo único problema parece ser sua condição rara de saúde. E é uma condição tão grave que nenhuma reviravolta irônica do roteiro consegue fazer o espectador acreditar que, assim como em A Substância (2024), teria sido melhor o protagonista não ter passado pelo procedimento e aceitado sua aparência original. O roteiro acaba forçando uma série de situações para conseguir dar o fim trágico desejado a Edward, mas perde a credibilidade.

É pouco convincente, por exemplo, que Edward forjaria a própria morte, assumiria uma nova identidade e, mesmo assim, se interessaria em estrelar a peça de teatro da ex-amiga sobre sua vida. A maneira como seu rival, Oswald, consegue levar uma vida leve, socialmente movimentada e cheia de oportunidades profissionais, apesar do rosto desfigurado, também parece forçada — seria convincente se esse exagero fosse um comentário sobre as inversões de valores da sociedade atual, mas o filme não tem essa proposta.

Há vários bons filmes em que um personagem se torna rico, mas descobre que dinheiro não é tudo, ou conquista a tão sonhada liberdade, mas acaba perdendo seu propósito de vida. Em Um Homem Diferente, não cola a ideia de que a cura de Edward não teria servido para nada, já que, no fim, caráter é o que importa.

Na cultura atual, aliás, é ainda mais desafiador acreditar que as pessoas enxergariam além da condição de Edward ou Oswald. É curioso, por exemplo, que vários filmes de 2024 sejam sobre pessoas mudando de vida por uma transformação radical na aparência — Um Homem Diferente, A Substância, Emilia Pérez, Feios. Ao mesmo tempo que essas histórias expressam um desejo de priorizar o caráter, elas também refletem uma cultura onde a aparência física se tornou uma enorme preocupação e, para o bem ou para o mal, um fator cada vez mais determinante na vida social e econômica das pessoas.

A Different Man / 2024 / Aaron Schimberg

Satisfação: 6

Categoria: Idealismo Crítico

Filmes Parecidos: Ficção Americana (2023) / O Homem dos Sonhos (2023) / A Substância (2024) / Desculpe te Incomodar (2018)

domingo, 8 de dezembro de 2024

O Fator G do filme

Na psicologia cognitiva, o Fator G representa a habilidade cognitiva geral de uma pessoa: uma capacidade central, mais ampla que o QI, que influencia seu desempenho em diversas tarefas, como resolução de problemas, aprendizado, raciocínio lógico, memória, cognição social, etc.

Podemos dizer que todo filme também tem um "fator geral de inteligência", estabelecido principalmente pelo diretor (quando ele tem controle criativo sobre a obra), com grande influência do roteirista.

Assim como a Intenção de um filme, essa é uma qualidade menos tangível da arte, mas que acaba sendo tão determinante para a qualidade de um filme quanto aspectos mais mensuráveis, como a estrutura narrativa ou as atuações.

O Fator G se manifesta não apenas nos elementos óbvios pelos quais costumamos julgar um filme, mas especialmente nos detalhes: em um conjunto de boas decisões e observações inteligentes que refletem a capacidade do criador da obra.

Filmes do Kubrick, por exemplo, têm sempre um Fator G elevado porque Kubrick tinha um Fator G elevado. É fácil observar isso comparando 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) com a sequência 2010: O Ano em que Faremos Contato (1984). Apesar de também ter Arthur C. Clarke no roteiro, 2010 foi dirigido por um cineasta mais convencional e, portanto, é bem menos estimulante intelectualmente do que 2001. O filme abre recapitulando tudo o que houve no primeiro filme, mastigando aspectos já claros da história, e prossegue com uma série de cenas expositivas preguiçosas, que sugerem que ele não contará com a inteligência do espectador para muita coisa. Contraste isso com 2001 e como o filme omite diversas conexões, contando com o público para fazê-las sozinho: na cena em que o macaco tem o insight de que o osso pode ser usado como arma/ferramenta, um espectador desatento pode não conectar a descoberta com a aparição do monolito minutos antes, ou com a espaçonave milhões de anos depois.

Isso nos dá algumas pistas sobre o Fator G. Filmes com um Fator G elevado tendem a estimular o raciocínio do espectador. Claro, apenas a pessoa mais inteligente do mundo poderia ser estimulante para todos os níveis de raciocínio. Há algo de relativo nessa dinâmica, mas, como regra geral, o artista deveria estar acima do Fator G médio da população e, certamente, acima do Fator G médio de seu público-alvo.

Filmes com um Fator G elevado apresentam observações profundas e perspicazes sobre o mundo e o ser humano, que fogem do lugar-comum (repetições, imitações e clichês rebaixam o Fator G de uma obra). O Fator G elevado costuma demonstrar preocupação com ordem, estrutura, processos, precisão e integração de elementos, buscando coerência e eliminando contradições. Há um foco maior em conceitos, ideias, fatos universais/atemporais, em vez de emoções espontâneas, convenções culturais ou tendências passageiras. Ele também busca economia, eficiência e alcançar o máximo de resultado com o mínimo necessário, evitando o que é redundante ou supérfluo.

Essas características não se apresentam de forma direta e explícita nos filmes, mas percebemos isso em um nível subconsciente.

2010, por exemplo, começa com "Assim falou Zaratustra", de Strauss, tocando sobre os créditos iniciais, assim como 2001. Mas, desta vez, mostrando antenas parabólicas durante um nascer do Sol. A cena é brochante, pois parece tentar repetir o mesmo impacto da abertura do primeiro filme, mas com uma imagem mais genérica e menos emblemática, que não reflete o tom épico da música. Além disso, o nascer do Sol e os títulos perderam qualquer sincronia com a estrutura da composição. Não há nenhum defeito óbvio nessa sequência, mas é interessante notar como, a esta altura, 2001 já comunicava uma série de qualidades evocativas de um alto Fator G.

O Fator G é uma das características que menos mudam ao longo da carreira de um artista. Um artista pode ter um desempenho melhor em um trabalho, pior em outro, mas seu padrão cognitivo não costuma sofrer grandes oscilações (exceto, talvez, um declínio em idades mais avançadas). Um artista com um Fator G alto, no entanto, não pode se acomodar e achar que tudo o que fizer será brilhante. Sua capacidade precisa ser demonstrada concretamente no estilo e no conteúdo de cada obra. Woody Allen, por exemplo, já fez diversos filmes medianos, até mesmo fracos, apesar de o Fator G de seus filmes geralmente permanecer alto. Há também muitos artistas com Fator G elevado que simplesmente não possuem grande talento. O Fator G se relaciona com o conceito de talento, mas não é a mesma coisa. Ele tende a conferir à obra um mínimo de interesse e originalidade, mas não garante qualidade artística.

Uma das tendências mais preocupantes em Hollywood nos últimos anos é o declínio no Fator G dos filmes. Já se tornou raro encontrar tramas com um mínimo de coerência, ou filmes de gênero que não pareçam ignorar totalmente as leis da física. (Não estou falando de filmes propositalmente subjetivos ou fantasiosos, mas da falta de realismo que aponto em filmes como A SubstânciaInterestelarFragmentado, ou na franquia Um Lugar Silencioso.) Uma das coisas mais surpreendentes ao ver clássicos é perceber o quanto a inteligência média dos filmes costumava ser superior. Se um cinéfilo tivesse hibernado nos anos 60 e acordasse hoje, provavelmente teria a mesma reação da Sigourney Weaver em Aliens, quando diz para os executivos da Weyland: "Os QIs caíram drasticamente enquanto eu estava fora?"

As causas desse declínio são várias: a fuga de talentos da indústria (especialmente na área de roteiro), o excesso de pretensão de cineastas autorais que agora querem ser artistas "completos" e não delegam a escrita do roteiro, levando ao fenômeno da Pseudo-Sofisticação; o fato dos filmes serem cada vez mais feitos por comitês e executivos, não por artistas; um possível declínio na cognição geral da população, causado por smartphones e redes sociais; e a falta de ambição promovida pelas tendências Anti-Idealistas. Assim como heróis foram corrompidos porque os filmes, em vez de inspirar, passaram a querer confortar o público, representando figuras mais parecidas com o cidadão médio, intelectualmente, os filmes também deixaram de querer elevar o público para níveis mais ambiciosos de funcionamento mental, se nivelando por baixo.

