Judas e o Messias Negro (Judas and the Black Messiah / 2021): 6.0
É fácil criticar as fórmulas e clichês dos filmes de super-heróis, das animações infantis, mas nesse último ano se você for pensar, o clichê mais abusado de todos foi esse de pegar histórias reais passadas nos anos 60 sobre líderes negros, conflitos sociais, pra traçar aquele paralelo "surpreendente" com a atualidade, etc. Diferente de Uma Noite em Miami (2020) que pelo menos tenta promover uma discussão equilibrada, esse aqui é explicitamente pró-socialismo, retrata os Panteras Negras como grandes heróis, então não vai agradar a todos... Lembra muito Mangrove (2020), mas é melhor cinematograficamente. É o Infiltrado na Klan (2018) deste ano.
Music (2021): 3.5
Música tem um efeito poderoso no cinema; quando bem usada, pode transformar uma cena banal em um momento inesquecível. O perigo é que quando combinada com mau gosto, o efeito potencializador é o mesmo — talvez por isso pareça haver algo de transcendental na ruindade de filmes como Cats (2019). Music não está no mesmo nível de desastre, mas em alguns momentos chega perto. Maddie interpretar uma autista não sendo autista é o menor dos problemas... O problema mesmo é a tentativa de tornar deficiência mental, vício em drogas e AIDS temas apropriados pra um musical pop, especialmente quando as sequências são mal dirigidas, o elenco parece errado, algumas das músicas são bem fracas... Sia disse numa entrevista que odeia musicais (embora ela goste de La La Land, o que faz sentido). Sendo o gênero mais difícil de dirigir, e ela nunca tendo dirigido nenhum filme antes, foi meio que pedir pra dar errado.
Eu Me Importo (I Care a Lot / 2020)
Achei tão repugnante que não consegui ver mais que 1 hora. No começo ainda tive a esperança da história virar uma espécie de crítica ao governo, por permitir violações de liberdades tão revoltantes (e reais) quanto as ilustradas pela história, o que teria sido interessante. Fiquei na expectativa da personagem da Rosamund Pike ser claramente identificada como a vilã, da Dianne Wiest dar a volta por cima e preparar uma vingança genial... Mas aos poucos o filme vai provando que tem uma bússola moral podre, que na verdade sua simpatia está mais pro lado da vilã, e até onde vi não há condenação alguma do governo — para os críticos, o filme na verdade é uma crítica ao "capitalismo tardio" (a noção popular que o capitalismo seria um jogo de soma-zero que cria uma sociedade de predadores e presas, etc.). Tolice minha esperar algo diferente do cinema atual.
Saint Maud (2019): 5.0
Um desses pseudo filmes de terror da A24 (A Bruxa, Midsommar), onde o elemento sobrenatural é apenas uma metáfora para uma discussão mais pretensiosa sobre psicologia, religião (a diversão do filme é criar uma caricatura de fanáticos religiosos pra mostrar como eles são perturbados — um alvo pouco clichê e seguro demais pra um filme que quer parecer "avant-garde"). Gostei das atrizes e tecnicamente o filme é bem feito, mas infelizmente há muito daquilo que discuto nos textos sobre simbolismo e pseudo-sofisticação.
Malcolm & Marie (2021): 6.5
Drama de relacionamento sobre um diretor de cinema e sua namorada que voltam da pré-estreia de seu novo filme e entram em uma série de brigas e discussões pesadas ao longo da madrugada. Pra mim pareceu como se um adolescente estivesse tentando fazer algo na linha de Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (1968) mas sem a experiência de vida necessária pra sustentar o material. Mas apesar do texto não ser tão maduro e genial quanto gostaria de ser (o elenco jovem/descolado também não ajuda), há bastante conteúdo psicológico, diálogos fortes, e os cinéfilos em particular devem se divertir com as discussões sobre a indústria do cinema (embora o filme não seja exemplo de Idealismo, ele tem uns discursos curiosos contra o Naturalismo, contra a politização do cinema, etc.).
Cena do Crime - Mistério e Morte no Hotel Cecil (Crime Scene: The Vanishing at the Cecil Hotel / 2021): 7.0
Série documental da Netflix sobre o desaparecimento misterioso de Elisa Lam em 2013 que levou a internet à loucura. Vi alguns documentários parecidos recentemente (como o primeiro episódio de Mistérios Sem Solução e o documentário Cenas de um Homicídio: Uma Família Vizinha) mas a história de Elisa e do Hotel Cecil são tão fascinantes que o fato do gênero estar um pouco saturado não chegou a atrapalhar. Além de envolvente e satisfatória como puro entretenimento, a série ainda tem um papel de sutilmente educar o espectador e combater certas irracionalidades que dominam a cultura atual como a cultura do cancelamento e as teorias da conspiração. É incrível ver como somos atraídos facilmente por narrativas fantásticas, como queremos muitas vezes que o impossível seja real, como as pessoas precisam sempre de um bode expiatório pra justificar todos os males, e como tudo isso pode ser abalado facilmente por um pouco de informação e fatos simples — como entender a funcionalidade de um botão de elevador, ou saber se algo estava tampado ou destampado em determinado momento.
Framing Britney Spears (2021): 7.5
Documentário do New York Times sobre a situação de Britney Spears, que desde o colapso emocional de 2007/2008 vive sob a tutela do pai e não tem controle sobre sua vida e seus bens. Uma história triste que reflete o pior do ser humano e me lembrou muito do artigo da Ayn Rand sobre como a sociedade "assassinou" Marilyn Monroe.
A Escavação (The Dig / 2021): 6.0
Carey Mulligan faz uma viúva britânica que contrata um arqueólogo (Ralph Fiennes) pra escavar áreas de sua propriedade onde ela acredita haver alguma antiguidade enterrada — uma história real que levou a uma das maiores descobertas arqueológicas da história do Reino Unido. O filme é um tanto morno, está mais preocupado em recontar os fatos históricos do que em proporcionar uma experiência emocionante para o público, em passar uma mensagem interessante etc. Se existe alguma reflexão profunda aqui sobre a vida, morte, guerra, fica tudo num subtexto que não chega a ser suficiente. Ainda assim, as imagens bonitas, os personagens elegantes e a história curiosa tornam o filme levemente agradável (serve talvez como um descanso da histeria e da negatividade do cinema atual).
Nunca tinha visto nenhuma versão do musical Cinderela, mesmo sendo fã de Rodgers & Hammerstein. Diferente dos outros musicais deles que foram escritos para a Broadway, Cinderela foi escrito originalmente para a televisão — um especial ao vivo estrelado por Julie Andrews que foi assistido por mais de 100 milhões de pessoas nos EUA em 1957 (bem antes de Julie ser imortalizada em A Noviça Rebelde, também de R&H). Houve uma outra produção em 1965, mas a mais conhecida hoje é o filme de 1997, também feito pra TV, estrelado por Brandy e produzido por Whitney Houston (que faz a fada madrinha). Como era algo feito pra TV — e pela capa já dava pra sentir que era uma produção de gosto duvidoso — acabei nunca dando uma chance, mesmo tendo curiosidade de conhecer as músicas. Agora o filme saiu no streaming pela primeira vez e resolvi assistir.
De fato ele é mal dirigido e meio tosco visualmente, o que me fez refletir sobre o papel crucial do diretor no cinema, pois mesmo essa sendo uma história clássica e infalível, tendo música de 2 dos maiores gênios do teatro musical, sendo uma produção de uma companhia como a Disney (ainda numa fase saudável ideologicamente) e com um elenco sólido, se tudo isso é colocado nas mãos de um diretor medíocre, o que tinha potencial pra ser um grande clássico se torna apenas uma Sessão da Tarde esquecida no tempo. Mas o lado meu que foi capaz de ignorar esses problemas, no fim ficou bastante encantado pelo filme. Quando existe talento escondido numa obra, isso sempre se revela mesmo com uma má execução. A primeira coisa que me fisgou foi a canção "In My Own Little Corner" que eu nunca tinha escutado... Poucos compositores além de R&H conseguem me tocar dessa forma apenas com uma combinação perfeita de acordes, melodia e letra.
Mas além do lado musical, o filme pra mim já se tornou uma referência no debate entre Idealismo vs. Anti-Idealismo, pois ainda nos anos 90 ele foi capaz de trazer uma diversidade surpreendente pra produção, apresentar uma princesa Disney negra, um elenco "racialmente cego" — algo visto como inovador até hoje em séries como Bridgerton — só que Cinderela fez isso de maneira que não comprometeu a essência da história e nem feriu princípios Idealistas. Cinderela é tão bela e pura de espírito quanto a do desenho de 1950, a história é igualmente otimista e romântica... Os atores apenas têm características físicas diversas, o que nesse caso não afeta em nada a magia da história. Se fizessem uma adaptação assim na cultura de hoje, além da diversidade racial, teríamos também uma Cinderela menos bonita, menos positiva, veríamos relacionamentos mais conflituosos, o visual seria menos colorido, a música seria cheia de Rap e palavrões tipo Hamilton, etc.
