terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Padrãofobia e Virtofobia

No mundo do cinema, costumo discutir como o Anti-Idealismo na cultura faz artistas sem talento receberem mais oportunidades que artistas de real mérito, como personagens de mau caráter se tornam mais populares que personagens heroicos, etc. Mas o "ódio do bom" e o ressentimento contra virtude ocorrem em diversas áreas e se manifestam em contextos mais cotidianos também. Assim como um objeto trivial como um canudo de plástico pode se tornar um símbolo pra uma discussão mais ampla sobre valores (prazer vs. autossacrifício, individualismo vs. coletivismo, capitalismo vs. socialismo — como discuti no texto sobre a Pandemia), a aparência das pessoas carrega em si uma série de significados também, e a beleza daqueles considerados "padrões" passou a carregar um significado negativo na cultura atual. 

Beleza em si não prova virtude de caráter, mas tampouco prova falta de caráter. Na ausência de qualquer outro fator, uma pessoa saudável deveria responder positivamente à beleza, nem que fosse por pura associação subconsciente entre estímulos sensoriais e valores (como um pôr do sol bonito criar a impressão de que seu dia em si está mais agradável). Além disso, um adulto é sempre parcialmente responsável por sua aparência. Uma pessoa que nasce bonita pode se tornar pouco atraente dependendo do que ela faz ao longo dos anos — e genética não garante coisas como músculos definidos, senso estético pra se vestir etc. Então neste nível básico, não há razão alguma pra reagir negativamente à beleza — pelo contrário, pois existe uma associação legítima entre beleza e valores desejáveis como vitalidade, saúde, força. Mas não é assim que grande parte da população parece pensar. E ontem, na estreia do BBB 24 na Globo, houve uma ilustração curiosa disso pra qualquer um que duvide que a "padrãofobia" é uma realidade e que ela afeta decisões práticas das pessoas no dia a dia.

O programa começou com 18 pessoas na casa que receberam a incumbência de selecionar, entre um grupo de 12 novos candidatos, mais 6 pessoas pra entrarem pro programa. Os 12 candidatos tiveram a chance de se apresentar brevemente, dizer suas idades, de onde eram, o que faziam da vida, e responder a uma pergunta simples sobre suas personalidades. E se você sabe qualquer coisa sobre a cultura atual, não era difícil prever o que aconteceria: todos aqueles que pareciam "humildes" ou ter algum tipo de desvantagem social, seriam selecionados (os que eram menos atraentes, o cara que disse ter vindo da favela, o outro que revelou ser gay etc.) Entre os 12, tinham uns 4 que pareciam modelos e nitidamente se destacavam pela beleza, lembrando típicos participantes do programa do passado. Nenhum foi escolhido.

Daria pra argumentar que os participantes eliminaram os "padrões" porque não queriam concorrentes fortes na casa; ou que eles selecionaram os "humildes" pra sinalizar de virtude — por saber que o ato altruísta pegaria melhor com o público (aposto mais nessa segunda opção). Mas a festa que estourou no Instagram e no Twitter imediatamente após a eliminação dos "padrões" não pode ser explicada por nada além de inveja e "ódio do bom".

Alguns comentários online ainda tentavam fornecer alguma racionalização pra essa felicidade deturpada, dizendo que "beleza não é o bastante se a pessoa não tem carisma, história de vida, conteúdo" (como se os escolhidos tivessem mostrado algo notável nesse aspecto).

A verdade é que desvantagem social em si se tornou um sinônimo de "carisma", "história de vida" e "conteúdo" no cérebro de muita gente, o que torna a racionalização acima tão lógica quanto dizer "beleza não é o suficiente se a pessoa não tem a não-beleza também".

Mas os que tentavam racionalizar eram a minoria. Os comentários com mais curtidas eram aqueles que expressavam orgulhosamente ódio pelos "padrões" pelo simples fato deles serem mais bonitos. E quem ousasse expor, ainda que de maneira tímida, o preconceito óbvio na situação, era imediatamente confrontado com "argumentos de intimidação" — comentários cheios de confiança moral, mas completamente vazios em conteúdo, como os que são usados pra tentar ridicularizar o conceito de "racismo reverso". É tão proibido hoje dizer que um "padrão" pode sofrer preconceito quanto é proibido sugerir que um não-padrão nem sempre sofre tanto preconceito quanto dizem, ou pode até ter alguma vantagem competitiva na sociedade atual.



É esse tipo de negação óbvia de fatos, facilitada pelas narrativas fortalecidas pela cultura e pela mídia, que torna possível pessoas saírem nas ruas, como fizeram recentemente, celebrando abertamente o massacre de cidadãos inocentes e crianças em Israel, já que um país rico como Israel jamais poderia ser visto como vítima. A cultura hoje protege apenas a reputação dos "fracos". Se você é visto como o forte/privilegiado, não há limite pros ataques que podem ser perpetrados contra você.