Nas últimas décadas, passamos pela fase em que o cinema se tornou sombrio, pela fase em que tudo se tornou subjetivo/psicológico, pela fase em que tudo foi politizado, mas um declínio nos padrões cognitivos acompanhou todas essas tendências, e pode se tornar o foco da próxima crise.

Índice: Artigos e Postagens Teóricas

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Dezembro 2024 - outros filmes vistos

Flow

Agradável de assistir pelo visual bonito e pela perspectiva inocente do gatinho, mas essencialmente um filme Naturalista, em que os personagens são vítimas das circunstâncias e apenas reagem a uma série de incidentes aleatórios. Também pode ser visto como uma representação do sentimento de muitas pessoas atualmente, que têm uma visão catastrófica das mudanças climáticas e se sentem como os animais da história: atônitos diante de desastres sobre os quais têm pouco controle, restando apenas ajudar uns aos outros e buscar algum tipo de preenchimento espiritual enquanto caminham em direção ao fim.

Flow / 2024 / Gints Zilbalodis

Satisfação: 4

Categoria: Naturalismo

Filmes Parecidos: Meu Amigo Robô (2023) / Robô Selvagem (2024) / A Tartaruga Vermelha (2016) / Wolfwalkers (2020)



Sting - Aranha Assassina

Quando Malditas Aranhas! foi lançado em 2002, eu já não curti muito a ideia de parodiar o gênero, misturando horror com comédia. Mas na época, isso pelo menos parecia uma ousadia, algo que subvertia o padrão dos anos 80 e 90, que era levar a sério filmes de criaturas gigantes. Hoje, essa atitude irônica virou o novo clichê, a abordagem óbvia pra um filme com essa premissa. Então nem o fator ousadia existe mais, o que torna Sting o mais fraco dos filmes de aranhas assassinas que vi na última semana.

Sting / 2024 / Kiah Roache-Turner

Satisfação: 4

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Seres Rastejantes (2006) / Infestação (2023) / Ninguém Vai Te Salvar (2023) / Malditas Aranhas! (2002) / Piranha (2010)



Infestação

Se Sob as Águas do Sena (2024) foi o Tubarão francês, este é o Aracnofobia. Plausibilidade não é o ponto forte do roteiro, mas os efeitos especiais e os encontros com as criaturas são bem feitos o bastante pra manter os fóbicos aflitos.

Vermines / 2023 / Sébastien Vanicek

Satisfação: 6

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Sob as Águas do Sena (2024) / Ameaça Profunda (2020) / Sting - Aranha Assassina (2024) / Quarentena (2008) / A Queda (2022)



Senna

Uma das produções nacionais mais “hollywoodianas” que já tivemos (no bom sentido), com um trabalho de casting excelente e cenas de corrida empolgantes que compensam os aspectos mais genéricos da narrativa. Há quem diga que o documentário de 2010 reflete melhor a vida de Ayrton Senna, mas pra mim, o documentário reflete melhor sua tragédia — o sentimento melancólico que foi atrelado a Senna após 1º de maio de 1994. Já o sentimento que Senna provocava nos brasileiros em vida, este é mais fielmente representado pela série.

Senna / 2024 / Vicente Amorim

Satisfação: 8

Categoria: Idealismo

Filmes Parecidos: Rush: No Limite da Emoção (2013) / Ford vs. Ferrari (2019) / Arremesso Final (2020) / Pelé Eterno (2004) / Senna (2010)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Tim's Vermeer

Documentário de 2013 sobre um inventor que decide recriar um quadro do Vermeer (pintor holandês do século XVII, considerado um dos maiores de todos os tempos), apesar de nunca ter pintado antes. Como ele faz isso? Desvendando primeiro a técnica que (provavelmente) permitiu Vermeer criar imagens tão realistas antes da invenção da fotografia — uma descoberta que desafiará as suposições de muitos apreciadores de arte e historiadores (e também a de objetivistas, que terão que lembrar que "o conhecimento é contextual" e reavaliar a afirmação de Ayn Rand de que Vermeer teria sido "o maior de todos os artistas").

Produzido por Penn Jillette e Teller (a dupla de ilusionistas), Tim's Vermeer é um registro extraordinário de uma mente científica em ação.


Tim's Vermeer / 2013 / Teller

Satisfação: 10

domingo, 1 de dezembro de 2024

Diagnósticos e Remédios Psiquiátricos

Depois de cerca de quatro anos experimentando uma série de medicamentos e terapias, além de testar ficar sem nada, resolvi voltar a tomar os remédios que usei entre 2012 e 2020, que já tinham se provado eficazes (Prozac + Risperidona). Em 2020, parei com eles porque me acostumei tanto com o efeito que comecei a achar que não precisava mais ou que eles não estavam mais funcionando. Foi só parando e, agora, voltando a tomar, que percebi o quanto eles eram benéficos para mim.

A grande surpresa nisso tudo foi perceber o quanto meu estado mental "normal" hoje, sem nenhum medicamento, é atípico e desconfortável. Filosofia, terapia, alimentação, sono, autoajuda, meditação, autoconhecimento — quando eu buscava bem-estar apenas por meio dessas coisas, era como tentar aliviar uma perna quebrada com homeopatia. Essas práticas são ótimas quando você já tem uma base mínima de bem-estar biológico, mas, na minha visão, elas não conseguem criar essa base.

Já fiz tratamentos com Prozac (Fluoxetina), Risperidona, Escitalopram, Venvanse e Wellbutrin (Bupropiona). No meu caso, o remédio que realmente dá "match" e parece fazer a diferença é o Prozac — o que sugere que, por algum motivo, eu tenho baixos níveis de serotonina no cérebro. Nunca tomei Prozac sem estar também tomando Risperidona, o que dificulta entender o papel de cada remédio isoladamente, mas o Prozac tem um efeito tangível, quase imediato, que não me parece possível atribuir à Risperidona.

E qual é o diagnóstico? Qual a causa desses desconfortos que me levam a tomar remédios? Bem, aí as coisas começam a ficar mais complexas. Já cogitaram que eu tivesse Asperger (TEA) ou TDAH — mas, quando passei por uma avaliação neuropsicológica em 2021, essas hipóteses foram descartadas (embora a avaliação não fosse específica para medir TDAH).

Isso não anula o fato de que, desde criança, eu tenho características psicológicas atípicas e uma série de sensibilidades e desconfortos que me empurram na direção dos transtornos de personalidade do grupo C — sintomas como ansiedade social, traços de TPOC, distimia — características não incomuns em pessoas com alta Conscienciosidade e Neuroticismo no teste Big Five. Mas, no meu caso, não parecem configurar um transtorno real.

A única coisa "diferente" que a avaliação neuropsicológica apontou foi um quadro de "superdotação" (que nada mais é do que os 2% da população que se saem melhor em um conjunto de testes cognitivos — nada tão raro quanto se pensa). Estudos modernos sugerem que pode haver uma relação entre superdotação e as sensibilidades e desconfortos que mencionei, mas isso ainda não é amplamente reconhecido pela ciência.

Estou registrando isso aqui não só para que vocês me conheçam melhor, mas também porque acredito que pode haver uma conexão entre perfis psicológicos, níveis de serotonina no cérebro, preferências artísticas, gostos, personalidade, etc. Portanto, se você se identifica com muitas de minhas experiências, é possível que tenha um "set-up" mental parecido e que, eventualmente, possa se beneficiar desse relato.

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Moana 2

Pais, tios e avós, não cometam o ato de negligência estética de levar suas crianças pra ver Moana 2, uma série de segunda linha para streaming transformada em filme só pra ajudar o Bob Iger a pagar as contas da Disney, após uma série de fracassos — todos frutos da mesma mentalidade de usar personagens populares pra empurrar produtos medíocres e ganhar um dinheiro fácil, enquanto a reputação da empresa escorre pelo ralo.