Tinha tirado as postagens teóricas do ar temporariamente pois muitas delas foram aperfeiçoadas e corrigidas pra fazerem parte do livro. Agora elas já estão todas de volta, com o texto atualizado.
(Capítulo 30 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
Você já se perguntou por que não temos um Mozart hoje em dia? Um Leonardo da Vinci? Ou mesmo um novo Spielberg? Com 8 bilhões de pessoas no mundo certamente não pode ser um problema de falta de cérebros, de “matéria-prima”. E, considerando que estamos na era da internet, nem de falta de acesso à informação. Se hoje em dia temos mais gente, em condições melhores, com muito mais informações e ferramentas disponíveis do que em qualquer outra época, seria de se esperar que a cultura estivesse produzindo coisas muito mais admiráveis do que as que eram produzidas há várias décadas ou séculos atrás. No entanto, não é o que vemos por aí.
Isso é porque que cada cultura colhe aquilo que planta, recebe a arte e os ídolos que encomenda. Não quero invalidar o poder que cada indivíduo tem de se desenvolver independentemente da cultura ao seu redor. Estou apenas apontando o papel que a cultura exerce nesse processo: é como a relação entre uma criança e a casa em que ela cresce. Imagine uma criança com uma inclinação para as artes, mas que cresça em uma casa de médicos, que não levem cultura a sério, ou uma criança com uma inclinação para as ciências, mas que cresça em uma família extremamente religiosa. Se elas forem independentes o bastante, elas ainda poderão crescer e desenvolver seus dons naturais, apesar das influências externas. Ainda assim, me pergunto o quão mais longe elas não poderiam ir caso crescessem num ambiente propício, que potencializasse esses dons desde os primeiros anos.
Na maioria dos casos, os grandes artistas de sua época não são essas flores solitárias que brotam no meio de um deserto, e sim o resultado de um longo processo de seleção natural, dentro de uma área onde existe um grande mercado e muitas pessoas de talento competindo para se destacar (especialmente quando estamos falando de artes como cinema, que exigem grandes investimentos e a colaboração de inúmeros profissionais — é mais fácil para um escritor ou pintor ir contra as tendências do momento do que para alguém que precisa de milhões de dólares para produzir um filme).
Você não terá esse grande mercado e essa seleção natural acontecendo em áreas ignoradas ou desprezadas pela cultura. Nem em valores considerados “fora de moda”. Você só terá isso no que for considerado “quente” no momento, no que for “cool”, popular, no que inspirar na população um real senso de possibilidade, de reconhecimento, de sucesso prático e comercial.
No Brasil, nós nunca tivemos, por exemplo, um solo fértil para o surgimento de grandes diretores de cinema, pois este é um mercado bastante limitado. Agora pense no futebol: quantas crianças estão neste momento praticando, competindo, com ídolos como Pelé e Neymar em mente, e que daqui a alguns anos poderão estar entre os melhores jogadores do mundo?
Quando a cultura ao seu redor celebra aquilo que você tem a oferecer, isso te dá um incentivo único para desenvolver suas habilidades. A possibilidade de sucesso se torna algo palpável, real. Você vê diversas pessoas se destacando na sua área, e isso te estimula, faz você querer praticar, se tornar melhor, além de te dar referências nas quais se inspirar. Sua energia criativa está alinhada com a energia da cultura, e com isso o universo conspira a seu favor.
Se aquilo que você tem a oferecer é desprezado pela cultura ao seu redor, se você só enxerga cinismo, críticas e fracasso comercial pela frente, você dificilmente investirá o esforço necessário para se tornar um mestre naquilo (e dificilmente os outros investirão em você também). Você pode tentar se adaptar, tentar fazer o que a cultura está encomendando, mas dificilmente se sairá tão bem quanto se estivesse alinhado com suas sensibilidades e dons naturais.
O espírito de uma época é definido pelas ideias e pelo Senso de Vida predominante em determinada cultura, num determinado momento. No período Idealista dos anos 70–90, o atraente era projetar alegria, ambição, individualismo. E então todo mundo saiu na corrida para expressar esse tipo de coisa (honestamente, ou por puro pragmatismo, só porque era o que estava vendendo). Isso criou um mercado, um processo de seleção natural, e a partir daí surgiram vários artistas talentosos produzindo esse tipo de entretenimento.
Há 30, 40 anos atrás era muito mais fácil criar Idealismo, pois essa era a mentalidade padrão no meio artístico. Em um ano qualquer como 1990, vimos vários filmes de sucesso alinhados com o Idealismo: Ghost: Do Outro Lado da Vida, Louca Obsessão, Esqueceram de Mim, Uma Linda Mulher — nem todos esses filmes eram obras-primas necessariamente, nem todos eram dirigidos por cineastas autorais, Idealistas convictos, mas eram filmes muito bons, que funcionavam, pois a cultura toda estava alinhada com esses valores: os roteiristas tinham uma mentalidade Idealista, assim como o compositor, o produtor de elenco, o fotógrafo, o figurinista, o eletricista etc. O movimento da autoestima estava em alta no mundo da psicologia, autores como Robert McKee faziam um enorme sucesso em Hollywood com suas palestras sobre técnicas de roteiro, resgatando princípios aristotélicos. Esses valores e técnicas estavam no ar, o artista não precisava lutar e tropeçar a cada etapa e em cada detalhe da produção para atingir um bom resultado, desafiando o senso comum e tendo que explicar o óbvio.
Hoje está todo mundo numa corrida na direção oposta. O importante agora é se posicionar politicamente, discutir questões sociais — não só as pessoas que de fato têm algo a dizer sobre o assunto, mas também pessoas que jamais tocariam nessas questões, e só o estão fazendo pois é o que está dando resultados (há sempre o fenômeno dos artistas camaleões, aqueles que vão trocando de valores e princípios a cada década na tentativa de se manterem relevantes). Os valores são outros, e as expectativas em relação à habilidade e à performance também são outras. Então se você resolve criar algo que vai contra essas tendências, você tem que ser dez vezes mais persistente, dez vezes mais forte, pois você não tem a força da cultura inteira trabalhando a seu favor.
Pense no que seria de Spielberg se ele estivesse começando sua carreira nos dias de hoje. O que ele faria com seu talento natural para criar otimismo, celebrar o espírito da juventude — um dom que estava em demanda nos anos 80, mas não está mais atualmente? Ou pense no que seria de Christopher Nolan se ele tivesse começado sua carreira no início dos anos 80. O que ele faria com sua visão de mundo sombria e sua inclinação para o Subjetivismo, narrativas não lineares, numa época em que nada disso estava em alta?
No mundo do cinema sempre existem exceções, e todo ano sai um punhado de filmes que mostram que é possível realizar algo Idealista com qualidade de produção, e até mesmo obter sucesso comercial, mesmo quando a cultura não está favorável a isso. A Travessia (2015) de Robert Zemeckis foi um bom exemplo, assim como o talentoso O Retorno de Mary Poppins (2018), Missão: Impossível – Efeito Fallout (2018), Ford vs. Ferrari (2019), e até no gênero de super-heróis tivemos um exemplo positivo de heroína com o primeiro Mulher Maravilha (2017), que não precisou apelar para o trágico e decadente para fazer sucesso. Mas são filmes que acabam sendo abafados pelo barulho de filmes como Coringa (2019), que roubam a maior parte da atenção, conquistam todos os grandes prêmios e estabelecem o tom da cultura que vivenciamos no dia a dia. Enquanto essa situação não se inverter, não veremos uma mudança real na cultura em direção ao Idealismo.
Claro que, individualmente, nós não precisamos aguardar a cultura inteira mudar para começarmos a viver nossas vidas, apreciar valores positivos, produzir aquilo que queremos produzir. Há sempre algum público para coisas bem-feitas, e há sempre uma maneira de passar sua mensagem e ser bem-sucedido, mesmo que você esteja indo contra os modismos do momento. A cultura pode apenas tornar esse processo mais fácil ou mais difícil.