Periodicamente, vejo nas redes sociais posts de páginas de fofoca que ridicularizam falas de famosos que dizem já ter sofrido preconceito por conta de suas belezas. Outro dia vi um post desses que reuniu dezenas de frases de profissionais experientes, celebridades renomadas, o que me fez inicialmente achar que o propósito da postagem era dar visibilidade pro drama deles! Mas não, as queixas eram completamente desconsideradas pelo post como algo intrinsecamente ridículo.

Em parte isso ocorre porque essas pessoas de espírito invejoso têm razão em pelo menos 1 sentido: na intimidade, entre quatro paredes, poucas pessoas de fato têm preconceito contra beleza — pelo menos quando elas acham que podem usufruir dela. Num aplicativo de relacionamento, por exemplo, os "padrões" vão ser sempre mais procurados que os menos atraentes.

O preconceito contra o "superior" tem uma natureza diferente do preconceito contra o "inferior". Como o "bom" é aquilo que representa algo de valor real pra vida e pra felicidade humana, não é possível uma pessoa que deseja viver desprezar totamente o bom. O "ódio do bom" requer algum nível de racionalização, e é baseado em contradições internas. Num nível consciente, explícito, a pessoa pode até se comportar como se odiasse o "bom", mas subconscientemente, ela sentirá que está sendo hipócrita. Já o desprezo pelo "ruim" não requer racionalizações. A pessoa pode, em todos os níveis de consciência, desprezar sem hipocrisia aquilo que não representa nenhum valor pra vida dela.

Portanto, não estou querendo igualar a "padrãofobia" às formas mais clássicas de preconceito. Ser desprezado por suas virtudes com base na irracionalidade de pessoas invejosas é menos humilhante de certa forma do que ser desprezado honestamente por aqueles que não veem nada de desejável em você. Claro, odiar uma pessoa por suas virtudes é muito mais imoral e perverso do que desprezar alguém por sua falta de virtudes. Mas como o critério pra "empatia" na ética altruísta é o grau de vulnerabilidade, o nível de humilhação sofrido pelo alvo do preconceito, dá pra imaginar por que muitos acham que a "padrãofobia" é um preconceito leve.

Isso não quer dizer que o desprezo hipócrita dos padrãofóbicos não cause danos reais e não deva ser combatido. Embora em suas vidas privadas, fora dos holofotes, os "padrões" possam continuar usufruindo de várias vantagens, em áreas que são movidas pelas narrativas dominantes da cultura, onde decisões são tomadas em público, por comitês, por voto popular, onde as impressões sociais contam mais (e na era das redes sociais muitas áreas funcionam assim) as pessoas que passam uma imagem de privilégio e superioridade sofrerão preconceito, enquanto aquelas que fazem os tomadores de decisão se sentirem "bons altruístas" serão favorecidas. O mesmo fenômeno que levou os não-padrões a serem escolhidos no caso do BBB, se manifesta também em entrevistas de emprego, processos de casting, premiações, etc. Dar vantagens a um não-padrão faz com que as pessoas se sintam bem diante da sociedade, enquanto dar vantagens a um padrão gera insegurança e desconforto moral — independentemente dos méritos e competências das pessoas envolvidas.

A primeira vez que me conscientizei deste fenômeno foi em 2017 quando eu gravava um vídeo com uma atriz muito bonita, que tinha uma ar de namoradinha da América de filmes hollywoodianos dos anos 80. Numa conversa, ela revelou que não estava mais conseguindo trabalhos na publicidade, pois ninguém mais queria atrizes com a aparência dela em comerciais (estavam priorizando tipos mais "brasileiros"). Isso revela uma inversão curiosa de valores que ocorreu no mundo de umas décadas para cá, que transformou vulnerabilidades — não mais virtudes — em um passaporte para o sucesso. Em uma cultura orientada para o sucesso, como era a dos anos 80 e 90 nos EUA, por exemplo, a pior coisa que alguém poderia ser era alguém fraco, pobre, feio e além disso incapaz, burro, sem caráter e talento. Este era o tipo de pessoa que não era favorecida pela cultura, e que precisava fazer um esforço extra pra provar seu valor. Se estes indivíduos cometessem deslizes, eles tinham pouca tolerância dos outros; estavam sempre a um passo de serem "cancelados". Porém pessoas que vinham "de baixo" e eventualmente se elevavam aos padrões de excelência admirados pela cultura, eram aplaudidas de pé e ganhavam uma aura especial de honra por terem transcendido suas condições (pense numa Oprah Winfrey, por exemplo). Pessoas atraentes, que pareciam fortes, capazes, essas já representavam o padrão desejado pela sociedade e tinham a cultura funcionando ao seu favor (pelo menos num nível superficial). Se além dessa vantagem inicial elas se provassem de fato virtuosas, talentosas, excepcionais, aí elas seriam a melhor coisa que alguém poderia ser naqueles tempos.