Moana 2 / 2024 / David G. Derrick Jr., Jason Hand, Dana Ledoux Miller

Satisfação: 2

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Wish: O Poder dos Desejos (2023) / A Caminho da Lua (2020)

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Aqui

Mais um daqueles experimentos frustrantes do Robert Zemeckis, em que ele coloca um gimmick ou uma inovação técnica acima do entretenimento. A ideia de um filme inteiro onde a câmera não se mexe até me pareceu uma restrição interessante a princípio, que poderia resultar em um exercício criativo de direção. Mas eu imaginava que haveria uma tentativa de contar uma história com começo, meio e fim — que os saltos temporais mais bizarros se limitariam à introdução e que, depois, conheceríamos o casal central (Tom Hanks e Robin Wright) e seguiríamos com um drama mais ou menos linear. Mas não é o que acontece. Os saltos temporais (que incluem até a era jurássica) persistem ao longo do filme, de forma que você vê apenas fragmentos da vida do casal. A história nunca começa, porque o filme nunca escolhe um tema central para desenvolver.

A tagline do filme diz: "Alegria, esperança, perda, amor, a vida acontece...". Essa frase poderia servir para um filme como Laços de Ternura também. Mas, em Laços de Ternura, o filme foca na jornada de uma mãe superprotetora que precisa aprender a deixar a filha sair do "ninho". Há um conflito humano específico sendo discutido, e é esse tema que nos prende à história. Aqui, não há um tema equivalente. Há apenas uma colagem de momentos aleatórios de alegria, esperança, perda e amor, mas os personagens de Hanks e Wright permanecem o "casal central genérico" — uma representação Naturalista de uma típica família americana, como se o observador estivesse a milhas de distância (o "vale da estranheza" também não ajuda a tornar os personagens mais relacionáveis). 

Zemeckis parece estar vivendo um real conflito em relação às Categorias do cinema. Ele é um Idealista por natureza, mas que, por algum motivo, tem dificuldade de se limitar a essa categoria, ao mesmo tempo em que não consegue abandoná-la completamente. Aqui, temos essencialmente um filme Naturalista com toques de Experimentalismo. Porém, ele não irá agradar ao público alternativo, que acharia interessante experimentos como o de Arca Russa (um filme feito em apenas um take), porque o mise-en-scène de Aqui é totalmente Idealista, "comercial". Há um paradoxo na tela. Parte do filme (cenário, música, atuações, luz, diálogos) é romantizada, escapista, mas a câmera catatônica, que nunca se mexe e nunca responde ao conteúdo (um artifício típico do Experimentalismo), comunica algo oposto.

O mise-en-scène sugere um artista que molda o universo para expressar certas ideias, para projetar seus valores, mas a câmera fixa é uma negação desse poder. Ela reflete a não seletividade, o não "moldar o universo". O resultado é que esse olhar indiferente, que atravessa os séculos sem responder a nada, passa a sensação de que a vida é efêmera, sem sentido, enquanto outros aspectos do filme estão lutando para dar sentido à vida. Quem ganha a disputa? A falta de sentido. Pois o Idealismo requer que todos os elementos da obra trabalhem em conjunto para criar a magia. O problema é que, como filme sobre vazio existencial, Aqui é água-com-açúcar demais para satisfazer aqueles que se divertiriam com uma reflexão mais sombria sobre a passagem do tempo.

Here / 2024 / Robert Zemeckis

Satisfação: 4

Categoria: Idealismo Corrompido (via Naturalismo / Experimentalismo)

Filmes Parecidos: Bem-vindos a Marwen (2018) / A Árvore da Vida (2011) / Boyhood: Da Infância à Juventude (2014) / Belfast (2021) / O Curioso Caso de Benjamin Button (2008) / Os Fabelmans (2022)

terça-feira, 26 de novembro de 2024

Redes Sociais e Tecnologias de Rejeição

O impacto das redes sociais na cultura é um tema que parece nunca se esgotar. Nesse texto, queria discutir como algumas experiências pessoais — desde conflitos ideológicos na internet até episódios de cyberbullying — ilustram um padrão maior: como as redes sociais modificaram o comportamento humano, nossa percepção dos outros e alimentaram o mal-estar que definiu a última década.

Inicialmente, acho que as redes sociais estimularam a autenticidade mais do que a reprimiram. Pelo menos no meu caso. Antes do surgimento do Orkut, inconscientemente, eu tinha uma tendência de me ajustar aos ambientes em que estava — no colégio, eu tinha um tipo de atitude; com meus amigos de infância, uma ligeiramente diferente; com a família do meu pai, outra; com a da minha mãe, outra ainda. Não chegava a ser um Zelig nem a mudar de caráter, mas, com a chegada do Orkut, foi a primeira vez que me vi forçado a ter uma identidade social integrada — a ser apenas um único Caio no meio de todas essas bolhas incompatíveis. E foi um bom exercício. Em vez de me esconder, comecei a me esforçar para me expor de um jeito que me parecesse internamente coerente, sem me preocupar tanto com o ambiente externo.

Isso funcionou bem por um tempo. Mas, em algum momento no início dos anos 2010, as coisas começaram a ficar meio tóxicas (cada vez mais começo a achar que as profecias estavam certas e que houve, de fato, um "fim de mundo" por volta de 2012). Vou discutir abaixo dois incidentes que mudaram minha percepção das pessoas e minha maneira de me portar em contextos sociais.

O primeiro, muitas pessoas devem se lembrar. Foi em junho de 2013, durante os protestos por causa do aumento de 20 centavos na passagem de ônibus. Protestos grandes impulsionados por redes sociais eram inéditos até então, e até esse evento — dia 13 de junho de 2013, pra ser exato — eu não sabia que praticamente metade do meu Facebook estava do lado oposto ao meu no espectro político. Foi um completo choque para mim. Claro, eu sabia que as pessoas tinham visões diferentes sobre política, mas não que tanta gente levava a sério certas ideias que, pra mim, passavam longe do consenso. Quando analiso minhas postagens do Facebook dessa época pra trás, fico sempre surpreso com a tranquilidade com que eu expressava ideias e opiniões, como se não houvesse controvérsia a respeito de nada. Eu me portava como quem acredita que as pessoas são basicamente compatíveis, que aquilo que chamamos de "bom senso" é amplamente compartilhado, e que divergências raramente passam certos limites. Mas, depois de junho de 2013, eu nunca mais senti aquele mesmo nível de despreocupação e, ao longo dos anos, fui ficando cada vez mais cauteloso e autoconsciente ao me expressar (os conflitos online durante as eleições de 2014 e o impeachment da Dilma só reforçaram as divergências que os protestos dos 20 centavos já tinham evidenciado).

O segundo incidente foi mais pessoal, mas mostra como certas "evoluções" nas redes sociais ao longo da década de 2010 abriram as portas para tensões que antes não existiam. Em 2014, criaram uma rede social chamada Secret, onde amigos podiam fazer postagens anônimas em uma timeline comum. A plataforma não durou muito, pois ela parecia promover o pior nas pessoas, e uma série de polêmicas levou ao seu fim. Dia 14 de junho de 2014, eu acabei sendo "alvo" de uma postagem anônima ridicularizando trabalhos musicais que eu estava lançando na época. Não dava para saber quem fez o comentário, mas o sistema permitia identificar se o autor era seu amigo no Facebook. No caso, era. Esse foi outro evento onde as redes sociais mudaram significativamente minha percepção da sociedade e do meu lugar nela. Assim como, até o incidente dos 20 centavos, eu achava que, intelectualmente, as pessoas eram mais parecidas comigo do que eram de fato, até esse incidente do Secret, eu acreditava que meus conhecidos eram mais confiáveis e benevolentes do que eram. Nunca me passava pela cabeça que, pelas minhas costas, pessoas próximas poderiam estar me julgando daquela forma, menos ainda que se sentiriam à vontade pra fazer isso em público. Eu tinha consciência de que, como artista iniciante, "produtor de conteúdo" amador, eu estava correndo o risco de cometer erros, criar coisas de má qualidade. Mas eu me sentia relativamente livre para experimentar, me expor, pois achava que eventuais deslizes seriam vistos com olhos mais generosos por aqueles que entendessem meu contexto. Mas a verdade é que, em alguns casos, não havia esse "desconto".