É bom lembrar também que a “cultura” não reflete necessariamente os verdadeiros valores da população, pois ela é guiada principalmente por uma elite intelectual influente e barulhenta que nem sempre está de acordo com os interesses do público, e cujos líderes costumam ser bem piores ideologicamente do que o cidadão comum. O fato da maior audiência do Oscar ter sido em 1998 quando Titanic ganhou, e a menor de todos os tempos ter sido em 2020, no ano de Parasita, talvez sugira que não é necessariamente o público que esteja pedindo o Anti-Idealismo atual do entretenimento. Vejo muitas matérias todos os anos falando sobre o declínio da indústria, sobre as pessoas estarem indo cada vez menos ao cinema e dando preferência a ver filmes em casa. Não poderia ser porque os filmes estão cada vez mais tediosos? Não é mais um sinal de que o público no fundo não está tão de acordo com a direção atual da cultura? A teoria de muitos hoje é que apenas produções gigantes como as da Marvel serão exibidas nos cinemas no futuro, e que filmes médios e pequenos irão direto para streaming. Mas não existe uma relação necessária entre o tamanho de uma produção e seu potencial de bilheteria. Hoje talvez exista, pois praticamente todos os filmes são fracos, genéricos, não têm um verdadeiro apelo em termos de entretenimento, portanto, os únicos que conseguem atrair públicos enormes são esses que investem centenas de milhões em publicidade, elencos estelares, que são sequências e remakes grandiosos que o espectador sente que tem que ver mesmo que o filme em si seja uma chatice. Mas, ao longo da história, produções de médio porte sempre estiveram entre as maiores bilheterias do ano — pois tinham ótimos roteiros, boas ideias, atores talentosos e carismáticos. Em 1993, Jurassic Park – Parque dos Dinossauros foi a maior bilheteria, mas no Top 5 também estavam filmes como Uma Babá Quase Perfeita e Sintonia de Amor, produções bem menores. Se filmes como esses saíssem hoje, será que eles iriam direto para o streaming só por não serem superproduções, mesmo tendo o potencial para estarem entre os cinco maiores fazedores de dinheiro do ano? Claro que não, acredito que as pessoas estariam interessadas em vê-los no cinema. Filmes “grandes” sempre têm mais espaço em salas de cinema do que filmes pequenos, claro, mas o que define “grande” e “pequeno” não é o orçamento do filme, e sim seu valor de entretenimento.
Com o tempo, o zeitgeist irá mudar, como sempre acaba mudando. Muitas forças contribuem para isso — eventos globais, guerras, inovações tecnológicas, a dinâmica natural entre uma geração e a geração seguinte. Mas mudanças desse tipo também se devem a indivíduos, criadores, visionários, pessoas que não se enquadram totalmente nas tendências, que não querem apenas ir com o fluxo, e que persistem com suas visões sem perguntar para o público se eles estão preparados para o que eles têm a oferecer.
Ao longo do livro, citei muitas vezes Walt Disney, Steven Spielberg e Michael Jackson, que considero três dos grandes alicerces do Idealismo e do entretenimento americano. Eles certamente se inspiraram em artistas que vieram antes, mas o que eles trouxeram para o entretenimento foi além do que já existia. Quando pensamos em suas criações, e no que existia antes deles surgirem, não encontramos nada igual, nada no mesmo patamar. Entre as referências que eles pegaram, e aquilo que eles criaram, houve uma fagulha, e com essa fagulha eles mudaram a direção da cultura, criaram um novo padrão para a indústria, abriram os olhos dos espectadores para novas possibilidades, para experiências nunca antes imaginadas, e influenciaram tudo o que veio depois.
Uma nova era Idealista eventualmente irá surgir, liderada por indivíduos como esses — criadores insatisfeitos com a cultura do momento, que irão olhar para o passado, resgatar o que havia de bom, aperfeiçoar o que pode ser aperfeiçoado, acrescentar suas novas descobertas, e levar o entretenimento para o próximo estágio de evolução. Pode demorar mais 5, 10, 15 anos, mas essa era inevitavelmente virá, pois o ser humano sempre terá um apetite por felicidade, por prazer, e pelos valores que os tornam possíveis. Este livro é destinado a essa próxima geração de artistas, e a cada membro da plateia que, apesar de todos os ataques e de todas as pressões promovidas pela cultura cínica das últimas décadas, conseguiu manter sua visão do ideal inabalada.
(Capítulo 29 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
Esportes não são arte, mas podemos aprender muito com eles quando paramos pra pensar no que é que atrai tantos espectadores a eventos esportivos, e o que é que faz eles se emocionarem tanto em uma partida.
Não sou um grande fã de futebol, mas vou usá-lo como referência para essa analogia. Pense no poder do futebol de prender a atenção dos espectadores, de fazê-los torcer, vibrar. Se você analisar uma grande partida, em retrospecto veremos que o que a tornou uma experiência memorável tem muito a ver com os princípios do Idealismo.
Vamos pensar no que atrai inicialmente uma pessoa a um jogo de futebol. Uma das motivações mais básicas é o desejo de ver o time dela sendo vitorioso — a possibilidade de vitória, de ver seu jogador favorito realizando grandes jogadas, demonstrando seu talento. Tudo isso tem a ver com emoções de orgulho e admiração, relacionadas ao pilar da Autoestima (no cinema, sentimos isso através dos heróis, por exemplo).
Se no futebol queremos ver nosso jogador favorito realizando um belo gol, no cinema também queremos ver os “gols” dos heróis, momentos em que eles realmente se superem e provem suas capacidades — pense no momento em que Henry Fonda tira o canivete do bolso no momento icônico de 12 Homens de Uma Sentença (1957). Nos filmes, há também os “gols” dos cineastas: quando vemos o famoso assassinato no banheiro em Psicose (1960), por exemplo, a cena é tão bem concebida, tão bem editada e inovadora, que, para o cinéfilo, é como ver um gol de Hitchcock — algo que pode ser ainda mais inspirador do que o “gol” do personagem apenas, afinal, as realizações dos personagens são fictícias, inventadas, mas as realizações do artista estão acontecendo de fato no mundo real. Certos filmes conseguem criar algo raro, que são momentos que funcionam como “gols duplos”, unindo num mesmo momento uma façanha do personagem com uma façanha do cineasta — um momento em que algum personagem realiza um feito impressionante, ao mesmo tempo em que a cena nos impressiona pela maneira como foi realizada. Pegue, por exemplo, o primeiro encontro com o brontossauro em Jurassic Park – Parque dos Dinossauros (1993). Ali vemos claramente um gol de Hammond na história, que surpreende seus convidados com sua incrível criação. Mas ao mesmo tempo é um gol do cineasta, pois para poder mostrar os dinossauros de Hammond, Spielberg precisou realizar uma façanha à altura, desenvolvendo um efeito especial revolucionário nunca antes visto pelo público. Se os queixos caídos de Laura Dern, Jeff Goldblum e Sam Neill são direcionados ao dinossauro apenas, o queixo caído da plateia serve tanto para a façanha de Hammond na história quanto para a façanha de Spielberg.
Este sentimento de admiração é fundamental no entretenimento. Imagine no futebol, por exemplo, se os jogadores fossem medíocres, não tivessem habilidades muito diferentes das do espectador médio (seguissem a premissa do Naturalismo). Não haveria a menor graça. Quanto melhores e mais virtuosos os jogadores, mais atraente é a partida.
Agora vale lembrar que mesmo quando estamos diante do melhor jogador do mundo, ele nunca parece indestrutível, uma máquina perfeita sem qualquer tipo de vulnerabilidade — no esporte há sempre a possibilidade de derrota, de falhas, o que torna a partida envolvente e o jogador mais fácil de se identificar. Heróis do cinema, como são fictícios e vivem num universo inventado, não nos passam esse senso de vulnerabilidade automaticamente. O roteiro precisa incluí-lo na história. Muitos filmes erram nessa questão para os dois lados: ou o herói não parece ter vulnerabilidade alguma, e a história perde todo o suspense, ou então a ênfase nas vulnerabilidades e fragilidades é tanta que o herói deixa de ser admirável.
A importância da partida também conta muito. É uma partida decisiva de um grande campeonato? Ou é apenas uma partida amistosa que não vale muita coisa? Uma final de Copa do Mundo certamente tem mais poder de emocionar do que uma pelada casual na praia. Isso também vale para um filme: quanto mais importantes forem os valores em jogo, mais interessante será a história. Se o objetivo do personagem é banal, pequeno, não apresenta grandes riscos ou recompensas, a história será tediosa.
O jogo é mais envolvente quando você torce para um dos times, do que quando são times desconhecidos e você está neutro em relação ao resultado. Da mesma forma, a história de um filme é mais envolvente quando você torce pelo personagem e sente que ele representa seus valores. Claro, no esporte, as pessoas se identificam com times muitas vezes por questões arbitrárias, subjetivas: por ser o time de sua família, de seu país (esse elemento tribal, coletivista, é um dos motivos que me impedem de levar esportes tão a sério — normalmente só consigo torcer por atletas individuais que admiro, mas não me apegar a times particulares). Quando seu time ganha, embora você possa sentir que o bem venceu contra o mal, na realidade, não foi isso que aconteceu (nunca houve um jogo como “Corinthians vs. Estupradores”). Portanto, o esporte exige um certo nível de racionalização e Subjetivismo nesse ponto. Em um filme, no entanto, se o herói vence, isso de fato pode representar uma vitória do bem contra valores negativos.
