segunda-feira, 26 de setembro de 2022

A Mulher Rei | Crítica

Quando soube que Viola Davis (com cinquenta e tantos anos) interpretaria uma guerreira africana num filme de ação intitulado A Mulher Rei, tive sérias dúvidas quanto ao projeto; parecia daquelas coisas com potencial pra ser uma grande bomba e manchar uma carreira tão digna quanto a de Viola. Ao mesmo tempo, se funcionasse, o filme poderia elevá-la a um outro nível de estrelato, e é exatamente isso que acontece — já na primeira cena, quando Nanisca (Viola) emerge lentamente do matagal com seu olhar ameaçador, sabemos que ela acertou em cheio e está no completo domínio do personagem, mesmo num papel tão improvável.

Antes da entrada de Viola eu já estava simpatizando com o filme — a teatralidade e o clima de fábula da narração inicial eliminaram minha maior preocupação, que era a do filme ser uma dessas produções raivosas de hoje que estão mais preocupadas em dar lição de moral no público do que em criar espetáculo.

O filme gira em torno das Agojie, guerreiras da África Ocidental que lutam (no filme, pelo menos) contra colonizadores e traficantes de escravos no século 19. A trama foca na relação entre a general Nanisca e uma jovem chamada Nawi (Thuso Mbedu, numa performance quase tão fenomenal quanto a de Viola), que foi deserdada pelo pai e entregue ao exército. A história é basicamente sobre a evolução da garota Nawi como guerreira, o estreitamento de seu laço com Nanisca, e o arco emocional da própria Nanisca, que tem um passado traumático e feridas emocionais que vêm à tona com a chegada de Nawi.

O filme mantém um equilíbrio excelente entre ação e profundidade emocional/desenvolvimento de personagem. E "equilíbrio" talvez nem seja o termo certo, pois o acerto aqui não tem nada a ver com ritmo ou com a frequência desses tipos de cenas, e sim como o fato delas estarem integradas: da ação (muito bem coreografada, por sinal) estar sempre conectada a personagens fortes e a um drama central interessante.

Quanto à imprecisão histórica, não é algo que vejo como problema. O filme tem um tom mitológico claro desde o começo, e é bem diferente de produções que se apresentam como relatos históricos sérios, com uma finalidade didática. Pra mim, o importante é que a história envolva, divirta, e tenha valores positivos — não que ela seja fiel a fatos jornalísticos ou que defenda certos símbolos/bandeiras. Embora superficialmente o filme pareça atacar o homem "civilizado", na realidade ele promove todos os valores iluministas que são a essência da cultura ocidental. Se você for ver, o filme se passa num mundo que respeita razão, liberdade, progresso, felicidade individual: reparem como no primeiro dia de treinamento, Viola deixa claro que as guerreiras podem ir embora se quiserem, que não se trata de um regime opressor. Em cenas onde a menina Nawi e outros personagens se rebelam contra as tradições e regras do reino (como o garotinho que espia as Agojie passando na rua), este ímpeto individualista/racional é usado pra torná-los mais carismáticos na história (é tipo o Maverick quando vai contra as normas da marinha e se prova mais eficaz). Viola é mostrada como empreendedora; incentiva a produção de óleo de dendê na região para que o reino possa se sustentar economicamente sem o tráfico de escravos (ao contrário do que alguns dizem, o filme reconhece sim que o Reino de Daomé traficava escravos — aliás, acho que é a primeira vez que vejo um filme mostrar que negros também capturavam escravos na África). Há muita fantasia, claro, mas isso não compromete o filme enquanto arte/entretenimento, da mesma forma que o fato de leões não cantarem não compromete O Rei Leão. O filme evita também uma visão tribal/racista do conflito — não é desses filmes onde 100% dos homens são maus, e 100% das mulheres são boas, onde caráter é definido por nacionalidade, etnia, sexo etc. Temos homens que são bons, outros que são maus; mulheres que são fortes, outras que são fracas (baseadas em suas próprias escolhas); e o principal vilão nem é um colonizador, e sim um general africano. 

Ou seja, é uma história tradicional de bem vs. mal, focada nas virtudes das protagonistas (não na demonização do inimigo), com uma mensagem positiva, e o filme tem ótimas qualidades de produção, grandes performances da dupla central, com Viola Davis apresentando uma das heroínas mais icônicas do cinema recente.

The Woman King / 2022 / Gina Prince-Bythewood

Satisfação: 8

Categoria: I

Filmes Parecidos: Gladiador (2000) / Mulher-Maravilha (2017) / As Viúvas (2018)

14 comentários:

Dood disse...

Os identitaristas estavam inflando as avaliações desse filme em sites especializados. e fazendo aquele marketing danoso que não deixa a produção falar por si só. Eu ia deixar passar batido, mas com tua análise me despertou interesse.

Caio Amaral disse...

Tipo no Rotten Tomatoes? Eu vi só o IMDb, e lá é o contrário.. a maioria dos usuários deu nota 1 pra prejudicar o filme.. talvez os dois grupos estejam votando com base em ideologia, fatores externos, não com base no filme... mas os que estão distorcendo pra baixo me parecem os mais mal intencionados nesse caso.