A partir desse incidente no Secret, espontaneidade artística se tornou um esforço consciente para mim. Autoexpressão e criatividade nesse novo ambiente social passaram a ter um risco emocional impossível de ignorar. (O Secret acabou, mas a facilidade de usar as redes pra atacar os outros, não). Com o tempo, fui me acostumando com essa nova realidade e ajustando minhas expectativas, meu comportamento, tentando preservar o máximo da minha autenticidade inicial. Mas já não era algo tão automático quanto antes — mesmo integridade artística e intelectual sendo valores de primeira importância pra mim. Imagine o que deve ter acontecido ao longo desses anos com pessoas que não tinham esses valores tão altos em suas hierarquias.

Ou seja, acho que a primeira fase das redes sociais foi de bastante liberdade criativa, experimentação e transparência. Mas isso rapidamente nos levou à era dos haters, do cyberbullying, dos memes involuntários, da polarização política, que colocaram um sinal de "perigo" no território. Lembram de fenômenos como Rebecca Black, Edineia Macedo e Nissim Ourfali? Eles só poderiam ter ocorrido nessa época, quando "tudo era mato" ainda nas redes sociais, e as pessoas ainda eram inocentes em relação ao julgamento, ao hate. Depois disso, todos foram vacinados, e as pessoas passaram a pensar dez vezes antes de se expor, e a manipular cada vez mais suas imagens por medo da ridicularização, da condenação moral, e de outros riscos sociais que antes pareciam improváveis.

Além da perda da espontaneidade, uma tendência que ocorre quando você está sob risco de humilhação e ataques pessoais, é você se tornar menos transparente, e também menos positivo — adquirir uma imagem mais misteriosa, dark, agressiva, cínica (apresentar uma imagem cool e "respeitável" se torna uma prioridade muito maior do que conteúdo, talento, proporcionar prazer, etc.) o que pode explicar certas tendências estéticas da última década. (Pra quem acompanhou minha fase musical e lembra do período em que comecei a esconder o rosto com uma balaclava, ou de quando lancei a música "Tudo" — aquela mudança de tom certamente não teria acontecido se não fosse por tecnologias como seções de comentários, perfis anônimos, que tornaram desagradáveis as experiências anteriores com trabalhos mais genuínos).

Não estou dizendo que as redes sociais são um fenômeno completamente indesejável, anti-natural. Se formos pensar, as pessoas nunca foram 100% espontâneas em público — elas já moldavam suas aparências antes, não expunham certas intimidades, adotavam certas convenções culturais com base no que achavam que seria aprovado ou condenado socialmente. O que mudou agora é que passamos a ter muito mais insight sobre o que se passa na cabeça dos outros. Sabemos em mais detalhes o que é aceitável ou condenável socialmente. A invenção de outros meios de comunicação em massa no passado deve também ter causado uma expansão nessa percepção da sociedade, e levado a ajustes de comportamento — a um certo amadurecimento em relação ao período anterior.

Mas há uma diferença crucial das redes sociais para a televisão ou até mesmo pra internet pré-redes-sociais: elas aumentam significativamente as experiências de rejeição pessoal no dia a dia da população. E não só porque agora podemos saber muito facilmente o que se passa na cabeça dos outros, mas também porque as redes sociais alteram nosso comportamento — tornam as pessoas mais hostis do que seriam naturalmente, em interações presenciais. Pense no seu comportamento no trânsito. Se alguém te dá uma fechada, sua hostilidade em relação ao outro motorista é muito maior pelo fato de você não estar diante de uma pessoa de carne e osso. O carro reduz o motorista a uma ideia, a um estereótipo. Da mesma forma, quando você está interagindo com alguém pela internet, até mesmo com um amigo, você está reagindo a uma versão reduzida dele — a um nome, uma foto de perfil, uma memória, não à pessoa inteira. E quem representa melhor quem você é? A pessoa que reage quando está no trânsito, em seções de comentários? Ou a pessoa que reage presencialmente? Se, além da buzina, seu carro "facilitasse" a comunicação e te permitisse enviar mensagens personalizadas para os outros motoristas, isso revelaria melhor quem você é? As consequências dessa tecnologia seriam saudáveis para o trânsito?

Por isso, a "transparência" criada pelas redes sociais não é totalmente racional. As redes sociais são como um telescópio, mas com uma lente quebrada: ao mesmo tempo em que revelam coisas que antes eram invisíveis (algo bom, se você valoriza a verdade, não acha que "ignorância é uma bênção"), elas apresentam a realidade de maneira distorcida.

A percepção de desarmonia social e as experiências de rejeição fomentadas pelas redes sociais estão por trás de vários problemas culturais que se intensificaram a partir dos anos 2010. Inúmeros estudos comportamentais apresentam gráficos que "disparam" por volta de 2011, 2012, 2013 e 2014. Palavras como "racismo", "sexismo" e "homofobia" começaram a aparecer com muito mais frequência em jornais. Problemas psiquiátricos entre jovens aumentaram. E não foi a política ou a natureza humana que mudaram drasticamente nesse período — foi a introdução dessas novas tecnologias de rejeição nos bolsos das pessoas.

Se as redes sociais revelassem apenas a verdade sobre os outros, talvez elas deixassem de ser uma fonte de mal-estar após uma ou duas gerações. Seriam como descobertas científicas desafiadoras, mas que eventualmente passam a fazer parte do senso comum. Mas, se for verdade que elas criam o mal-estar, estimulam uma desarmonia que vai além do natural, então elas continuarão sendo problemáticas no futuro e, eventualmente, terão que ser reformadas — se quisermos acabar com a polarização, com o clima de pessimismo cultural, teremos que trazer as experiências de desentendimento e de rejeição para níveis que eram normais no passado. E, pra isso, certos recursos que são padrão hoje nas redes sociais terão que seguir o mesmo caminho do Secret.

domingo, 24 de novembro de 2024

Cultura - Novembro 2024

24/11 - Fotografia de Wicked

Nessa matéria da Variety, o diretor Jon M. Chu tenta explicar a correção de cor de Wicked — e não se sai bem. As cores dessaturadas do filme ele defende com base em argumentos Naturalistas, dizendo que um ambiente muito colorido pareceria falso, e que o foco da história era pra ser a relação "real" entre as duas protagonistas. Ao citar que "o sol é a principal fonte de luz", ele faz alusão ao conceito de "luz motivada", mais alinhada com o Naturalismo, que menciono na postagem Idealismo e Naturalismo na Direção de Fotografia. O mais estranho é que ele parece achar que o filme ficou com um visual super realista, onde se vê toda a "sujeira" dos cenários, nada parece de plástico — quando minha impressão foi a oposta; que aquela névoa esbranquiçada deixou tudo com uma cara plastificada, de sonho (um sonho meio desbotado, mas ainda um sonho). A matéria termina com ele explicando que as primeiras fotos promocionais de Wicked saíram escuras porque ele as editou em seu iPhone (!) com o brilho da tela no máximo, e esqueceu que a maioria das pessoas não iria ver as fotos com o brilho no máximo — um desleixo que qualquer artista minimamente cuidadoso evitaria usando Waveforms, False Color, ferramentas que uso até pra postar um vídeo de 100 visualizações no YouTube.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Emilia Pérez

Sempre me dão preguiça essas desconstruções gratuitas de gênero, mas a ideia aqui de misturar musical com drama de narcotráfico é até interessante do ponto de vista temático, considerando que a protagonista é um desafio ao conceito de gênero. O problema é que o filme acaba ganhando relevância mais pela combinação exótica de elementos do que pela qualidade dos elementos em si: pela parte musical ou pelo drama de narcotráfico isoladamente, Emilia Pérez não seria um filme muito memorável.