Objetividade no futebol também é fundamental. Tudo tem que estar sendo comunicado de maneira clara e inconfundível para o espectador. Precisamos saber claramente quem é de um time e quem é de outro. Se os uniformes dos dois times forem iguais, a narrativa será fortemente prejudicada. O relógio mostrando quanto tempo falta para acabar a partida tem que estar evidente na tela. A filmagem tem que ser absolutamente clara — temos que ter uma perfeita noção espacial, saber onde estão os times, onde está a bola em relação aos gols, e temos que poder enxergar a bola claramente antes de mais nada (imagine se a bola fosse verde e difícil de diferenciar do gramado).
O esporte é um evento puramente físico. No cinema, a Objetividade é fundamental não apenas no nível concreto, visual (na filmagem de uma cena de ação, por exemplo), mas também num nível mais abstrato, em relação às ideias que o diretor deseja transmitir para o espectador (qual o significado por trás de certas cenas, qual a mensagem do filme, o que significam certos símbolos dentro da história etc.).
Um jogo de futebol tem metas claras e regras claras. O time tem que fazer gols, e quem fizer mais gols vence a partida. Claro que existem inúmeros detalhes, regras mais específicas, mas se o espectador entender apenas esse objetivo simples, ele será capaz de acompanhar a partida e se sentir envolvido. Num filme também — se o espectador entende qual o objetivo maior do personagem, seja um objetivo emocional ou concreto (e simpatizar por esse objetivo, torcer pelo personagem), ele não perderá o interesse na história. E quanto mais o espectador conhecer as regras do jogo, mais envolvido ele ficará. Num jogo de futebol, sabemos que existe um limite de tempo para o jogador atingir seu objetivo, sabemos que existem certas coisas que ele não pode fazer, se não será penalizado (como pôr a mão na bola). Quando assistimos a um esporte do qual não temos a menor noção das regras, o esporte se torna desinteressante, tedioso, pois não sabemos o que o jogador tem que fazer, o que o aproxima da vitória, da derrota etc. Num filme também temos que entender bem o objetivo e as regras do jogo pra ficarmos envolvidos, precisamos ter uma medida objetiva do progresso dos personagens, do quão próximos ele estão de uma derrota ou uma vitória, quais são as probabilidades etc. Imagina assistir Titanic sem que o diretor estabeleça para o público primeiro quanto tempo irá demorar para o navio afundar, quanto tempo falta para a chegada do resgate, o quão letal é a temperatura da água, quantos botes salva-vidas existem — o suspense diminuiria dramaticamente.
Em filmes de fantasia, a necessidade de se estabelecer esse tipo de regra é ainda mais urgente. Num esporte, como nós estamos no mundo real, automaticamente sabemos como certas coisas funcionam — a bola não vai violar as leis da física e se movimentar sozinha, os jogadores são humanos, portanto, possuem certos limites naturais etc. Agora se um filme te apresenta uma outra realidade, onde pessoas têm superpoderes, podem voar, é preciso reforçar as regras do jogo e deixá-las absolutamente claras. Se você não sabe o que um personagem pode ou não pode fazer, o que pode matá-lo ou não, do que seus poderes são capazes, o que representa um grande feito, uma ação virtuosa, admirável ou um feito comum, você ficará tão entediado quanto assistindo a um esporte estranho do qual você desconhece as regras.
No futebol existe conflito, obstáculo. O time adversário está ali para agir contra os interesses dos jogadores. Quanto maiores os conflitos, mais dramática é a situação. Se um grande time joga contra um time medíocre, amador, que não representa nenhuma ameaça, a situação é menos envolvente. Num filme, se os obstáculos do personagem são fáceis demais, se o vilão não soa forte ou ameaçador, o interesse se perde e a vitória dele não é tão satisfatória.
Em relação ao Princípio da Ascensão, o futebol não tem uma estrutura fixa. Tudo pode acontecer dentro de um jogo. Ele pode começar mais interessante e se tornar monótono, ou pode começar monótono e ir ficando mais interessante. Não existe uma narrativa planejada. Mas se pensarmos nos jogos que são considerados muito bons vs. jogos considerados fracos ou frustrantes, veremos que o Princípio da Ascensão também se aplica aqui. Um jogo que começa morno, mas vai melhorando, ficando cada vez mais competitivo, intenso, e tenha um final inesperado e espetacular, é muito mais memorável do que um jogo que tenha seu ápice nos primeiros minutos, e a partir daí fique monótono, previsível, e não tenha mais nenhum gol ou jogada interessante (lembrando que não necessariamente seu time precisa vencer para ser um bom jogo; desde que ele tenha grandes momentos, jogadas fantásticas, jogadores interessantes — afinal, o que mais importa é a qualidade da experiência, a jornada em si, não apenas o resultado final — assim como um filme pode até terminar com a morte do personagem, chegar a uma conclusão pessimista, mas a experiência como um todo ter sido inspiradora e memorável).
(Capítulo 20 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
Se, por um lado, o Idealismo pode ser corrompido por causa de conflitos internos dentro dos artistas (como vimos no capítulo anterior), isso pode acontecer também de forma mais consciente e intencional. Não só no caso de Anti-Idealistas convictos, artistas que produzem obras abertamente hostis aos valores do Idealismo e não têm problema algum em admitir isso (o que é mais respeitável), como também por uma estratégia menos honesta: Anti-Idealistas que se infiltram em instituições associadas ao Idealismo com o intuito de modificá-las e destruí-las por dentro, numa espécie de Cavalo de Troia ideológico.
Os exemplos que vou usar aqui podem soar parecidos com o Idealismo Corrompido, mas eles são ataques que vêm de outra direção, e com uma outra intenção — e se quisermos proteger o Idealismo de seus críticos, é preciso entender a diferença entre cada uma dessas mentalidades.
Anti-Idealistas desse tipo muitas vezes não se contentam apenas em promover seus ideais dentro de suas esferas, em seus próprios filmes e produções originais — eles precisam atacar o Idealismo na cultura toda e impedir que ele tenha influência sobre as pessoas. Não basta eles criarem seus próprios anti-heróis em seus próprios filmes. Eles precisam pegar heróis já estabelecidos e celebrados como Superman, Luke Skywalker ou James Bond, e daí fazê-los agir de forma anti-heroica. Não basta eles expressarem suas visões pessimistas de mundo em suas próprias histórias — eles precisam se infiltrar na Disney, por exemplo, e fazer filmes da Disney passarem a mensagem de que agora os sonhos não se tornam mais realidade. Ou então se infiltrar em gêneros populares como musicais, faroestes ou ficção-científica, e fazerem uma “releitura” desses gêneros. Ou fazer biografias de grandes figuras do passado, celebridades ligadas ao Idealismo, não para celebrar suas virtudes, mas para expor seus podres, manchar suas reputações. Não basta eles criarem suas próprias premiações, que irão prestigiar filmes Naturalistas ou de cunho político — eles querem que o Oscar passe a premiar filmes desse tipo, em vez dos que costumava premiar.
Eles precisam se infiltrar em tudo o que representa o Idealismo: obras, marcas, personagens, franquias — tudo aquilo que criou as referências Idealistas da sociedade atual — para daí subvertê-las, modificá-las, inserindo valores Anti-Idealistas e fazendo o público acreditar que os tempos mudaram, que o que funcionava no passado não funciona mais hoje, que há algo intrinsecamente errado e imoral a respeito do Idealismo, que é hora das pessoas abandonarem seus sonhos e ideais “ultrapassados” (ignorando, por exemplo, que a cultura está sempre oscilando e não existe uma única direção para qual ela inevitavelmente caminha — nos anos 60/70 tivemos uma era predominantemente Anti-Idealista, e isso não impediu que nos anos 80 a cultura se voltasse para outra direção).
É claro que a cultura evolui, e que alguns valores do passado devem sim ser repensados e rejeitados, mas estes nada têm a ver com os valores essenciais do Idealismo. Pode parecer que os Anti-Idealistas rejeitam apenas os valores ultrapassados, mas, na realidade, são os valores essenciais que eles rejeitam.
Anti-Idealistas estão sempre brigando por diversidade no entretenimento, querendo modificar arquétipos como os das Princesas Disney, ou o do James Bond. O que muitos não enxergam é que o que eles rejeitam em figuras como James Bond não é o fato dos personagens não representarem minorias, mas o fato deles incorporarem valores Idealistas. Já tivemos diversos casos onde barreiras desse tipo foram quebradas, mas isso ainda não pareceu ser o bastante. Whitney Houston, por exemplo, foi uma das maiores estrelas da história da música, mas o fato dela ser negra não deu fim às queixas dos Anti-Idealistas. Whitney era muito bonita, muito virtuosa, muito otimista, muito americana — e por isso, os incômodos associados ao Idealismo não sumiram, levando muitos a criticá-la. O que esse público deseja no fundo é eliminar o Idealismo, e em muitos casos a bandeira da diversidade serve apenas como uma camuflagem para a causa parecer mais nobre. Como o espectador honesto não é preconceituoso, não quer se sentir imoral, ele é levado a concordar com essas exigências, sem perceber que ele está comprando um pacote com duas coisas distintas, uma boa e a outra nociva, como se fossem parte de uma coisa só.