Dood disse...

Não sei qual foi, acho que foi o Rotten. Não só isso também teve declarações da atriz como essa:

https://www.metropoles.com/entretenimento/cinema/viola-davis-acham-que-mulheres-negras-nao-podem-ser-protagonistas?fbclid=IwAR2mUfCV6pArP332akgVhXEJipNsVHtj8YifSsPOS6uRppGwCmmhzcjkm5I

Caio Amaral disse...

O que a Viola falou não deixa de ser verdade né.. mas é uma pena que o entretenimento hoje precise ser abordado pela mídia sempre através de alguma pauta social.. fica a impressão que é daí que vem todo o valor de uma obra..

Anônimo disse...

E o gênero Blackexplotation nos anos 70?

Caio Amaral disse...

O que tem? Pelo que entendi, a Viola se referia a sucessos mundiais.. blockbusters.. e se você for ver, são poucas as Halle Berrys, as Whoopi Goldbergs, que já estrelaram filmes comerciais de grande alcance. Não estou dizendo que exista alguma conspiração, ou que a solução sejam cotas ou algo do tipo.. mas no lugar dela, eu também ficaria intrigado.

Anônimo disse...

Mas todo mundo começa de algum ponto, não necessariamente vai pra um sucesso mainstream logo de cara. Johnny Depp começou na Troma ganhando uma merreca pra atuar. Isso de chegar a ser um sucesso, varia.

Caio Amaral disse...

Acho que não entendi qual a discussão.. estou apenas reconhecendo o que a Viola falou.. que realmente pouquíssimas mulheres negras (especialmente de pele mais escura) são protagonistas em filmes de grande público. Basta olhar pras maiores bilheterias dos últimos 20 anos. Não estou falando dela especificamente ter demorado pra estrelar um filme assim.. e sim de um fato histórico da indústria.

Anônimo disse...

Mas aí é que está: o fato é que foi por mérito, dá a entender que foi por outro motivo que ela conseguiu o estrelato agora. Mesmo você citando a Hale Barry e Whoopy acaba contradizendo a narrativa dela.

Teria que ter exemplos práticos de atrizes com as características dela com mérito que foram dispensadas.

Caio Amaral disse...

Não sei se a Viola falou outras coisas que você está levando em conta.. eu estou comentando só o que li no link:

“Tive que lutar por esse filme, lutar pelos atores, lutar pela diretora, lutar até mesmo pela noção de que esta história merecia se tornar um filme. Existe uma noção de que mulheres de pele escura não podem ser protagonistas em sucessos mundiais, e aí esta é uma outra história. Estamos falando de colorismo, e este é o último dos preconceitos aceitáveis.”

Ela não quis dizer que seria a primeira vez que uma negra protagonizaria uma grande produção, só disse que existe uma resistência, uma barreira maior, e que fazer este filme sair do papel exigiu mais esforço que o normal por conta de um certo preconceito da indústria, que parece acreditar que astros de pele mais clara (inclusive negros) têm mais apelo comercial. Exceções existem, claro, mas isso não impede a resistência de continuar existindo (não é porque o Eminem fez sucesso no Rap, ou pq o Peter Dinklage fez sucesso em Game of Thrones, que agora não há mais resistência alguma pra pessoas com esses perfis nesses mercados).

O que a Viola falou me remete mais ao que houve na música pop nos anos 80.. nos anos 50, 60, 70, negros já faziam sucesso na música, mas os artistas negros que quiseram entrar na MTV como Michael Jackson / Whitney Houston, e competir de igual pra igual no mercado do pop, tiveram que enfrentar uma resistência maior, demonstrar até mais talento e ter um apelo mais extraordinário que o típico artista branco, pra conquistar aquele espaço. Isso é normal em qualquer indústria onde existe um certo padrão, e você traz algo que mexe com o padrão.. E o jeito pra quebrar barreiras é esse mesmo.. lutar, se provar melhor que a concorrência, e assim diminuir a resistência para os que virão depois.

Anônimo disse...

Sim, não nego que não exista uma resistência a certos esteriotipos. Mas as exceções podem ocorrer, mas elas têm que vir com talento não para um cumprimento de cota. E mesmo dentro do padrão que a indústria abriga nem tudo é qualidade. Por isto o mérito e fundamental.

Caio Amaral disse...

Sim, concordo.. e só estou falando bem do filme pq no caso da Viola aqui, é nítido que ela está incrível e que ninguém faria esse papel melhor que ela.. Agora quando existe uma inclusão forçada que prejudica o resultado, eu sou o primeiro a vir xingar aqui.. é o que mais tem hoje, não só na parte do elenco, mas em outros cargos também. Mas acho importante destacar os casos que são baseados em mérito, pois se não vc reforça a ideia de que é tudo preconceito.. abs.

Dood disse...

Claro que sim, no final o que se sempre vê é que o mérito sempre aparece.

Obs: desculpa postar sem logar, até porque estava com problemas no meu pc e acesso a minha conta.

Abraços.

Caio Amaral disse...

Achei que era um transeunte aleatório hehe.