O destaque fica mesmo para a performance da Karla Sofía Gascón, que encarna tão bem a personagem-título que você quase acredita que sua esposa e filhos não conseguiriam reconhecê-la depois da transição. Mas pensando em Oscar de Filme Internacional, por enquanto ainda prefiro o candidato brasileiro.

Emilia Pérez / 2024 / Jacques Audiard

Satisfação: 5

Categoria: Idealismo Corrompido / Experimentalismo

Filmes Parecidos: Cassandro (2023) / Hamilton (2020) / Romeu + Julieta (1996) / Sicario: Terra de Ninguém (2015) / Evita (1996)

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Wicked

Apesar de não gostar muito das músicas e de certos subtextos da história, acho que o musical Wicked tem uma narrativa forte, atemporal, e se o filme funciona, é por causa dos méritos originais da peça. Mas esta é uma versão menos acertada, com certos problemas de tom e ritmo que eu não lembro dos palcos (já vi 2 montagens, uma no Brasil e uma na Broadway). Pra começar, não há sentido algum dividir essa história em 2 filmes, sendo que tudo que há de mais icônico e memorável no musical acontece na Parte 1. Imagine dividir A Noviça Rebelde em 2 filmes: no primeiro, temos Maria girando nas colinas, "My Favorite Things", "Do-Re-Mi", "Climb Ev'ry Mountain", o casamento, daí no segundo filme, ficamos com a chegada dos nazistas e a fuga. Essa primeira parte de Wicked tem 2h40min — praticamente a mesma duração da história inteira no teatro. Isso quer dizer que muita coisa foi inflada, e essas gorduras ficam perceptíveis, às vezes prejudicando cenas que no palco eram redondas. Enquanto algumas sub-tramas continuam mal desenvolvidas (o romance com o príncipe Fiyero, a perseguição contra os animais falantes, a promessa de transformar Elphaba em uma garota popular), outras parecem desnecessariamente esticadas. O número showstopper "Defying Gravity", por exemplo, ficou cheio de intervalos no meio da canção (sendo que as composições de Wicked já são meio dispersas), como se o cineasta soubesse da importância do momento e não quisesse que a cena acabasse rápido demais. O problema é que tempo e ritmo são elementos fundamentais na música. Ao esticar uma boa cena cuja base é uma canção, você não termina com uma cena mais prazerosa necessariamente, pois pode estar comprometendo o que fazia a cena funcionar em primeiro lugar.

O melhor do filme pra mim é a performance da Cynthia Erivo como Elphaba, que traz uma delicadeza nas expressões que é impossível de se criar nos palcos. Já Ariana Grande se sai bem mais por causa da eficácia do texto do que por sua interpretação particular de Glinda, que não é tão magnética quanto poderia ser (a maquiagem dá uma qualidade meio anêmica pra personagem que também não ajuda). Falando em anemia, eu realmente detesto a névoa esbranquiçada jogada sobre a fotografia do filme. É quase um pecado desbotar um universo tão marcado pela cor quanto o de O Mágico de Oz, sem falar que o tratamento de imagem faz os cenários (vários deles reais) parecerem tão falsos quanto os desses filmes da Marvel criados inteiros no computador.

Dito isso, Wicked tem uma base narrativa sólida que continua rendendo um bom entretenimento. Vimos incontáveis histórias de origem nas últimas décadas, mas Wicked acho que ainda é a que melhor constrói uma narrativa original a partir de uma história familiar. As conexões com O Mágico de Oz são criativas, bem integradas à trama, e a produção não se limita ao fan-service: o que torna o musical popular é a relação carismática entre as protagonistas, a discussão universal sobre preconceito, sobre introversão vs. extroversão — elementos que não dependem de O Mágico de Oz para tocar o público.

Wicked / 2024 / Jon M. Chu

Satisfação: 7

Categoria: Idealismo Imperfeito

Filmes Parecidos: Wonka (2023) / Malévola (2014) / Oz: Mágico e Poderoso (2013) / Frozen: Uma Aventura Congelante (2013) / A Bela e a Fera (2017)

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Gladiador II

Este é um filme do Ridley Scott que fez Cruzada, Robin Hood, Êxodo: Deuses e Reis e Napoleão — nem tanto do Ridley Scott que fez Gladiador (2000). Minha intuição inicial vendo o trailer se provou mais confiável que o buzz positivo das semanas que antecederam a estreia, que me parece ter sido uma fabricação do estúdio (os marketeiros de Hollywood acho que entenderam nesse último ano o quanto o boca a boca negativo pode prejudicar a bilheteria de um filme, e agora estão manipulando cada vez mais essa etapa da divulgação).

Gladiador II já começa em desvantagem por ser uma sequência artificial, que ninguém pediu, e todas as tentativas do roteiro de conectar a jornada de Lucius (Paul Mescal) com a de Maximus (Russell Crowe) só nos relembram dessa artificialidade. A história é uma trama básica de vingança, mas com aquela mentalidade Classicista que parece achar que, se o filme apresentar certos eventos em certos pontos da história (uma morte trágica, uma revelação de parentesco), o espectador ficará automaticamente envolvido, independentemente dele gostar do personagem, entender os valores envolvidos no conflito, etc.

Um problema aqui é o mau estabelecimento do vilão. Na cena que dá início à jornada de vingança, Pedro Pascal é estabelecido como o culpado. Mas logo depois, descobrimos que ele é do bem, e os irmãos imperadores começam a se definir como vilões maiores (são herdeiros e afeminados, claro). Mas os atores são fracos, não têm o mesmo peso do Joaquin Phoenix no Gladiador original, além de serem caricaturas irritantes, que fazem as irmãs da Cinderela parecerem caracterizações sutis. Acaba que Macrinus se torna o principal antagonista da história, mas Denzel Washington é simpático demais pro público querer ver o herói lutando contra ele.

Paul Mescal pra mim é um grande erro de casting. A essência do personagem é a fúria, a sede de vingança. Em um dos péssimos diálogos do filme, Denzel diz para ele: "a raiva jorra de você como leite das tetas de uma meretriz". Não sei que prostitutas eram essas da Roma antiga que trabalhavam em fase de lactação, mas uma coisa posso dizer: várias qualidades jorram naturalmente do rosto de Paul Mescal — educação, leveza, bom humor, humildade — raiva não é uma delas.

Então temos um roteiro fraco, pra uma sequência desnecessária, com um elenco piorado, e dirigida por um Ridley Scott que parece ter perdido até a noção de bom gosto. Não vi ainda a crítica da Isabela Boscov, mas no título do vídeo ela chama Gladiador II de "cafona". Achei curioso, pois a palavra "brega" apareceu duas vezes nas minhas anotações. Há vários detalhes que passam uma falta de refinamento na direção, e até de seriedade. Desde os diálogos tolos em tom bíblico, passando pelo cabelo/maquiagem da Connie Nielsen, que parece uma perua em um casamento de classe média, até os flertes do filme com produções B escapistas, dessas que achariam "Gladiadores vs. Tubarões" ou "Gladiadores vs. Lobisomens" ótimas ideias para sequências (o filme "histórico" inclui uma cena onde uma personagem aperta uma pedra na parede e ativa uma porta automática para um esconderijo).

Dramaticamente, nada convence. Quando Paul Mescal grita com sua mãe por tê-lo abandonado, a reação dele parece infantil, sem sentido. Depois, quando ele resolve perdoá-la (e perdoar também o Pedro Pascal) as relações da história continuam não transmitindo nenhuma verdade.

As próprias cenas de luta não empolgam. Parecem enfiadas por obrigação na história, não por necessidade narrativa. O Coliseu é introduzido de maneira mais casual que no primeiro, sem os ângulos e trilhas grandiosas que criavam um senso de importância, então apesar do investimento em efeitos especiais, as batalhas acabam parecendo eventos triviais, episódicos — até porque Paul Mescal se porta como um líder preparado e imbatível desde o início da história. Você nunca teme por sua vida.