Os valores mais atacados pelos Anti-Idealistas são os relacionados a Autoestima e Benevolência, que são os dois pilares com mais carga emocional e moral. Eles frequentemente irão expressar antipatia por ideias como: orgulho, ambição, heroísmo, força, sucesso, riqueza, fama, beleza, habilidade. Ou então: otimismo, felicidade, inocência, pureza de caráter, julgamentos morais, certo vs. errado, bem vs. mal.
É importante notar que muitas dessas coisas, quando interpretadas de maneira errada, podem de fato ser ruins. Por exemplo: enquanto autoestima é um conceito positivo e saudável, o narcisismo ou a arrogância já não são (e não são “excesso” de autoestima, mas, sim, a falta dela). Enquanto o otimismo é algo positivo, uma pessoa superficial e tola não é (e não permanecerá otimista por muito tempo quando as consequências de sua tolice vierem cobrar o preço). Enquanto riqueza é algo bom, ficar rico roubando, sendo corrupto e desonesto não é (e nem fará a pessoa ter uma real qualidade de vida) — e por aí vai.
Então se você quer criticar a arrogância, por exemplo, é importante deixar claro que o que você está atacando não é o conceito de autoestima, e sim o “mau uso” dela (uma boa forma de fazer isso é incluindo na sua história um exemplo positivo de autoestima, contrastando com o exemplo ruim). Quando a pessoa não faz isso, quando ela não deixa claro o que ela está atacando e o que ela está defendendo, deixando a crítica vaga e sem definições, provavelmente é porque ela deseja atacar o valor positivo em si, e está motivada por ressentimento, preconceito e outros sentimentos destrutivos.
Os Anti-Idealistas raramente fazem ataques a essas ideias de maneira direta, pois ficaria óbvio que suas intenções não são tão boas. O jeito então é esconder o ataque por trás de algo mais aceitável: vamos supor que você tenha um certo desprezo por pessoas bem-sucedidas. Se você disser por aí “eu odeio o sucesso”, provavelmente você não será muito respeitado. Mas se você disser “eu odeio a ganância” e caracterizar todas as pessoas de sucesso como corruptas, imorais, de forma generalizada, juntando as duas ideias num mesmo saco, você parecerá moralmente respeitável, e ainda conseguirá causar o dano no seu verdadeiro alvo: as pessoas de sucesso.
Essa é a essência do Anti-Idealismo, e se o entretenimento quiser sobreviver, é esse tipo de mentalidade e suas estratégias sorrateiras que precisam ser compreendidas e combatidas.
A dificuldade é que hoje em dia as pessoas estão tão habituadas ao Anti-Idealismo que elas o enxergam apenas como o senso comum, como a mentalidade padrão dos filmes, séries de TV e músicas, e não como a coisa destrutiva que estou sugerindo (especialmente as gerações mais jovens que já cresceram com essas referências).
Se um filme como Star Wars: Os Últimos Jedi (2017) tivesse sido lançado há 40 anos, por exemplo, as pessoas ficariam completamente indignadas. Mas hoje, após anos e anos de erosão do Idealismo, o público acha perfeitamente aceitável que, na primeira sequência do filme, ao receber o sabre de luz das mãos de Rey, Luke Skywalker o jogue para trás como se fosse uma casca de banana. Em O Retorno de Jedi (1983), há um momento em que Luke também joga fora o sabre. Mas vejam a diferença na intenção: ali, Luke estava sendo manipulado pelo vilão para lutar contra seu pai (Darth Vader), se render ao ódio, o que o faria passar para o lado negro da Força. Então, quando ele arremessa o sabre, isso significa uma resistência contra o lado negro — um ato que reforça seu heroísmo e sua benevolência. Já em Os Últimos Jedi, ele simplesmente joga fora o sabre como um pedaço de lixo, demonstrando desprezo pelo objeto em si. O sabre de luz é um enorme símbolo da franquia, algo que nos remete à nobreza dos Jedi, à habilidade, e à virtude. Quando Luke o arremessa daquela forma, a mensagem do filme fica clara: heróis são coisa do passado, agora nada mais pode ser nobre e heroico — nem o sabre, nem os Jedi, e nem Star Wars. E o resto do filme irá apenas reforçar isso.
Fico pensando também no quão incompatível seria uma personagem como a Elsa de Frozen: Uma Aventura Congelante (2013) com a Disney do passado (a Disney da era clássica ou do Renascimento do final dos anos 80). Elsa não foi a primeira Princesa Disney a ter uma vida difícil, cheia de sofrimento. Cinderela era abusada, humilhada, feita de empregada pela própria família. Mas Cinderela, apesar de tudo, mantinha sua pureza de caráter, sua esperança, sua atitude benevolente. Elsa é um reflexo dos anos 2010, pois, ao contrário de Cinderela, ela tem seu espírito quebrado. Ela se torna rancorosa, agressiva, sombria, passa a criar conflitos desnecessários com os outros, é mostrada como vítima — e o filme quer que a gente simpatize com ela justamente por suas falhas e perturbações. Embora seja vista como uma princesa empoderada por alguns, Elsa, na verdade, é muito mais frágil e indefesa que Cinderela nesse sentido. Ela vem para desconstruir o conceito de Princesa Disney, e mostrar o lado não tão positivo do ser humano e da vida. Elsa não apresenta apenas desvantagens e vulnerabilidades —, mas é uma personagem com certos problemas de caráter. Ela é parte boa, e parte má. Tem atitudes em relação à irmã Anna que são totalmente desnecessárias, agressivas, motivadas por ressentimento e crueldade: por exemplo, quando impede Anna de se casar sem nem ter motivos ainda para suspeitar de seu noivo. “Como assim ela quer se casar com alguém que conheceu há poucos dias? Não existe tal coisa como amor à primeira vista! A vida não é tão simples!”. De fato, Elsa foi escrita originalmente para ser a vilã do filme, mas no meio do processo resolveram torná-la a protagonista — fizeram algumas alterações no roteiro, tornaram ela “do bem”, mas sem apagar completamente os traços da vilã que ela deveria ter sido.
Se Frozen, com suas canções divertidas e cenários atraentes, ainda pode parecer como um caso mais perdoável de Idealismo Corrompido, o mesmo já fica difícil de ser dito de um filme como Viva: A Vida é uma Festa (2017). Na animação, Miguel é um garoto mexicano pobre, simples, mas com um grande sonho: se tornar um músico de sucesso como seu ídolo Ernesto de La Cruz. Sua família é contra a ideia dele ser músico, e a princípio nós, na plateia, achamos que isso será apenas um artifício de roteiro para criar conflito e gerar um final emocionante, quando Miguel finalmente se tornar um sucesso e provar que estavam todos enganados sobre ele. Não é bem isso que acontece. Ao longo da trama, Miguel irá descobrir que seu ídolo Ernesto na verdade é um grande monstro, que para conquistar seu sucesso ele foi cruel com sua família, roubou e até matou. O pequeno Miguel, no fim, então aprende que ambição é algo perigoso, que pessoas bem-sucedidas tendem a ser más, desumanas, e que abrir mão de seus sonhos pra viver uma vida humilde e simples é um ato belo e admirável. Se você perguntar a uma criança se ela preferiria ver um filme sobre pessoas vivas, atraentes, habilidosas, num lugar rico, exuberante, buscando e atingindo seus sonhos — ou um filme sobre pessoas mortas, comuns, sem grandes habilidades, num vilarejo humilde, aprendendo a abrir mão de seus sonhos, o que você acha que ela escolheria? A Disney de hoje parece achar que seria a segunda opção, mas é difícil de imaginar uma história que subverta de maneira mais completa todos os valores originais de Walt Disney.
Quando adolescente eu esperava o ano todo para assistir a cerimônia do Oscar, e por mais longas que fossem as festas, eu ainda gravava tudo em VHS para poder assisti-las de novo diversas vezes ao longo do ano. A mais grandiosa e memorável de todas pra mim tinha sido a festa de 1998 quando Titanic venceu 11 prêmios, que, por sinal, foi a cerimônia com a maior audiência da história. Naquele ano, comprei um pôster comemorativo da Academia que tinha minicartazes de todos os vencedores do Oscar desde sua origem. Meu plano era atualizar esse pôster a cada década para mantê-lo em dia — mas, 10 anos depois, o Oscar já não era o mesmo. Vencedores como Onde os Fracos Não Têm Vez (2007) ou Quem Quer Ser Um Milionário? (2008) davam um ar totalmente diferente à premiação. 10 anos depois, o Oscar estava ainda mais distante de seu espírito original, e no fim, o pôster do Oscar na minha parede continua sendo o mesmo: começando em Asas (1927) e terminando em Titanic (1997). Enquanto os festivais europeus sempre celebraram o cinema Anti-Idealista, o Oscar (em sua intenção original) era predominantemente voltado para o Idealismo. Mas isso foi mudando ao longo dos anos 2000 e 2010, e passamos a ver uma presença cada vez maior de Anti-Idealismo nos filmes indicados ao Oscar. Antigamente, você raramente veria o Oscar consagrando os mesmos filmes que os festivais de Veneza e Cannes — eram eventos completamente antagônicos. Mas pegue vencedores recentes desses festivais europeus: Coringa (2019), Parasita (2019), Roma (2018), A Forma da Água (2017) — todos foram grandes favoritos ao Oscar também e chegaram a vencer o prêmio de Melhor Filme. E não foi a Europa que se aproximou do gosto americano, mas o contrário.