Hoje a situação é outra. Se você é visto como alguém que veio "de baixo", você não precisa mais se provar excepcional, virtuoso, pra ser visto como alguém moralmente superior. Você já tem a cultura trabalhando ao seu favor só por causa de suas desvantagens. Claro, como não é possível ser totalmente consistente com essas inversões de valores, não diria que a melhor coisa que alguém poderia ser hoje seria uma vítima oprimida, incapaz e sem talento algum... Ainda é necessário demonstrar algumas virtudes pra você ter vantagens na cultura atual, mas virtude agora é apenas uma fachada, um pretexto para que se possa premiar as fragilidades — este seria o valor mais fundamental. Muitos prêmios hoje não vão para o melhor absoluto, mas para o "mais desavantajado que fez um trabalho de destaque". Já o "privilegiado" está em desvantagem hoje em diversas situações, e terá que fazer um esforço extra pra ganhar respeito na cultura (se ele não quiser se contentar em fazer sucesso apenas em privacidade, quando ninguém está olhando). Um "padrão" não tem os pré-requisitos mais pra se tornar a melhor coisa que alguém poderia ser na cultura atual. Seus deslizes são recebidos com pouca tolerância. Ele é quem está sempre a um passo de ser cancelado, e tem que trabalhar o tempo todo pra provar sua humildade, não soar elitista, encontrar desvantagens em sua biografia (traumas, abusos, doenças) que possam ser usadas ao seu favor, reconhecer publicamente a superioridade moral dos mais fracos, e eliminar qualquer traço de autoconfiança, alegria e ambição de sua personalidade. Pois se além de "padrão" ele tiver autoestima, não se mostrar disposto a se diminuir, a se "enfeiar", a rir de si mesmo, a assumir papeis de vilão, a sofrer e expor seus defeitos o tempo todo, a aplaudir a mediocridade, ele será visto como arrogante e se tornará a pior coisa que alguém poderia ser hoje — um status que uma "vítima" não pode alcançar no contexto atual (pense em astros do cinema ou da música que eram "padrões" há uma ou duas décadas, como Leonardo DiCaprio, Zac Efron, Justin Bieber, e como eles tiveram que se degradar visualmente pra serem respeitados como artistas). Alguém que vem "de cima" e abre mão de seus privilégios pra lutar pelos "de baixo", se torna agora aquela figura honrada que é aplaudida de pé por transcender sua condição, equivalente à pessoa que começava na pobreza e conseguia provar sua excelência nos anos 80/90. O estereótipo do "Conde Vermelho" — o aristocrata de berço que se faz comunista por opção ideológica, como era apelidado o cineasta Luchino Visconti — é um perfil sempre popular nesse tipo de cultura.

Talvez você nunca tenha sido vítima de "padrãofobia" e possa estar se perguntando por que você deveria se preocupar com isso. O importante é entender que a aversão à beleza é apenas a inveja em um estágio elementar, primário. Os "padrões" sentirão primeiro os efeitos de uma cultura dominada por inveja, pois a aparência deles é como um outdoor que divulga por onde eles passam uma versão simplificada dos ideais que a sociedade rejeita moralmente (força, privilégio, riqueza). Mas qualquer pessoa honesta, ambiciosa, que deseja ter sucesso e ser reconhecida por suas realizações, eventualmente se tornará vítima deste mesmo mal, que em sua essência, podemos batizar de "virtofobia":

Virtofobia seria o ódio, ressentimento, aversão ou preconceito contra pessoas virtuosas; contra indivíduos, grupos ou criações que apresentam qualidades como força, beleza, habilidade, inteligência e nobreza de caráter. É o mesmo que Ayn Rand chamava de "ódio do bom por ser bom".

Não incluo "sucesso", "riqueza", "fama" nessa lista pois é importante notar que essas coisas não são virtudes em si, apenas consequências de certas ações, que dependem em grande parte da subjetividade da população. Numa sociedade saudável, uma pessoa se tornará rica, famosa ou bem sucedida por causa de ações virtuosas. Porém numa cultura decadente, a mediocridade também terá um amplo mercado, e uma pessoa poderá se tornar rica e famosa por ações não-virtuosas. Portanto, uma pessoa virtofóbica não será sempre contra o sucesso — apenas quando ele for merecido. Mas quando o sucesso tiver sido conquistado através da mediocridade, a pessoa virtofóbica poderá até reagir positivamente a pessoas ricas e bem sucedidas.