Assim como Alien: Romulus, Gladiador II talvez pareça um filme acima da média pro público jovem que nunca viu o primeiro (do qual eu nem sou um super fã) e acha que cinema se resume a isso que Hollywood vem produzindo nos últimos 10/15 anos. Mas pro resto, será a experiência triste de ver que nem um dos maiores realizadores de seu tempo, com todo o dinheiro à disposição (Gladiador II é um dos filmes mais caros de todos os tempos) consegue resgatar o padrão de qualidade que há 24 anos era normal.

Gladiator II / 2024 / Ridley Scott

Satisfação: 4

Categoria: Idealismo Imperfeito

Filmes Parecidos: Ben-Hur (2016) / Napoleão (2023) / Êxodo: Deuses e Reis (2014) / Robin Hood (2010) / Gladiador (2000)

sábado, 16 de novembro de 2024

Aviso

16/11 - Comecei a postar minhas avaliações no Instagram @caiocinefilo num formato diferente. A ideia é ter um lugar prático onde minhas notas e recomendações fiquem concentradas de maneira fácil de entender visualmente. Me digam se acham interessante e siga lá quem tiver Instagram. Ainda não estou postando textos, mas se o formato vingar, posso começar a deixar comentários nas legendas também. Depende um pouco da interação e do interesse dos outros. 


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Pretendo dar um tempo nas postagens aqui. Se surgir algum filme muito interessante ou polêmico que mereça maiores comentários, pode ser que eu escreva algo. Mas pelas próximas semanas pelo menos, vou tentar saciar meus impulsos de criticar os filmes deixando apenas as avaliações no Letterboxd e quem sabe fazendo comentários breves no Instagram. 


P.S.: Coringa 2 eu vi agora e achei bem ruim. É menos revoltante que o primeiro (tem menos violência, menos críticas tolas ao "sistema"), mas esteticamente, tem muito mais defeitos óbvios. Além do roteiro pobre, sem trama, e dos problemas do filme original que se repetem, a ideia de transformar essa história em um musical realmente não deu certo (o trailer me enganou que eles tinham dado um jeito de fazer funcionar — devia ter confiado na minha intuição inicial), e Joaquin Phoenix tem mais uma daquelas performances desajeitadas, irregulares, tipo a de Napoleão.

domingo, 10 de novembro de 2024

Ainda Estou Aqui

"Singelo", "sensível", "sutil" — meus filmes favoritos não costumam ser definidos por adjetivos como esses, mas são neles que Ainda Estou Aqui aposta. Walter Salles dirige o filme como se sua regra número 1 na vida fosse "jamais ostentar". Assim como o título em Times New Roman no pôster, tudo em Ainda Estou Aqui é simples, porém eficiente e de bom gosto. Claro que essa simplicidade muitas vezes é reflexo de um talento nada simples dos realizadores — e nos detalhes você pode ver aqui um tipo de sofisticação incomum no cinema brasileiro. Mas os virtuosismos da produção tendem a ficar nas entrelinhas, exceto no caso da Fernanda Torres, que mesmo na sutileza consegue ser excelente — ela passa boa parte do filme aguardando, mas sem se tornar uma personagem passiva; sofre, mas sem se fazer de vítima. Minha cena favorita do filme é apenas ela sentada em uma sorveteria observando as famílias "normais" ao seu redor. Sem dizer uma palavra, ela consegue fazer a ausência do marido ganhar uma dimensão nova que não existia até o instante anterior.

Não tenho muito a reclamar do filme, exceto das limitações inevitáveis da abordagem Naturalista. Mas dentro disso, o filme é um exemplo bastante respeitável desse tipo de cinema. A mini história que ele conta é dramática o bastante pra prender a atenção, o estudo de personagem foca em personalidades gostáveis, em ambientes nostálgicos, a execução é caprichada (a direção de atores e a reconstituição de época são particularmente bem feitas). E a política, que poderia ter sido um problema, não contamina demais a experiência, pois assim como em O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006), vemos a ditadura militar pelo ponto de vista de uma pessoa bastante alheia às atividades políticas dos desaparecidos. Isso também fica nas entrelinhas, mas nesse caso, para o bem do filme.

Ainda Estou Aqui / 2024 / Walter Salles

Satisfação: 7

Categoria: Naturalismo / Idealismo Moderado

Filmes Parecidos: O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006) / Aquarius (2016) / Roma (2018) / Central do Brasil (1998) / Terra Estrangeira (1995)

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Megalópolis

Simpatizei com o filme, apesar da abordagem Experimental. A falta de uma trama estruturada e a linguagem obscura impedem o Paradigma Idealista de existir, mas o filme não chega a cair no tédio, pois há sempre temas ambiciosos sendo discutidos, ideias originais surgindo na tela, e há certo valor de entretenimento nas escolhas excêntricas de Coppola. Num caso meio "Picasso", é aquele tipo menos comum de Experimentalismo que não parece apenas um disfarce para falta de talento e conteúdo. Há criatividade o bastante em Megalópolis para sentirmos que Coppola poderia ter narrado essa história de maneira mais tradicional e entregue algo interessante — ainda que o filme não tenha muita profundidade intelectual (tirando a comparação básica dos EUA com o Império Romano, o filme não traz grandes insights sobre política, cultura). É como se Coppola tivesse tentado criar seu A Revolta de Atlas, uma obra épica que pretende discutir temas atemporais, solucionar os grandes conflitos da civilização, mas sua megalomania estivesse além de sua real capacidade de cumprir a tarefa. Isso não quer dizer que Megalópolis seja uma obra vazia, charlatã (como penso de O Brutalista). Apenas que as qualidades do filme estão em outro campo, não no intelectual/filosófico. Parece mais um musical extravagante onde Coppola despejou centenas de ideias que foi acumulando ao longo de décadas. O resultado não é muito coerente, mas as ideias não são desinteressantes. Em textos como A Importância de Ideias e Inspiração ou Mentalidade Clichê eu discuto qualidades artísticas importantes que Megalópolis tem de sobra, e que faltam muito no cinema atual. São qualidades "hemisfério direito do cérebro". É uma pena que Coppola pareça achar que o artista de verdade é aquele que ignora em grande parte seu hemisfério esquerdo.

Quanto aos paralelos com A Nascente, deixei um comentário em vídeo:


Megalopolis / 2024 / Francis Ford Coppola

Satisfação: 6 

Categoria: Não Idealismo (Experimentalismo / Filme de Autor)

Filmes Parecidos: Babilônia (2022) / A Viagem (2012) / Satyricon de Fellini (1969) / Southland Tales: O Fim do Mundo (2006) / Sinédoque, Nova York (2008)

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Outubro 2024 - outros filmes vistos

Sorria 2 (Smile 2 / 2024 / Parker Finn)

Sentimentos mistos. O filme nos transporta pra um universo novo, inesperado, não tenta apenas repetir o 1°, Naomi Scott está convincente como estrela pop (embora a ideia de situar o filme no mundo da música não seja tão bem costurada na trama), algumas cenas de suspense e de jump scares funcionam, mas o filme tem 2 padrões narrativos que não gosto. 1) A história onde tudo parece ser uma alucinação na cabeça da protagonista. No primeiro, várias mortes ocorriam e eram confirmadas por personagens externos, o que provava que a personagem não era louca. Aqui, a linha entre realidade e imaginação é totalmente borrada, prejudicando o suspense. 2) O filme de terror onde o “monstro” não traz nada de positivo para a protagonista. Terror bom pra mim não é sobre sofrimento, sobre contemplar a dor, mas sobre aventura, escapismo, sobre superar medos, descobrir forças, combater o mal, etc. Sorria 2 ignora isso e foca apenas no desagradável. A "ascensão" narrativa aqui é a protagonista dando cada vez mais vexame em público, perdendo controle sobre sua mente, tendo sua carreira cada vez mais arruinada, ferindo pessoas que ama, o que não é algo prazeroso de assistir.