É irônico que um cineasta estrangeiro como Guillermo del Toro, por exemplo, possa ir aos EUA, fazer um filme abertamente crítico à cultura americana como A Forma da Água, e ainda receber o prêmio máximo da Academia por isso. Se analisarmos superficialmente, a trama de A Forma da Água (2017) parece derivada de filmes como E.T.: O Extraterrestre (1982): um humano e uma criatura de outro mundo se encontram, formam uma grande relação de afeto, e a partir daí o humano precisa ajudar a criatura a escapar e a voltar para sua casa antes de ser capturada pelos humanos exploradores. O filme pega elementos de um gênero associado ao cinema americano, ao Idealismo, mas não com a intenção de proporcionar escapismo, diversão, fazer a gente acreditar na história, torcer pelo romance, sonhar —, e sim para subverter o gênero. Nada relativo à ação de fato importa em A Forma da Água. O enredo é apenas um veículo para o comentário político-social, que é o verdadeiro produto do filme. O que as pessoas gostam em A Forma da Água não é a fantasia em si, a aventura, mas as críticas ao Idealismo e aos símbolos da América.
Curiosamente, quando Guillermo del Toro subiu ao palco para receber o Oscar de Melhor Filme por A Forma da Água, ele poderia ter escolhido qualquer coisa para falar, poderia ter agradecido qualquer pessoa, mas o que ele fez, surpreendentemente, foi expressar toda sua admiração pelo cinema americano, dizer como ele foi inspirado, quando criança, no México, por filmes como E.T. de Spielberg, cineastas como William Wyler, Frank Capra — ou seja, pelo Idealismo. Parece contraditório, mas, na verdade, este é um padrão bastante comum — quase todo artista que age para destruir o Idealismo, originalmente, era um grande admirador do entretenimento americano.
Spielberg, com sua gentileza às vezes excessiva, disse a Del Toro antes da cerimônia que se ele ganhasse o Oscar, ele faria parte deste mesmo legado de cineastas e deveria se orgulhar. Del Toro parece ter ficado honrado com a “bênção”, mas ela foi baseada em um grande equívoco. O Oscar ganhou seu status e sua reputação ao longo da história por causa dos valores que ele representava. Por ser um símbolo de glamour, talento, por premiar filmes grandes, que inspiravam o público, que uniam sucesso comercial a sucesso de crítica — é a associação do Oscar a valores Idealistas e ao espírito americano que o tornou a estatueta mais cobiçada do mundo. Se desde o início o Oscar se parecesse com o festival de Cannes, ele jamais teria alcançado esse mesmo status na cultura. Então, ganhar um Oscar, hoje, quando seus critérios se tornaram totalmente opostos aos do passado, não tem o mesmo significado de ganhar o Oscar na época em que Wyler ou Spielberg ganharam.
Lista — Exemplos de Anti-Idealismo (e Idealismo Corrompido) no cinema: https://boxd.it/tsusC
(Capítulo 28 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
Neste livro não irei discutir como o Idealismo se aplica a todas artes, mas a música (em particular a música popular), assim como o cinema, é uma das artes mais influentes na cultura e uma das mais presentes na vida das pessoas, então, acho importante dar algumas indicações de como as ideias apresentadas no livro se aplicam a este contexto.
A primeira coisa que deve ficar clara é que não deveríamos pensar em música popular como “música” do mesmo jeito que pensamos a respeito de música clássica (apenas em termos de elementos sonoros). A música popular é um conglomerado de artes e criações, assim como o cinema, e se comunica com o espectador via múltiplos canais: visual, sonoro, verbal etc.
O ASTRO
Ainda que a composição seja o elemento mais fundamental de uma obra musical (assim como podemos dizer que o roteiro é a peça mais fundamental de um filme), o artista (o cantor ou a banda) tem um impacto fundamental sobre uma música, assim como o ator/personagem principal tem sobre um filme. Como disse no capítulo “As 5 Histórias Idealistas”, para querermos acompanhar uma história, primeiro precisamos nos identificar com um personagem gostável. Se você detesta o personagem, por melhor que seja a história, ela não terá um impacto tão forte sobre você. Na música popular, o cantor é como o protagonista da história, e sua identidade irá colorir toda a experiência, de forma que fique difícil de separá-lo da música em si.
Mesmo quando estamos apenas escutando uma música, sem referências visuais, em geral temos uma imagem mental de quem é o artista, de como é o clipe, a apresentação ao vivo, e isso define boa parte da nossa experiência. E mesmo quando nunca vimos o artista, ele já transmite inúmeras qualidades apenas pelo áudio, que irão sugerir uma personalidade e um estilo particular.
A música apenas não basta? Ela não é o bastante pra inspirar e dar prazer?
Sim, ela pode bastar. Mas, no contexto do Idealismo, a música, quando acompanhada de elementos narrativos, visuais, e da figura de um artista, tem o poder de proporcionar uma experiência ainda mais poderosa que a música pura, instrumental. E de todos esses elementos que vão além da música em si, nenhum é mais forte que a figura do artista. Então, assim como no cinema, queremos sempre astros protagonizando nossos filmes, atores com personalidades fortes, carismáticas, estes astros também são fundamentais na música para que ela consiga inspirar o espectador e criar experiências realmente impactantes (e quanto mais o artista refletir valores como Autoestima, Benevolência, mais ele estará em harmonia com os princípios Idealistas).
Além das qualidades visuais do artista, muitos valores já são transmitidos apenas através de sua voz. Não só através de seu timbre natural (que é algo não escolhido), mas daquilo que o artista escolhe fazer com seu instrumento vocal. Pela maneira como ele escolhe cantar, o artista pode projetar: força, controle, ambição, clareza, precisão, autoconfiança, alegria e intensidade. Mas também pode projetar: fragilidade, falta de ambição, amargura, imprecisão, cinismo, dor — muitos artistas distorcem de propósito suas vozes e cantam de maneira embolada, como se tivessem algum tipo de paralisia muscular, enfeiam conscientemente seus timbres para criar determinado efeito e transmitir um Senso de Vida mais malevolente.
Idealismo autêntico na música popular é algo raro hoje em dia, ainda mais que no cinema. Os poucos artistas pop que carregam um toque de Idealismo costumam cair na categoria do Idealismo Corrompido. Figuras como Bruno Mars e Lady Gaga têm talento, e certamente foram inspirados por artistas do período Idealista dos anos 70–90, porém eles raramente conseguem projetar os mesmos valores que seus ídolos. Acabam muitas vezes fazendo referência ao entretenimento do passado, mas incluindo uma atitude de cinismo, de autoparódia, homenageando e zombando simultaneamente do gênero, tratando aquilo como se fosse um guilty pleasure e não uma forma de arte importante e admirável. Assim como os super-heróis dos filmes atuais, eles não conseguem projetar uma verdadeira autoestima, livre de culpa, nem um verdadeiro senso de inocência ou otimismo. Eles não acreditam de fato nesses valores (ou não têm confiança o bastante para desafiarem o zeitgeist e irem contra o Anti-Idealismo da cultura atual).
Uma mistura de Idealismo com um Senso de Vida malevolente parece ser a norma do pop atual. As músicas muitas vezes irão expressar algo positivo através do arranjo, dos acordes ou da melodia, mas a letra será deprimente, assim como a atitude do artista, o clipe. Pegue o hit “Royals” da cantora Lorde — se a música fosse tocada no piano, sem a voz, sem a letra, ela poderia até dar a impressão de uma canção pop positiva, romântica, mas quando você acrescenta a letra, a performance, o arranjo, o clipe e todos os outros elementos, já se torna uma música sombria que reflete pessimismo e todas as desilusões da atual geração.