Ou seja, o que torna uma pessoa virtofóbica é sua atitude em relação às virtudes em si, e não simplesmente a pessoas ricas, famosas ou bem sucedidas. Da mesma forma, uma pessoa que admira virtude irá reagir positivamente apenas ao sucesso de pessoas virtuosas. Quando o dinheiro, a fama e o sucesso tiverem sido conquistados via mediocridade, tal pessoa irá reagir negativamente a esses resultados.

Resumindo, a padrãofobia seria um vício mais estreito, enquanto a virtofobia é o fenômeno mais fundamental. A pessoa vista como bonita irá se sentir julgada já por sua aparência; ela terá crises de identidade e autoestima por não entender os sinais paradoxais que vêm da sociedade, as atitudes passivo-agressivas (que refletem os conflitos internos dos outros em relação à força), e o senso de que ela está sempre fazendo algo errado, devendo desculpas por um pecado que não lembra de ter cometido. Mas num nível menos concreto/imediato, uma pessoa de aparência comum porém ambiciosa, agindo pra se tornar bem-sucedida, irá vivenciar o mesmo preconceito na medida em que ela se aproximar de seus objetivos. Se ela não tiver consciência deste fenômeno, ela ficará igualmente confusa em sua jornada, cheia de dilemas, se perguntando por que é que quanto mais ela desenvolve suas habilidades, quanto mais ela se livra de suas desvantagens e se distancia da posição de vítima, menos os outros parecem interessados em seu sucesso. Seu instinto saudável faz com que ela aja de acordo com a lógica de uma cultura orientada para o sucesso, e tente se destacar mostrando suas forças, se tornando melhor a cada dia. Só que ela não percebe que está agora em uma cultura virtofóbica, que se mobiliza mais diante de fraqueza, desvantagens, em que sua lógica não funciona mais, e que agora talvez ela fizesse "sucesso" mais rápido explorando suas fragilidades (coloco "sucesso" entre aspas pois conseguir trabalhos, dinheiro, fama e prêmios com base em suas fragilidades, sem de fato desenvolver suas forças, produzir algo de real valor no processo, não te trará autoestima nem um senso legítimo de realização a longo prazo).

Leia também: Casting Naturalista

9 comentários:

Caio Amaral disse...

Eu faço tantas correções e acréscimos a esses textos mais complexos depois que posto que fico com pena de quem leu já no primeiro momento.. rs. Espero que leiam de novo depois.

Dood disse...

Acho que o programa acaba revelando mais de quem o consome e que essas escolhas são consequência disso que esse público supostamente espera. Curiosamente essa é a edição que estão "dizendo por aí" com a mais baixa audiência. E não gostava do formato, ainda mais agora depois do lance de agenciados de uma tal Mynd estarem na casa - uma agência que pelo que foi apurado dita a regra do jogo, o que acaba com o fator orgânico que ele se propõe. Ainda mais que envolveu uma página dessa Agência de um núcleo Banca Digital que colaborou com uma indução de suicídio de uma jovem devido a se esquivar de se responsabilizar em desmentir uma notícia falsa.

Caio Amaral disse...

Não acho que foi uma reação isolada apenas do público deste programa, pois a "padrãofobia" é algo que posso apontar em diversas áreas da cultura, no cinema, em situações do dia a dia etc.

Quanto a essa história da Mynd.. tem que ficar atento só com as conspirações de direita.. vi gente tentando ligar a Wanessa Camargo à Mynd, sendo que há mais chances dela sair de lá cancelada por se revelar de direita do que qq outra coisa.

Dood disse...

Mas é estranho uma agência tentar apagar seus agenciados inclusive a Banca Digital de seu site... Mas o problema é que quem fez uma investigação sobre isso e as pessoas envolvidas não é bem de direita. Daniel Penin por exemplo, não é um perfil necessariamente de direita, e ele que cobriu com maior amplitude o caso.

Caio Amaral disse...

Não estou falando do caso da Mynd como um todo.. só questionando essa ideia dela ter uma interferência direta no formato do BBB, e isso por em xeque o que ocorre lá dentro.

Anônimo disse...

Acho interessante você dar uma olhada na cobertura do Feltrin. Ele tem uma cobertura critica e imparcial do programa.

Caio Amaral disse...

Foi justamente ele que eu vi fazendo essa associação conspiratória entre a Wanessa Camargo e a Mynd.. mas não conheço o canal dele, foi um vídeo avulso que vi. Vou dar uma olhada em outros vídeos depois.

Anônimo disse...

O Feltrin tá longe de ser um cara de direita. Ele só e um sujeito cansado de militância. Ele cobre muito bem o caso do Marcius Melhem.

Caio Amaral disse...

Entendi.. dando uma olhada em outros vídeos, ele me passou uma atitude mais ponderada.