Satisfação: 5 (Idealismo Corrompido)



O Aprendiz (The Apprentice / 2024 / Ali Abbasi)

Gostei. Não é feito pro público MAGA, nem pro público Anti-MAGA, o que reduz bastante a audiência. Mas é uma história de ascensão interessante, com duas atuações dignas de prêmios, e uma dinâmica mestre-aprendiz divertida que faz valer o ingresso. A fotografia retrô também é ótima. Só acho que o filme termina com uns arcos meio mal resolvidos e sem desenvolver totalmente sua “tese”. Mas como história de origem do Trump e do tipo de pragmatismo que virou a marca dele na política, é envolvente. (Na prática, acho que o filme ajuda Trump mais do que atrapalha — ao mostrar que as falas extremistas dele não passam de uma tática publicitária consciente, o filme acaba desconstruindo a noção de Trump como um monstro fascista, desvinculando o homem do discurso).

Satisfação: 7 (Idealismo Crítico)

Filmes Parecidos: Fome de Poder (2016) / A Rede Social (2010) / Wall Street - Poder e Cobiça (1987)

terça-feira, 22 de outubro de 2024

O Brutalista

Se esse filme chegar na temporada de prêmios como um dos favoritos, como muitos críticos vêm apostando, eu vou sentir falta dos "bons tempos" de Nomadland, A Forma da Água, quando o Oscar dava prêmios pra filmes com valores negativos, qualidade estética duvidosa, mas que pelo menos não eram constrangedoramente idiotas.

O Brutalista parece a noção de uma tiktoker de 15 anos do que seria um filme "denso", de temática "adulta". Temos sobreviventes do holocausto com nomes tipo László, Erzsébet, Zsófia, sussurrando frases melodramáticas com sotaque húngaro, uma saga de 3h30 que abrange várias décadas, com uma crítica ao Sonho Americano embutida, sequências de créditos desconstruídas que rolam em todas as direções exceto de baixo para cima; tudo soa extremamente "europeu" — até que a maturidade de tiktoker começa a se revelar na tolice dos diálogos, na falta de noção sobre a era retratada (o comportamento dos personagens e a direção de arte permitem uma margem de uns 30 ou 40 anos de imprecisão histórica). Dizem que ao escrever um livro ou dar uma palestra você deveria saber 10 vezes mais sobre o conteúdo do que aquilo que irá de fato apresentar. O Brutalista passa a impressão de saber 1/10 das coisas que discute: como age um arquiteto, como era a vida de um imigrante nos EUA nos anos 40/50, como empresários ricos vivem e fazem negócios, como adultos falam...

O filme é Pseudo-Sofisticação em esteroides; uma combinação de Oscar-bait com Cannes-bait — duas coisas que até hoje eu não sabia que podiam coexistir. É o tipo de filme que me faz ter vontade de colocar eletrodos nas poltronas pra medir os pensamentos e emoções da plateia, pois tenho certeza que daria pra provar que ninguém de fato gostou da experiência ou sequer entendeu o que estava acontecendo metade do tempo, apesar de todo mundo sair dando 5 estrelas no cartão de avaliação (vi o filme na Cinemateca, na Mostra de SP, onde as filas são quilométricas, os assentos são ruins, cabeças te impedem de ler a legenda, o ar-condicionado não funciona — coisas que pra muitos tornam o filme ainda mais "artístico").

Fica a impressão que o cineasta leu A Nascente da Ayn Rand, gostou muito da parte onde Howard Roark é um arquiteto visionário que preza por integridade artística, mas detestou toda a ética e a filosofia por trás da história, então resolveu subvertê-la (notem a Estátua da Liberdade de cabeça pra baixo já no pôster). Temos aqui então uma premissa parecida, mas servindo pra denunciar o capitalismo e os ideais americanos — o protagonista escapa de ditaduras fascistas/comunistas no início da história, apenas para chegar nos EUA e ser estuprado pelo capitalismo, outro sistema igualmente vil. É uma ideia ridícula, claro, mas que poderia ter rendido um filme espertinho e provocativo se viesse da mente de um Lars von Trier (com quem Brady Corbet trabalhou em Melancolia e poderia ter aprendido umas lições). Mas quando você tem uma ideia dessa mal argumentada, discutida com a profundidade intelectual de uma redação do ENEM, se passando por inteligente apenas por truques estilísticos como os sotaques húngaros e créditos multidirecionais, você fica naquela situação estranha de lamentar que uma coisa, além de mal-intencionada, é também fraca e tola. Isso não deveria ser um alívio?

Minha indignação no fim não é com o filme, nem com Corbet. É com a crítica e os espectadores que cairão nessa fraude.

The Brutalist / 2024 / Brady Corbet

Categoria: Não Idealismo / Anti-Idealismo

Satisfação: 0

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

A Substância

(Esta crítica está no formato de anotações - em vez de uma crítica convencional, os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

ANOTAÇÕES:

ANTES DA DIVISÃO

- Ótima a cena do ovo se duplicando após ser injetado com a Substância, e mais brilhante ainda é a sequência seguinte mostrando a deterioração da estrela da Elisabeth Sparkle na calçada da fama. É um pouco estranho colocar duas sequências “high concept” assim uma seguida da outra, mas são boas ideias, que introduzem visualmente os conceitos principais da história.

- O filme tem uma noção excelente de narrativa visual, e sabe usar símbolos de forma objetiva pra comunicar ideias (a deterioração da estrela, a foto de Elisabeth no outdoor sendo rasgada quando ela passa de carro, as escolhas de lentes pra deixar o personagem do Dennis Quaid repulsivo, etc.).

- Demi Moore está linda na primeira parte e tem uma ótima performance o filme todo. Ela transita bem entre os momentos mais sérios da personagem e os momentos mais “Nicolas Cage”. Foi uma ótima ideia de casting, até porque acrescenta uma camada metalinguística à história.

- As referências forçadas ao Kubrick (O Iluminado / 2001) fazem o filme parecer um pouco imaturo e pretensioso (quando você é estudante de cinema e quer se posicionar como “genial", sua primeira ideia é sempre fazer uma referência ao Kubrick em um trabalho — até eu fui culpado disso aos 18 anos).

- O programa de ginástica à la Jane Fonda e o comportamento rude dos homens parecem mais uma caricatura da cultura dos anos 70/80 do que da atual, que já não tolera esse tipo de coisa há muito tempo. 

- O filme é abertamente anti-homens. Todos os homens da história são patéticos, repulsivos (o produtor, o date da Elisabeth, o vizinho, o produtor de elenco, o garoto motoqueiro, os acionistas, etc.).

- Além da linguagem visual e da direção estimulante, um dos motivos da história ser envolvente é que Elisabeth tem uma motivação extremamente simples, que até uma criança de 5 anos consegue entender: se tornar jovem, bela, e ser amada de novo. É um “filme de arte”, mas com uma narrativa que não é mais difícil de acompanhar que a de um desenho infantil.

- A crítica a Hollywood / fama / padrões de beleza é bem superficial. O filme não desenvolve nenhum raciocínio interessante sobre esses temas. Apenas fica mostrando imagens de mulheres perfeitas e de símbolos idealistas sob uma luz meio sinistra — mas isso apenas indica que a cineasta tem uma visão negativa dessas coisas, não é uma “crítica” de fato. O filme usa muito daquela tática vazia que descrevi na crítica de Titane:

Sempre que você pega elementos ligados a sexo, violência, religião, tecnologia, dinheiro, política, e os usa de maneira contrastante e provocativa numa obra, você não precisa realmente ter algo a dizer. O público inventará um significado sozinho. Por exemplo: pegue uma figura de Jesus (religião), e coloque um “M” do McDonald's (capitalismo) em cima da cruz — trabalho feito! Pinte uma mulher nua (sexo), mas com o botão de “Unlock” do iPhone (tecnologia) no lugar do órgão genital — já será o suficiente pra todos acharem sua “crítica” genial (e se a mulher estiver cheia de hematomas então [violência], melhor ainda).

- Há vários contextos onde demitir uma mulher por causa da idade/aparência seria sexista, etarista, injusto — mas exigir corpos no auge da forma em um programa de ginástica na TV não é exatamente “cruel” (o filme escolher esse ambiente pra fazer sua crítica sugere que ele tem aquela visão progressista radical onde aparência física nunca deveria ser um critério, nem mesmo pro cargo de “musa fitness”).