Outro perigo hoje é que a indústria descobriu que apenas o astro muitas vezes é o suficiente para vender e gerar sucesso comercial, independentemente da qualidade da música (mais uma vez, vemos não apenas uma perda de valores e ideais, como também uma perda de técnica e habilidade). O astro passou a ser o verdadeiro produto da música popular, e a música em si se tornou apenas uma trilha de fundo, um papel de embrulho para vender a personalidade. Boa parte do que faz sucesso hoje não é música de fato, são apenas sons bem produzidos que refletem certo estilo de vida e certa atitude. Então os artistas são como personagens carismáticos em um filme que não tem história — podem até vender, fazer sucesso momentâneo, mas logo se tornam descartáveis, pois o que faz um artista sobreviver ao tempo no fim das contas é a música — assim como um filme pode fazer sucesso por ser estrelado por certo ator, por ter um herói conhecido —, mas em pouco tempo ele se torna esquecido se não tiver um bom roteiro e uma boa história. Ou seja: ainda que o artista seja fundamental para a experiência, não devemos nunca colocar a música em segundo plano. É a união de um grande artista interpretando uma grande música que gera as melhores experiências.
ARTISTAS “COMPLETOS” VS. INTÉRPRETES
Assim como um filme tem mais força quando ele é a expressão autêntica de um artista central, um músico que é o criador de seus trabalhos também tem uma vantagem sobre cantores que são apenas intérpretes. A dificuldade na música é que é um feito extremamente raro um artista ter todas as qualidades que o tornam um bom intérprete (aparência, habilidades vocais, carisma) ao mesmo tempo em que ele tem todas as virtudes de um grande criador (especialmente no contexto do Idealismo, que exige que o artista tenha grandes habilidades físicas, uma personalidade magnética). Então, exigir que todo artista seja “completo” é quase como esperar que Arnold Schwarzenegger não apenas interprete o Exterminador do Futuro, mas também seja o roteirista e diretor do filme. São habilidades que nem sempre andam juntas. Quando acontece, é algo para ser admirado e aplaudido. Mas, na prática, muitas vezes os melhores artistas pop não são os verdadeiros visionários por trás de suas obras. E isso nem sempre diminui o impacto de seus trabalhos (especialmente quando o artista tem valores parecidos com os do trabalho que está apresentando, não é apenas uma marionete de um produtor fazendo algo contra seus princípios). Talvez Whitney Houston tivesse sido uma artista ainda maior se tivesse escrito todas as suas músicas —, mas ela é uma intérprete tão única e fenomenal que me parece quase uma heresia sugerir isso. O mais correto nessa situação me parece ser passarmos a ter uma apreciação maior pelo trabalho dos produtores musicais, e a enxergar a relação entre eles e o intérprete da mesma forma que enxergamos a relação entre heróis/atores e os diretores/produtores de um filme. É muito comum que os maiores Idealistas na música sejam os produtores, no fundo, não os artistas em si. Tanto que muitos artistas tendem a criar trabalhos mais Idealistas no início da carreira, quando primeiro explodem e ainda estão sob o comando de um produtor, mas depois de três, quatro álbuns de sucesso, quando ficam poderosos demais e decidem tomar as rédeas da própria carreira, começam a produzir trabalhos inferiores e menos positivos em espírito.
OS ELEMENTOS DE UMA BOA MÚSICA
Não tenho a pretensão de dar aqui uma aula de teoria musical, algo que não é minha especialidade, nem de dizer o que é esteticamente superior ou inferior nesta arte. Quero apenas dar uma noção básica de como enxergar a música por um prisma Idealista.
Lendo um livro sobre composição chamado How [NOT] to write a Hit Song! (de Brian Oliver) me deparei com um trecho que revela como mudanças no Senso de Vida de uma cultura se refletem em mudanças na composição:
Cada acorde tem um tom emocional diferente. Acordes maiores transmitem alegria, entusiasmo ou um sentimento positivo; acordes menores criam um senso de melancolia ou tristeza.
Em 2012, um estudo acadêmico revelou que o número de hits com acordes menores dobrou desde 1965, e menos canções de sucesso estão sendo escritas agora com acordes maiores.
O psicólogo musical E. Glenn Schellenberg e o sociólogo Christian von Scheve avaliaram mais de 1000 canções americanas que ficaram no Top 40 entre 1965 e 2012. O estudo mostrou que na segunda metade da década de 60, cerca de 85% das músicas que chegaram ao topo das paradas foram escritas no modo maior, mas no final da década de 2000, este número havia caído para apenas 43.5%. Assim como as letras das canções pop se tornaram mais autorreferenciais e negativas nas últimas décadas, a música também mudou — ela soa mais triste e mais ambivalente emocionalmente.
Em termos puramente musicais, nenhum elemento é mais básico e fundamental para determinar o Senso de Vida de uma música do que a progressão de acordes e as mudanças de acordes predominantes na obra. Acordes são mais importantes que a melodia nesse ponto: duas músicas com a mesma progressão de acordes, mas com uma linha melódica diferente, ainda costumam transmitir uma emoção parecida. Agora quando você preserva apenas a melodia, mas muda os acordes, você altera totalmente a emoção da música.
Os acordes se comunicam com nosso cérebro num nível primário, fisiológico, que transcende qualquer contexto social ou cultural — assim como um bebê, em qualquer parte do mundo ou época, já entende o que é doce ou amargo instintivamente antes mesmo de saber falar. Algumas mudanças de acordes são mais “doces” e prazerosas, outras são mais dissonantes, e incômodas — podemos dizer então que algumas progressões de acordes são mais Idealistas e outras menos Idealistas, se pensarmos que o objetivo do Idealismo é proporcionar uma experiência positiva para o espectador.
Se você vai de um acorde como o Dó Maior, por exemplo, e sobe um tom para um Ré Maior, você tem uma das mudanças mais prazerosas entre todas as combinações de acordes possíveis, que transmite um senso de harmonia e esperança (isso vale para qualquer mudança entre dois acordes maiores com uma distância de um tom). Algo quase tão positivo ocorre quando você parte de um Dó Maior e cai em um Fá Maior (ou seja, vai de um acorde maior, para outro acorde maior dois tons e meio acima). Já se você parte de um Dó Menor e sobe para um Fá Maior, você cria um clima de grandiosidade, um sentimento épico, também positivo, mas mais dramático do que o exemplo anterior, pois aqui você partiu de um acorde menor (que indica conflito) e foi parar em um acorde maior (mais ideal e harmonioso), sugerindo uma narrativa de superação. Outras mudanças de acordes já poderão transmitir sentimentos de conflito, melancolia, desencanto, e serão predominantes em músicas mais negativas. [confira minha tabela completa na postagem Emoções e Relações Entre Acordes]
Não sou contra o uso de acordes menores, da mesma forma que não sou contra momentos de tensão em filmes. Mas, assim como a tensão e a desarmonia não devem ser objetivo final de um filme, os acordes menores e as mudanças de acordes menos harmoniosas devem ser utilizados apenas como um contraste para as mudanças mais prazerosas, como um tempero — para tornar as músicas mais dinâmicas, mais ricas, e principalmente como forma de enfatizar os momentos mais prazerosos da música, realçando seu “sabor”.
Lembrando que a melodia também pode interferir muito no impacto dos acordes. Dependendo da linha melódica, uma sequência de acordes pode ter um efeito mais ou menos intenso. É muito poderoso, por exemplo, o uso das 2ªs, 4ªs e 6ªs notas (que não fazem parte da tríade básica do acorde) como forma de aumentar a emoção, dar um senso de intensidade — como se a tríade fosse pequena demais para conter as emoções do artista, e ele precisasse se “esticar” pra fora dela por um momento para expressar o que sente.
Música é algo complexo, e existem inúmeras maneiras de quebrar certas regras e ainda obter um resultado positivo. O importante é entender que música não é uma arte subjetiva, inexplicável. Se o público sente algo ouvindo uma música é porque elementos específicos na obra estão expressando valores e com isso estimulando esses sentimentos, de maneira verbal e não verbal, principalmente. Uma emoção (racional) só pode estar vindo da progressão de acordes, da melodia, dos timbres dos instrumentos, da letra, da performance do artista, ou de uma interação complexa entre todos esses elementos. Melodias estão fortemente vinculadas ao significado de sons na vivência humana, por exemplo. Melodias agudas, com notas curtas e rápidas, que nos remetem ao som de uma pessoa alegre, rindo, soarão mais divertidas do que melodias com notas longas, melosas, que se pareçam mais com o som de uma pessoa chorando. Notas graves e fortes soarão mais ameaçadoras do que notas agudas tocadas suavemente, afinal, este é o tipo de som que associamos a pais bravos, animais corpulentos e perigosos.
Conhecer contextos culturais pode ser importante para entendermos melhor uma determinada obra, mas a essência da música, quando compreendida objetivamente, é universal.