- Aliás, padrões de beleza e procedimentos estéticos estão entre os grandes vilões do cinema de 2024, considerando A SubstânciaFeios (2024) A Different Man (2024).

- Tudo que envolve design no filme é muito bem feito. O “unboxing” da Substância com todas as orientações é particularmente satisfatório.

- A cena do “parto” é bem feita e cria um bom Set Piece.


ELISABETH + SUE

- Qual a necessidade desses closes extremos em agulhas, feridas, nas costas de Elisabeth sendo costuradas? A nudez das atrizes é um elemento apelativo compreensível para essa história, mas o filme fica dando ênfases gratuitas em tudo que é chocante, desagradável, como se achasse uma virtude incomodar.

- Após o nascimento de Sue, começa a ficar evidente um furo central do roteiro: o “pacto fáustico” da história simplesmente não faz sentido. Sue e Elisabeth não dividem a mesma consciência; elas são pessoas diferentes. Se a motivação inicial de Elisabeth era ser amada, voltar a ser jovem e bela, que benefícios a Substância realmente trará pra ela? Nenhum! Ela continuará com sua aparência, sua idade, só que agora com uma cicatriz enorme nas costas, e tendo que abdicar de metade de seu tempo de vida (e ela não foi enganada, era isso mesmo que a Substância prometia). Como isso resolverá seu problema? Se Elisabeth só queria uma versão sua mais jovem, mas com outra consciência, não teria sido mais fácil ela ter uma filha? Eu consigo entender o que faz o Neo tomar a pílula vermelha em Matrix, o que faz os personagens de Quero Ser John Malkovich entrarem na mente de John Malkovich, o que faz os personagens da série Severance separarem suas vidas em duas, o que faz a Ellen Burstyn tomar os comprimidos em Réquiem para um Sonho — já o apelo da Substância não tem muito sentido narrativo, psicológico, e fica parecendo apenas um conceito mal pensado.

- Até o momento do parto, o filme é envolvente, cheio de suspense. Mas depois, o roteiro começa a se perder. Elisabeth não tem o que fazer depois que Sue nasce. Quando é a semana dela acordada, ela fica só vendo TV, cuidando de burocracias, sem nenhum propósito (até porque o filme ignora o furo no roteiro que mencionei no parágrafo anterior). Daí quando é a semana de Sue acordada, o filme fica só mostrando como ela é sexy, como sua vida é divertida. Até quando ela está sozinha em casa ela fica agindo como uma ninfeta — ela nunca se torna uma personagem convincente, relacionável, capaz de carregar a história. É um estereótipo vazio.

- Estranhamente, o filme resolve ignorar a empresa misteriosa por trás da Substância, e não usa isso pra engrossar a trama, criar reviravoltas, etc. A única coisa que sobra agora é esperar as coisas começarem a dar errado para Elisabeth e o filme apelar cada vez mais pro horror corporal.

- Muito do impacto do filme vem da fotografia, da edição, do som. É aquele tipo de sobrecarga sensorial que te distrai da pobreza do enredo. Ouvimos um “swishhh” ou um “whooshhh” toda vez que a câmera se mexe; as ações mais irrelevantes, como Dennis Quaid fumando um cigarro, viram praticamente um vídeo de TikTok hiper estimulante, cheio de efeitos sonoros, ângulos extremos, cortes rápidos. Não há uma única cena normal no filme; tudo tem que ser um videoclipe sexy, estilizado, super dirigido. 

- Qual o sentido da reforma que a Sue faz no banheiro (sozinha!) pra esconder o corpo de Elisabeth?

- Durante o filme todo temos a impressão de estarmos em uma mansão no alto da Mulholland Dr. em Los Angeles, até pela vista da janela. O maior plot twist do filme pra mim é o vizinho que vem reclamar do barulho da furadeira e acaba revelando que estamos em um prédio comum de classe média! É um fato que vai totalmente contra a caracterização de Elisabeth.

- Lá pela 1 hora de filme, Sue começa a quebrar as regras e a história ganha certo interesse, pois queremos saber onde tudo irá parar. Além disso, Elisabeth, que não tinha nada pra fazer no filme, agora pelo menos ganha a motivação de impedir os danos causados por Sue. Mas não há nada de prazeroso mais pra se esperar da história.

- O conflito que vai surgindo entre as duas é bobo e pouco convincente. Vira um filme sobre duas “roommates” com hábitos incompatíveis tendo problemas banais de convivência.

- Ao introduzir alucinações, o filme começa a perder um pouco da objetividade que tinha no começo e a abrir espaço para o interpretativo, o aleatório.

- Como a trama não tem muito pé nem cabeça, e o filme já esgotou tudo o que tinha a dizer sobre Hollywood, homens, padrões de beleza (que se resume a: “são maus”), violência, horror corporal e bundas se tornam a única forma do filme prender a atenção. O filme quer fazer uma crítica à superficialidade do entretenimento, mas ele mesmo aposta em superficialidades pra prender o público. 

- Meio forçado Elisabeth trombar com o senhor com a marca na mão em uma das únicas vezes que sai de casa. O filme espera tão pouco da inteligência do público que acha que a marca não será o bastante pra explicar que ele é a “matriz” do jovem do hospital: precisa fazer ele derrubar o cartão da Substância no chão, e ainda expor a cicatriz nas costas quando ele abaixa pra pegar! Tudo no filme é mastigado, na cara — sou super a favor de clareza, mas quando um filme quer parecer inteligente, o ideal é que ele estimule um pouco o raciocínio do espectador.

- O único desenvolvimento interessante da premissa básica é a cena onde a Elisabeth tenta sair pra um date e não consegue. Nessa cena, o filme acrescenta uma camada interessante à discussão, revela algo novo sobre a personagem. Só que há muito pouco disso no filme. 95% do tempo, ele não tem nada de relevante a dizer. Falta substância a A Substância — mostrar 15 variações da mesma cena onde a protagonista encara uma mulher perfeita em um outdoor/TV/quadro não é o mesmo que desenvolver o tema do filme.

- Elisabeth poderia interromper a experiência a qualquer momento, mas não o faz. Por quê? Ela já sabia dessa opção desde o início? É aqui que o furo do roteiro faz a narrativa perder o sentido. Você tem que começar a supor que existe uma conexão mística entre Elisabeth e Sue que o filme não se deu ao trabalho de estabelecer.


MONSTROS

- Depois que Elisabeth começa a parecer a velha do Iluminado, o filme assume a palhaçada. Eu me divirto com os excessos de cineastas como David Lynch ou até do David Cronenberg na medida em que eles parecem guiados por um propósito dramático/intelectual — quando a loucura parece vir de um estilo autêntico e é justificada pela história. Mas o clímax de A Substância soa forçado, e é autoconsciente demais pra divertir. Está mais pra uma paródia sarcástica de filmes cult do que algo feito com honestidade.

- Os 15 minutos finais são o ponto baixo do filme (me lembrou Barbie, que pra mim foi uma inversão completa do Princípio da Ascensão: começou brilhante, e daí foi piorando progressivamente, guardando as piores ideias pro final). O filme não tem nada a acrescentar, mas fica fazendo referências pretensiosas a Um Corpo que Cai, 2001, e apelando pro grotesco pra tentar tirar algumas reações do público, que a essa altura já não se impressiona com mais nada nesse nível puramente sensorial.

- SPOILER: O final na calçada da fama cria um falso senso de circularidade, como se o roteiro tivesse sido “bem amarrado” por terminar onde tudo começou — mas circularidades assim só são um mérito quando ocorrem por consequências naturais dos eventos. Aqui, não havia razão alguma pro monstro estar perto da calçada da fama e se arrastar até a estrela de Elisabeth. Ele só faz isso pra dar ao filme esta falsa simetria. 

The Substance / 2024 / Coralie Fargeat

Satisfação: 4

Categoria: Idealismo Corrompido / Anti-Idealismo / Pseudo-Sofisticação

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