GÊNEROS MUSICAIS
Gêneros musicais costumam carregar um Senso de Vida próprio. A música Disco e a Motown, por exemplo, tinham algo de Idealista em suas essências: eram feitas com o intuito de dar prazer, criar um senso de alegria e excitação. Música Pop e Dance costumam ter um compromisso em entreter, criar uma energia positiva, mas já são mais abrangentes e variadas em termos de tom, e podem incluir artistas com diversos tipos de Senso de Vida, não apenas benevolentes. Bossa Nova, MPB, música folk (não coincidentemente, estilos bem populares nos anos 60) estão mais ligadas a valores Não Idealistas, e podem ser vistas como o equivalente ao Naturalismo no cinema. Música Country costuma ter toques de Naturalismo (principalmente nas letras e nas figuras dos artistas), mas melodicamente tendem a ser prazerosas, românticas e compatíveis com o Idealismo. Rock em geral valoriza virtuosismo, emoções intensas, mas transmite um Senso de Vida malevolente pela ênfase em agressividade, rebeldia, conflito, sentimentos de revolta, artistas que costumam criar uma persona decadente, mas existem exceções positivas (Rock lida bem com três dos quatro pilares, mas raramente expressa Benevolência). Rock Progressivo flerta com Experimentalismo/Subjetivismo e tende a ser Não Idealista. Rap/Hip-Hop quase sempre é Não Idealista, não só por transmitir uma visão negativa de mundo, mas também por colocar a comunicação verbal e o valor político/social da obra acima de (e em oposição a) prazeres musicais mais fundamentais (melodia, progressão de acordes, canto etc.) — traz um pouco da revolta do Rock, mas sem o mesmo respeito por habilidade e musicalidade.
A maioria dos princípios básicos do Idealismo podem ser aplicados à música. Vamos pegar o Princípio da Ascensão, por exemplo: de acordo com esse princípio, a obra deveria evoluir ao longo do tempo — dar um senso de que está crescendo em direção a um clímax, que está guardando o melhor para o final. Nos sucessos do passado, era comum você ter que esperar até o bridge ou o último refrão para ouvir seu trecho favorito da música — o momento mais virtuoso do vocalista, a variação mais bonita da melodia ou do arranjo. A música estava sempre evoluindo, apresentando novas ideias, novos prazeres — às vezes até durante o fade out, se você aumentasse o volume, era possível ouvir um último “momento”. Mas, alienados das necessidades básicas do público, muitos músicos hoje em dia ignoram esse princípio, e apenas seguem estruturas musicais clássicas (como a ABABCB: verso/refrão/verso/refrão/ponte/refrão), mas sem entender o porquê delas existirem e sem cultivar esse senso de evolução. O fato do refrão normalmente ser mais prazeroso que o verso geralmente já garante um elemento mínimo de ascensão em músicas populares. Mas se você ouve uma música até o primeiro refrão, hoje em dia, você provavelmente já ouviu tudo o que ela tem a oferecer em termos de energia e dinâmica. Os próximos versos e refrãos serão idênticos, “copiados e colados”, e não irão apresentar nada de novo ou de muito mais satisfatório musicalmente — você pode muito bem pular de faixa quando o primeiro refrão terminar que não irá perder nada.
Isso dificulta também a criação de ápices — instantes de puro êxtase e satisfação que é o que faz o espectador querer ouvir a música diversas vezes sem cansar, assim como grandes momentos e grandes cenas são cruciais em um filme.
Uma composição musical requer que você mantenha sua plateia mais interessada no que irá acontecer do que naquilo que está acontecendo agora. Mesmo quando um momento maravilhoso está ocorrendo numa canção, os ouvintes estão subconscientemente aguardando o próximo “momento”. É isso que significa construir energia ao longo de uma música, e é isso o que chamamos de “forma”. É indicar sutilmente que algo de bom irá ocorrer. Esse senso constante de antecipação é crucial. Seja na letra, na instrumentação, na dinâmica ou em outro aspecto da composição. — Gary Ewer
Exemplos de como cada pilar do Idealismo pode estar presente em uma música:
OBJETIVIDADE: composições com estruturas claras, melodias e ganchos facilmente reconhecíveis, temas recorrentes, letras que refletem racionalidade, coerência, precisão, instrumentos bem mixados, uma sonoridade limpa que dê um senso de ordem, integração, onde cada elemento sonoro tenha uma identidade e um propósito claro.
AUTOESTIMA: virtuosismo vocal, performances de alto nível, um artista confiante, habilidoso, original, com uma personalidade magnética, letras e arranjos que inspiram um senso de ambição, que tenham uma visão edificante da vida e do ser humano.
BENEVOLÊNCIA: mudanças de acordes predominantemente harmoniosas (como as já citadas), letras que inspiram algo de otimista, que foquem coisas positivas, um artista que transmite um Senso de Vida benevolente através de seu visual, sua atitude e sua voz.
EXCITAÇÃO: músicas que respeitem o Princípio da Ascensão, que busquem emoções extremas, que criem variedade, surpresa, picos de satisfação, que falem de situações e relações extraordinárias, incomuns, empolgantes.
Michael Jackson elevou a música pop para um novo patamar nos anos 80 criando uma nova forma de unir música, vídeo, narrativa, atuação e dança, que aproximou ainda mais a música popular de uma experiência multidimensional, completa, assim como o cinema. Michael é também um daqueles casos raros de um artista que une as qualidades de um criador genial, de um verdadeiro visionário, com as habilidades físicas e virtudes dos grandes performers.
ANÁLISE DO CLIPE “BEAT IT”
O clipe começa em uma cafeteria comum, num clima banal de cotidiano — um senso de realismo que serve como Contraste para o que irá ocorrer a seguir: a Excitação de quando a música começa e partimos para um universo de gângsteres, ruas esfumaçadas, pessoas que se movimentam de forma coreografada, saem de dentro de bueiros, o que transporta o espectador para uma outra realidade (Michael usa esse tipo de contraste em vários de seus clipes, como “Bad”, “Black or White”, “The Way You Make Me Feel”, que primeiro estabelecem um ambiente comum, realista, e a partir daí nos levam para uma realidade mais atraente).
Aos poucos, os membros da gangue vão se encontrando, se agrupando, dando a impressão de que a história está caminhando para algum lugar, que algum evento importante irá ocorrer, o que estabelece uma estrutura de Ascensão.
O fato do clipe ser sobre gângsteres pode passar uma ideia de agressividade, de que o vídeo tem um Senso de Vida malevolente, mas, na verdade, isso é apenas outro uso eficaz de Contraste. O clipe não é sobre glamourizar a violência, mas sobre Michael querendo criar paz entre as gangues e concretizar o valor da Benevolência. A história no fundo é sobre inocência, harmonia —, mas para ela ter uma narrativa eficaz, memorável, o clipe primeiro enfatiza o negativo, o obstáculo.
Michael é visto pela primeira vez dentro de um quarto, deitado na cama (ele não faz parte das gangues, do conflito), usando uma camiseta quase infantil — um detalhe que já indica um caráter mais inocente —, mas ao mesmo tempo Michael é confiante, canta com atitude, projeta um senso de Autoestima (não parece apenas um garoto ingênuo e indefeso).
Michael é um ótimo dançarino, como todos sabem (esse é um dos seus “superpoderes”, se pensarmos em artistas como heróis em um filme), mas observem que ele só começa a apresentar elementos de dança quase na metade do clipe — outra tática para criar uma estrutura ascendente e guardar o melhor para o final. Hoje em dia, muitos clipes mal começam e já mostram o artista numa grande coreografia com dezenas de pessoas, tornando o resto do vídeo tedioso e “mais do mesmo”.
Quando as gangues começam a caminhar pelas ruas, percebemos claramente as referências ao musical Amor Sublime Amor (1961). Michael foi pioneiro ao trazer para o universo de videoclipes (na época uma arte ainda pouco desenvolvida) referências de filmes clássicos, obras mais sofisticadas — uma atitude de alguém que queria elevar o entretenimento para um outro nível, queria que a música pop fosse tratada com respeito, e não como uma diversão descartável.
O momento em que as gangues começam a brigar e os dois líderes são amarrados pelo braço é um bom exemplo de como criar uma cena marcante e apresentar boas ideias dentro de um clipe. Muitos clipes são apenas uma colagem de imagens do artista cantando em locações diferentes, mas não criam momentos, não dramatizam eventos, e, portanto, soam genéricos, vagos — quando lembramos deles, não lembramos de nenhuma ideia em particular.
Durante a briga, as gangues já começam a se movimentar de maneira mais teatral, próxima de uma dança, criando um ar de fantasia (Excitação), algo típico do cinema musical. Essa ideia atinge seu clímax na cena-chave do clipe, que é quando Michael interrompe a briga, e em uma única cena consegue concretizar tanto Autoestima quanto Benevolência e Excitação, numa espécie de superclímax. Autoestima por Michael neste momento se tornar o líder das duas gangues; Benevolência pelo fato do “bem vencer o mal” finalmente e as gangues abandonarem a briga; e Excitação pela surpresa de todos entrarem subitamente em uma coreografia. A ideia de gângsteres durões entrando em um balé não só gera surpresa e fantasia (Excitação), como também transmite o valor da Benevolência, pelo fato do “mal” ter sido superado e da agressividade ter se transformado em algo lúdico e positivo (que é a mesma ideia dos zumbis dançando em “Thriller”, por sinal).